entrevista por João Paulo Barreto
De 23 (quarta) a 28 de junho (segunda) acontece a 16ª edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto, a popular CineOP (https://cineop.com.br). Pelo segundo ano consecutivo, porém, ainda devido às imprescindíveis restrições decorrentes da pandemia, as tradicionais sessões na belíssima cidade mineira, Patrimônio Cultural da Humanidade, não vão trazer o bônus do encontro presencial entre público, Cinema e História. Assim, a CineOP 2021 será, novamente, realizada on-line diretamente no site do evento. Conhecida pelo seu perfil de resgate histórico e afetivo da memória do Cinema Brasileiro, a Mostra de 2021 contará com um total de 118 filmes divididos entre curtas, médias e longas metragens que não somente trazem esse resgate, mas que também focam em produções contemporâneas que dialogam com o urgente presente da realidade do país.
Chico Diaz, ator brasileiro cuja carreira no cinema, palcos e TV já transcorre um período de quase 40 anos, é o homenageado da CineOP desse ano. Durante a entrevista coletiva concedida na apresentação da mostra, o artista, que nasceu na Cidade do México, mas cresceu no Brasil, pontuou sua trajetória de intérprete de personagens oriundos das mais diversas regiões brasileiras, saudando a Bahia e Salvador como lugares que lhe permitiram um fortalecimento dessa identidade como um intérprete das mais variadas expressões nacionais.
Neste ano, a CineOP traz na sua Mostra Contemporânea a divisão dos filmes em quatro eixos: “Passado em investigação”, “Memórias das artes brasileiras”; “Indígenas e as imagens: entre o passado e o presente” e “Os espaços e os vestígios da história”. Nos quatro, e em especial nos dois primeiros eixos citados, cumpre seu papel de foco na tanto na História passada do Brasil quanto nas reverberações atuais dessa mesma história, alertando sua audiência quanto aos riscos de repetição das mesmas tragédias históricas do século XX, bem como celebrando pessoas que, dentro das Artes, lutaram contra a opressão do regime militar.
Um dos curadores da mostra, Francis Vogner, comenta o processo curatorial de escolha de filmes que abordam a história do Teatro Oficina e a trajetória de Zé Celso; a estrada dentro das artes percorrida por Conceição e Orlando Senna, bem como a história de Alzira Espíndola. “A arte brasileira, a tendência é, e eu entendo perfeitamente, é tentar a arte como essa resistência a períodos obscuros da vida brasileira. Ao mesmo tempo, com o seu modo de vida e a sua atitude, estar na contra-mão desses regimes e da truculência de um regime político específico. No caso dessas pessoas, é a ditadura militar”, explica Francis, e complementa: “Essas figuras todas estão no embate ao sistema que se coloca. E isso se prova com a obra, mas prova-se, também, em fazer da vida parte da obra. A obra vem da vida e a vida se dirige à obra. Acho que isso que é muito interessante. A gente não está lidando com artistas que separam isso”, pontua o curador.
Cléber Eduardo, também curador da CineOP, enfatiza essa relação de tais artistas com seus modos questionadores de vida tem a ver mais com uma questão de atitude. “É uma atitude e um modo de vida que, sim, tem uma relação com a sociedade, com os seus momentos históricos vividos ao longo dos anos. Mas, talvez, menos por uma questão de uma consciência, de uma obediência a princípios, de uma fidelidade a digamos, um programa, sabe? E muito mais por uma questão de atitude. Eu acho que todo o desdobramento é posterior a essa atitude existencial. É isso que, para mim, sobretudo, marca esses personagens, Orlando e Conceição Senna, Alzira, Zé Celso e o Teatro Oficina”, explica Cléber. “É um modo de se colocar do ponto de vista particular, pessoal e público, já que são figuras públicas. E aí, sim, o desdobramento é, digamos, uma resistência, porque, enfim, estavam em um dado momento, num regime que essa atitude não era permitida. Então, estavam, inevitavelmente, do lado de lá. Mas, sobretudo, acho que pela sua atitude existencial e artística”, finaliza o curador.
São artistas conscientes de suas funções sociais e do mundo em sua volta que precisamos, de fato, louvar. Nesta entrevista ao Scream & Yell, Francis e Cléber falam um pouco mais sobre esse processo de curadoria. Confira!
Ao observar a divisão da Mostra Contemporânea desse ano nos quatro eixos propostos, me fez refletir sobre a questão primordial da CineOP como uma mostra que visa trazer à tona a discussão sobre o resgate histórico do cinema brasileiro. E nesse 2021, bem como nos últimos dois anos, a questão do cinema feito pelo povo indígena ganha ainda mais relevância nessa discussão. O eixo “Indígenas e as imagens: entre o passado e o presente” pontua bem esse foco. Como foi essa percepção das obras dentro desse contexto urgente que o tema das vidas indígenas possui?
Francis Vogner – Tentamos elaborar as coisas a partir dos filmes como eles se apresentam. Nos últimos anos, tem sido mais frequente a presença de filmes de realizadores indígenas. E aí tem uma particularidade que me parece uma tendência dos últimos dois anos. Pode ser mais antiga, mas é algo que acabei notando a partir do que chega a mim. É um crossover, a junção de realizadores indígenas com realizadores não indígenas. Teve um filme no ano passado da Patrícia Ferreira Pará Yxapy Guarani junto com a Sophia Pinheiro (“Nhemongueta Kunhã Mbaraete”, 2020), que é uma realizadora branca. Um filme feito a partir de uma troca epistolar. E os cineastas guarani, especificamente, às vezes ficam muito aplicados a estabelecer essa relação com outros realizadores e fazer os filmes em conjunto. É o caso, esse ano, de dois filmes: “Sabedoria das Mulheres”, do Alberto Alvares e da Cristina Flória; e o “Xadalu e o Jaqueretê”, do Tiago Bortolini e Ariel Kuaray Ortega. São filmes nos quais você tem esse crossover, e que essa troca é colocada em questão. Sobretudo em “Xadalu e Jaquaretê”. “O Índio Cor de Rosa contra a Fera Invisível” não é um filme de um realizador indígena, mas é feito a partir das imagens em 16mm realizadas durante décadas por Noel Nutels, um médico sanitarista que atendia populações indígenas – além do áudio dele gravado no Congresso Nacional um pouco antes do AI-5 em defesa das populações indígenas. Então, você tem, de fato, três filmes que são variações dessa relação com as imagens e com a memória dos povos indígenas. O Cléber propôs essa divisão, que é uma maneira de entender esses filmes a partir de blocos. E esses filmes cujas partes das imagens são sobre a representação e sobre a memória dos povos indígenas, sejam feitos por realizadores brancos, ou por realizadores indígenas. E é curioso que, no caso dos realizadores indígenas, esse crossover me parece que tem sido frequente. Penso eu que é uma tentativa dos realizadores guaranis, de fato, estabelecerem um diálogo para fora da tradição. Para afirmar, enfim, os seus lugares e as suas tradições, mas um pouco fora dessa tradição. Uma maneira, digamos assim, de ganhar um pouco de campo no debate contemporâneo. Um pouco para além das questões circunscritas ao ambiente do debate do cinema indígena, do cinema guarani. É um debate que, atualmente, me parece ser necessário de se fazer para fora. Porque muitos realizadores indígenas fazem filmes para os seus próprios povos. Acho que existem vários povos e vários realizadores que, muitas vezes, de fato, não estão interessados em fazer filmes que não sejam para eles mesmos, para o seu próprio povo. Mas sinto que para os cineastas guaranis, especificamente esses dois, já não é de hoje. Me parece determinante para esses filmes essa tentativa de diálogo e de fazer uma ação conjunta. E o do Noel Nutels é isso, também. Essa mediação está presente na figura do próprio Noel e do Tiago Carvalho, que é o diretor. O protagonista do filme acaba sendo, na verdade, quem fez as imagens dos indígenas, que é o Noel. Mas a mediação aí se impõe. E nos outros, o diálogo se impõe.
É palpável a importância da escolha dos longas metragens do eixo “Passado em Investigação”, com tais obras sendo exibidas dentro do contexto atual do Brasil, de negação, de tentativa de reescrita da História, e o que é mais importante, de não deixar mudarem os fatos do que realmente aconteceu com o período ditatorial, que foi há tão pouco tempo e que, agora, ocorre esse risco de se repetir. Quando se coloca esse questionamento dentro do cinema, dentro de uma mostra, isso ganha ainda mais representatividade e mais importância. Como foi abordar essa crucial função da curadoria no sentido de alerta quanto ao que segue como uma ameaça contra as instituições?
Cléber Eduardo – Claro que, quando nós estamos vendo os filmes, não temos a ordem que temos quando os programamos. Nós assistimos em uma ordem completamente individual. Cada um tem seu critério. Eu uso a ordem da inscrição. Vou indo filme a filme. Quem for inscrito primeiro, vejo primeiro. Quem for inscrito por último, vejo por último. Quando a programação está lá fechada, parece que nós tínhamos uma série de pressupostos e princípios dentro da curadoria, e chegamos àquela sessão. Mas não. Não se sabe muito o que você vai encontrar, mas estamos muito atentos a quais são os filmes que, de alguma forma, lidam com uma certa sintonia fina com as nossas questões políticos sociais de hoje, 2021. Mas de que maneira esses filmes lidam, também, com a temática histórica, como a década de 1990. E com o segmento do cinema brasileiro na década 1990 que olhou para o passado, que foi lá problematizar a história oficial do Brasil. Os pressupostos identitários do país. Se você for assistir a todos os filmes, cada um com as suas particularidades estilísticas, e, eventualmente, cada um com seus êxitos enquanto projeto, eles têm essa premissa de retornar para tentar remexer na historiografia oficial que veio lá do regime militar. E que ainda era, digamos, predominante, na década de 1990. Então, temos, do ponto de vista curatorial, que assistir a estes três filmes (“Golpe de Ouro”, “A Trilha dos Ratos” e “Operação Camanducaia”) em um diálogo com essa programação histórica que, também, lida com a problematização do passado. Como se nós tivéssemos uma estrutura histórica através dos filmes que, mais ou menos, explicam o porque da gente ficar dando voltas no Brasil contemporâneo. E estamos no Brasil de hoje. E o que eu acho interessante nestes filmes contemporâneos, e aí é uma particularidade, talvez, até mais forte neles do que nos filmes dos anos 1990, é que eles tratam a história, o passado, como uma caixa de segredos. Como uma espécie de caixa forte a ser aberto e a ser decodificado. E, portanto, a ser denunciado. Quer dizer, não se trata de uma representação do senso comum, relacionado aos processos históricos que esses filmes abordam. Trata-se, sempre, de uma perspectiva investigativa. Do cinema como um instrumento investigativo. E isso é uma natureza diferente dos filmes dos anos 1990 que trataram a História. Era um pouco isso que a gente estava tentando enfatizar. É a história como uma matéria de investigação, e não só como uma matéria prima da representação dela.
É curioso observar a urgência dessa produção mais recente que aborda esse cinema atual como uma matéria de investigação em comparação a esse citado e que foi feito nos anos 1990. Estamos diante de um iminente risco da democracia e as produções em suas temáticas estão cientes disso, enquanto nas produções realizadas há 25 anos, essa alegoria parecia mais distante. Agora, esse risco é real.
Francis Vogner – Vejo que são duas maneiras diferentes de lidarem com a História. Os filmes dos anos 1990 são recém-saídos de um período de abertura democrática de um regime ditatorial. E, na verdade, eles tentam elaborar a experiência do ponto de vista, muitas vezes, ou com uma certa amplitude mais ou menos panorâmica no sentido de lidar com um grande painel histórico, ou voltar algum período da História e elaborar uma narrativa sobre aquilo. Como, por exemplo, “La Marca” e “Carlota Joaquina”. Alguns vão lidar com a perspectiva de olhar para o que constitui o Brasil desde sua fundação, outros vão tentar olhar para esse regime militar e tentar entender, ali, o fracasso das esquerdas. Acho que isso é muito forte nestes filmes. E acho que, hoje, estamos olhando para o regime militar de uma outra maneira. Enquanto eles estavam saindo daquilo, em alguma medida, esse esqueleto agora saiu do armário. E como o Cléber falou, tem esses filmes de investigação desse período. É tentar entender a eminência parda disso daí durante esse período histórico que a gente viveu de democracia. Ou seja, isso nunca foi embora. Nós, provavelmente, jogamos para debaixo do tapete ou tentou-se ignorar, achando que isso seria simplesmente superado com o avanço das instituições. E isso aparece de novo. E a nossa relação, hoje, é muito diferente com a que era aquela. Mas, ao mesmo tempo, existe uma relação de um olhar para esse passado para tentar entender, no nosso caso, o momento que estamos vivendo. Ou tentar, naquele momento dos anos 1990, elaborar algo dessa virada, dessa passagem. Mas nunca ignorando que, de fato, muita coisa ainda nos constitui. Ao menos, desde o século XVIII.
Sobre o outro eixo da Mostra Contemporânea, o que aborda a “Memória das Artes Brasileiras”, por coincidência, eu conversei há pouco mais de três meses com Orlando Senna sobre o filme “O Amor Dentro da Câmera”. Ele trouxe para o papo uma questão de uma circularidade da história, com a repetição dos fatos que ele presenciou no começo dos anos 1960, e de lá em diante, com o que está acontecendo agora. E o Orlando acabou de fazer 81 anos, tendo vivido todo esse período e possui a clareza dessa visão comparativa. E a outra voz que vocês trazem nesse contexto é a do Zé Celso e a do Teatro Oficina, com o filme “Máquina do Desejo”. E além desses dois, o filme sobre Alzira Espíndola, “Aquilo que eu Nunca Perdi”. Esse eixo “Memória das Artes Brasileiras” serve como um complemento da proposta de estudo contida em “Passado em Investigação” para mostrar uma face de resistência das artes nesse sentido. Queria lhes perguntar acerca dessa importância atual do discutir as artes como modo de resistência.
Cléber Eduardo – Antes disso tudo, esses filmes todos batem para mim, acima de tudo, como atitude e modo de vida. Que é uma atitude e um modo de vida que, sim, tem uma relação com a sociedade, com os seus momentos históricos vividos ao longo dos anos. Mas, talvez, menos por uma questão de uma consciência, de uma obediência a princípios, de uma fidelidade a digamos, um programa, sabe? E muito mais por uma questão de atitude. Acho que todo o desdobramento é posterior a essa atitude existencial. É isso que, para mim, sobretudo, marca esses personagens. Orlando e Conceição Senna, Alzira, Zé Celso e o Teatro Oficina. Sabe? É um modo de se colocar do ponto de vista particular, pessoal e público, já que são figuras públicas. E aí, sim, o desdobramento é, digamos, uma resistência porque, enfim, estavam em um dado momento, num regime que essa atitude não era permitida. Então, estavam, inevitavelmente, do lado de lá. Mas, sobretudo, acho que pela sua atitude existencial e artística.
Francis Vogner – Vejo a questão de resistência aí… Tem uma coisa que para mim não é muito novidade, assim, de reunir esses três eixos, esses três grupos de artistas: Teatro Oficina, a dupla Conceição e Orlando Senna e a Alzira Espíndola, e quem está junto com ela, como família e amigos. Acho que a arte brasileira, a tendência é, e eu entendo perfeitamente, é tentar a arte como essa resistência a períodos obscuros da vida brasileira. Ao mesmo tempo, com o seu modo de vida e a sua atitude, estar na contramão desses regimes e da truculência de um regime político específico. No caso dessas pessoas, é a ditadura militar. Mas acho que eles sempre são de resistência, por um lado. Acho que é bom olhar, assim, a gente teve esse período que foi de ditadura, que eles lutaram, e depois tivemos outro período de bonança, ou de liberdade, e eles voltaram. Por exemplo, com o Teatro Oficina, acabou a ditadura, mas eles começaram a brigar com o grande capital. É o grupo Silvio Santos querendo derrubar o Teatro Oficina e construir um shopping. Isso permaneceu. E há toda uma luta deles com relação ao espaço urbano. E a necessidade de existir naquele lugar, naquele espaço, que atravessou a história do Oficina inteira. Antes, era contra a ditadura, depois o poder do dinheiro e novamente o poder do governo. Teatro, afinal, não é um negócio. E no caso da Alzira, por exemplo, ela também surgiu em um contexto de mais ou menos fim da ditadura militar, e é uma dessas artistas radicais da música, que atravessa os anos 1980, mas, também, não é uma artista que fez parte, digamos, do establishment. E como ela resiste esse tempo todo criando. Acho que isso está colocado. Como, também, a Conceição e o Orlando Senna fizeram parte de momentos do cinema brasileiro nos anos 1960, 1970 e parte dos 1980. Não por acaso, foram a Cuba, para EICTV, e têm toda essa história em Cuba, que é esse país fora do eixo. E o Orlando, principalmente como gestor cultural dos últimos anos, é uma pessoa que sempre esteve implicada em tentar construir um lugar para o audiovisual. Que o audiovisual tivesse uma vida. E, para isso, você acaba enfrentando algumas resistências. Ou seja, o lugar da arte brasileira é sempre de resistência. Por condição, mesmo. Eu acho que essas figuras todas estão no embate ao sistema que se coloca. E isso se prova com a obra, mas prova-se, também, em fazer da vida parte da obra. A obra vem da vida e a vida se dirige à obra. Então, acho que isso que é muito interessante. A gente não está lidando com artistas que separam isso. Acho até que a relação da Conceição e do Orlando é muito curiosa. Esse amor dentro da câmera a gente vê dentro e fora. Acho que isso está na obra deles como um casal; está, também, na vida deles. E a gente consegue ver um projeto existencial em comum. Acho que é um pouco por aí. E, para mim, é uma coisa que vem desde os anos 1960 dessa form. Eu acho que essa resistência é um pouco uma condição da arte brasileira.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.