Texto por Eduardo Juliano
“Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”.
Uma das mais famosas frases tiradas do livro “O Pequeno Príncipe”, de Exupéry, traz uma reflexão tão potente que, de tempos em tempos, surge uma obra que suga a essência dessa discussão e a toma para si.
Esse é exatamente o caso da aclamada ”Normal People” (2020), produção britânica baseada no livro homônimo de Sally Roone lançado em 2018 e distribuída no Brasil pelo canal de streaming Starzplay. A série acompanha de maneira bem íntima e contemplativa a trajetória de dois jovens ao longo dos anos, desde quando começam a se encontrar secretamente no colegial, passando por suas respectivas faculdades até o ponto de, numa abordagem naturalista e fluida, abraçarem a vida adulta.
Entre idas e vindas, novas amizades, mudanças de cidade e mudanças até mesmo de parceiros, o casal precisa lidar com um dos grandes males que afetam a quase todos os relacionamentos atuais: a incomunicabilidade. A dificuldade de se fazer entender e de dizer com clareza o que realmente pensam e sentem um pelo outro acaba sendo a principal raiz de todos os desencontros e desencantos.
O contraponto ao descaso é que, mesmo sem se assumirem como casal durante quase todo o tempo, a influência que um exerce sobre a existência do outro é imperativa em suas próprias escolhas. Porém a imaturidade e a baixa responsabilidade afetiva vai, a cada um dos 12 lentos episódios, levando as relações de ambos por caminhos no mínimo tortuosos.
A série é competente ao propor discussões a respeito do amadurecimento em nossos tempos, e naturalmente aponta para a falta de autenticidade, a intimidade que liberta e ao mesmo tempo machuca, doenças mentais (depressão e ansiedade) e tantas outras questões desconfortáveis a toda uma geração. O grande acerto aqui é que a produção não é panfletária, não defende bandeiras nem toma partido algum, ela apenas expõe as mazelas psicológicas da nova geração e a forma frágil como as relações afetivas mais importantes se formam em nossa sociedade.
O diretor e showrunner irlandês Lenny Abrahamson, dos ótimos filmes “Frank” (2014) e “O Quarto de Jack” (2015), garante uma sutileza tão grande aos temas propostos que um espectador mais desatento fatalmente terá a impressão de que a história não está avançando ou se movimenta em círculos. Existe uma lentidão proposital e os acontecimentos que impulsionam a história, na maioria das vezes, acontecem em silêncio, numa abordagem genial da roteirista Sally Rooney, a própria autora do livro na qual o roteiro é baseado. Esse ritmo extremamente lento pode desagradar boa parte do público, mas essa não é a intenção aqui.
Os diálogos são fortes e incisivos, mas é no silêncio que a série realmente brilha. O silêncio que permeia as intenções de fala que nunca são ditas, mas que são palpáveis ao público, e o silêncio provindo das lacunas temporais inseridas na maioria dos episódios, provocando um leve e prazeroso desafio imaginativo.
Embora nada seja colocado de maneira explícita, nem a passagem não cronometrada do tempo, nem as mudanças intrínsecas nas personagens, existe um conteúdo urgente e verdadeiro que pulsa, apesar do ritmo lento, e vai se desenvolvendo de maneira orgânica, ganhando ainda mais força e verdade por conta das performances irretocáveis de Daisy Edgar-Jones (Marianne) e Paul Mescal (Connell).
É um erro catalogar “Normal People” como uma história de amor, pois isso seria um desserviço. Na verdade, trata-se de uma história que utiliza batidas narrativas sobre amadurecimento para construir um sólido estudo das conexões humanas, nas quais duas pessoas tentam descobrir quem são e o que precisam fazer pra se tornarem o que querem ser.
A fotografia belíssima dirigida por Suzie Lavelle e Kate McCullough abusa de closes extremos nos rostos dos atores e desfoca o cenário sempre que pode, para que o público esqueça que a história se passa na Irlanda e abrace, sem fronteiras, a trama universal. Isso deixa transparecer que cada expressão importa.
Um dos temas dominantes na série é a diferença, muitas vezes instintiva, entre a vida na intimidade e a vida social. A verdade que o casal transparece quando está a sós faz com que todas as relações externas (família, amigos) pareçam falsas ou forçadas – o que não é exatamente verdade –, mas acaba inviabilizando o sentimento de pertencimento, acolhimento e aceitação, quando não estão lidando apenas um com o outro. Por conta disso, invariavelmente, os encontros sociais acabam se tornando desconfortáveis e constrangedores para ambos, mesmo que por motivos diferentes.
“Normal People” é contundente, imersiva, provocativa e propõe uma reflexão sobre as relações líquidas de toda uma geração que foi criada para o individualismo e para o egocentrismo. Uma geração que, por medos infinitos, entra em colapso sempre que a vida pede que se comprometa, se posicione e se importe emocionalmente com as pessoas que cativamos ao longo do caminho.
– Eduardo Juliano é administrador e cinéfilo. Também escreve no Urge :: A Arte nos conforta