resenha por Luciano Ferreira
Uma das piores coisas que pode acontecer a uma banda é ela se tornar uma instituição, isso se olhado pelo ponto de vista da espontaneidade, daquilo que alguns chamariam de chama criativa, geralmente presente no início da carreira. Há exceções, claro, e também há instituições que conseguem lançar bons trabalhos, alguns que até superam os de início de carreira. Não é a regra.
Instituições tendem a se manterem relativamente sólidas e em atividade, sempre lançando álbuns que para a maioria não destoam em nada do seu passado, enquanto para alguns soa como um CTRL+C / CTRL+V com pouco ou nada a oferecer, mas com reconhecido padrão de qualidade. Conseguiram respeito ao longo dos anos, décadas, é pecado de alguma forma diminuí-las, uma vã tentativa de macular a imagem de algo que merece respeito e reverência.
Instituições se mantém graças ao seu passado, ainda que sua relevância em termos de influência tenha ficado também lá. Mas a carreira segue, entre hiatos ou não, por uma grana a mais, por contratos, por costume ou porque o que se tornaram não significa que a música tenha esvaído. Seguir em frente pode ser também uma ratificação da importância da música na vida de uma banda. É o que fazem os escoceses do Teenage Fanclub.
Sem o baixista Gerard Love, fundador e um dos dois principais compositores da banda – é de sua autoria canções inesquecíveis do grupo, como “December” e “Star Sign” (de “Bandwagonesque”, 1991), “Hang On” (de “Thirteen”, 1993), “Sparkys’ Dream” (de “Grand Prix”, 1995) e a belíssima “Ain’t That Enough” (de “Songs from Northern Britain”, 1997), só para citar algumas -, coube a Norman Blake (a outra principal metade pensante do grupo) e Raymond McGinley (que a partir de “Grand Prix” se revelou outro compositor de mão cheia) dividir as composições e manter o “fã clube adolescente” funcionando, com o tecladista Dave McGowan passando para as quatro cordas e a adição do músico galês Euros Childs (Gorky’s Zygotic Mynci) nos teclados. A conclusão, de antemão, é que o Gerard Love compositor faz falta (sua saída foi devido a rotina de turnês).
Com seu lançamento adiado devido a pandemia, o que permitiu que a banda desse uma mexida no trabalho mesmo depois de pronto, “Endless Arcade” vem ao mundo mais de quatro anos depois de “Here” (2016). Começou a ser “saboreado” cerca de dois anos atrás, com o single “Everything Is Falling Apart”, e seguiu com “I’m More Inclined” e “The Sun Won’t Shine on Me”, todas presentes no álbum.
Quem não acompanha a banda muito de perto pouco notará a ausência de Love, já que tanto Blake (autor de hits teenagianos como “Everything Flows”, “The Concept”, “Metal Baby”, “Mellow Doubt”, “Start Again” e “Baby Lee”) quanto McGinley (“About You”, “Verisimilitude”) são ótimos compositores e também parte fundamental na identidade musical do Teenage Fanclub, que segue aqui em seu modus operandi clássico já de alguns anos: canções com belas melodias construídas em dedilhados de guitarra e as sempre presentes belas harmonias vocais.
O power pop que sempre esteve presente nos primeiros anos foi substituído faz tempo pelo que se poderia chamar de sweet pop, com a memória afetiva de sessentistas como The Byrds mais e mais presente. Isso é ruim?
Bem, alguém já classificou o Teenage Fanclub como uma banda “impossível de fazer canções ruins”, o que é verdade. Mas é quase impossível não bater a sensação de dèja vu ao longo de “Endless Arcade”, como se uma continuidade de “Here” a partir da terceira faixa. E isso é ruim? Em termos de novidade, sim. Mas será que a essa altura do campeonato eles ainda querem soar como novidade ou inovadores? Por certo que não. Eles alcançaram um formato, uma identidade e seguem rezando essa cartilha, compondo canções assobiáveis que servem como boas companheiras e podem até se fixar na memória do ouvinte para todo e sempre.
De diferente mesmo só a duração de “Home” (que aparece em vídeo abaixo na versão editada), a terceira mais longa canção da carreira da banda (só perde para “Crush on You”, de “Words of Wisdom and Hope”, e “Heavy Metal II”, de “A Catholic Education”), com uma extensa parte instrumental em que se permitem “perderem-se” ao longo da estrada entre solos de guitarra e camadas de piano discretos; o estilo quase fanfarra de “Warm Embrace” que, por paradoxal que pareça, é a faixa mais curta de todas e tem aquele vocal acompanhado de perto pelo backing vocal; ou a valsa melodiosa, com direito a harpsichord, “The Sun Wont Shine on Me”, um dos melhores momentos do disco.
Embora composto no período pré-pandemia (gravado em Hamburgo e produzido pela banda) as letras mostram tendência reflexiva e até motivacional (vide o refrão “Don’t be afraid of this life” na faixa título), e acenos românticos nas canções de autoria de Blake, que se separou recentemente da esposa, decifrável em frases como: “Havia conforto em sua companhia / E navegar pelo mundo com você / Me fez sentir como eu” (“Home”); “Meu mundo está de cabeça para baixo / Estou perdido, não sei o que fazer / Você está tão longe de mim”, de “Living with You”. Já os versos de “I’m More Inclined” poderiam ser tomados como relacionados à pandemia, mas seguem a temática do fim do relacionamento: “Eu poderia viver em isolamento / Afundando-me cada vez mais na tristeza / Ou poderia seguir o caminho que me leva de volta a você”).
Apesar da sensação de uma nostalgia suave ao finalizar o álbum, não ache estranho se bater aquele desejo urgente de ouvir os primeiros trabalhos da instituição, pois tudo que você encontra aqui está lá também, só que com mais frescor. Blake não se faz de rogado: “Não estamos reinventando a roda com o Teenage Fanclub; fazemos algo parecido – versos, refrãos, solos. Mas tentamos dizer isso de uma forma mais eloquente a cada vez”.
resenha por João Paulo Barreto
Há um texto escrito há 20 anos por Nick Hornby no qual ele aborda o lançamento do “Howdy!”, o então novo disco da banda escocesa Teenage Fanclub. Nele, o autor de “Alta Fidelidade”, “Um Grande Garoto” e “Febre de Bola” fala sobre a proposta de um disco “quase insanamente feliz”, e, também, sobre o direcionamento cínico, ressentido e repleto de uma falta de interesse da crítica especializada em relação ao “ensolarado, alegre e entusiástico” “Songs from Nothern Britain”, álbum anterior da grupo de Glasgow, lançado três anos antes.
No texto em questão, publicado na revista Mojo em 2000 e, no ano seguinte, aqui no Scream & Yell (com tradução de Claudia Ferrari), o escritor referencia Brian Eno quando este reflete sobre como as sensações de alegria, entusiasmo, curiosidade e fascinação presentes na rotina de criação esbarravam no acima citado áspero direcionamento da crítica para com o produto finalizado. E olha que estamos falando de um período no qual a Internet engatinhava e as maldades levianas oriundas das redes sociais ainda ficavam restritas às mentes perigosas dos trolls que as criavam. Reler este texto, hoje, confirma como o Teenage conseguiu escapar de todo sarcasmo e cinismo de uma sociedade marcada por pessoas que acham que essas duas características rimam com inteligência. “Não tenha medo desta vida”, canta o refrão de “Endless Arcade’, faixa título do novo disco do Teenage. Quer algo mais direto do que isso?
Lançando em abril, o 12º disco de estúdio em 32 anos de carreira do Teenage Fanclub faz jus à sua premissa de pureza lírica do pop. Mas não confundir tal pureza com ingenuidade ou manuais de autoajuda. O otimismo notório de suas letras se faz presente aqui, mas há as asperezas que nos incomodam. Há o reflexo da dor, também. Logo em sua abertura, uma canção intitulada “Lar” nos faz imaginar se tratar da calorosa sensação de se sentir bem vindo, de se sentir abraçado. Mas, na real, não é sobre isso. É, sim, sobre a noção da perda. A letra, de fato, canta sobre a incerteza de voltar a ser feliz e toda angústia atrelada a essa desesperança. Porém, mágico e belo, o set instrumental de mais de três minutos que encerra a música a partir de sua metade em diante nos acalenta após a pancada inicial de realidade.
Duas décadas se passaram desde “Howdy!”, sétimo álbum da banda citado por Nick Hornby em seu texto para a Mojo. O Teenage Fanclub lançou ainda mais quatro discos (sendo um deles chamado “Words of Wisdom and Hope” – quer mais provas das intenções positivas desta banda?). Além disso, passou pela saída de Gerard Love, baixista, vocalista e um dos autores de clássicos teenagianos como “Sparky’s Dream”, “Don’t Look Back”, “Star Sign” e “December” (entre muitas outras), em 2018, mas manteve seus outros membros fundadores de 1989 (e vozes inconfundíveis e autores irrepreensíveis) Norman Blake e Raymond McGinley nas guitarras, bem como Francis Macdonald na bateria. No lugar de Gerard Love, o já tecladista e guitarrista, Dave McGowan, assumiu o contrabaixo, com a banda dando boas vindas a um novo tecladista, Euros Childs, a partir de 2019. Chegamos à terceira década do século XXI e a sonoridade otimista somada a letras que, distante da plasticidade falsa e de tons furados de discursos de coach, nos fazem escapar um pouco do peso de uma realidade pesarosa e trágica que vivemos.
Sim, admito. É verdade que soa clichê citar a simplicidade do pop que sobressaí em uma canção de 2min e meio. Soa clichê, também, citá-la como sendo um clichê. Mas é preciso pedir licença para este pontuar da capacidade singular que tal tipo de canção pode lhe causar. Ao ouvir “The Sun Won’t Shine On Me”, com sua letra composta com apenas seis frases (sendo uma delas o título e o refrão), em uma valsa que te convida a bailar abraçando a si mesmo (sim, pode me chamar de cafona) enquanto ouve nos fones de ouvido o personagem te dizer que “à deriva como gelo no mar, enquanto, com a mente problemática, estou em declínio e percebo que o sol não mais brilhará sobre mim”, é impossível não se cativar por tal poder presente na canção. Exagero ao dizer que dá para sentir as ondas de tal mar gelado? Talvez. Mas, no fundo, creio que não.
Do mesmo modo, as mensagens diretas nas faixas seguintes, “I’m More Inclined” e “Back In The Day”, fazem o ouvinte perceber como a música pop é capaz de te embalar por momentos de introspecção (ou de perigosa nostalgia), mas sem deixar de te divertir. Afinal, é para isso que levantamos de manhã, não? Em algum momento do seu dia, você precisa sorrir. E sendo um ateu (ou a toa, como já fui chamado em mais uma fracassada tentativa citada lá no começo de fazerem sarcasmo rimar com sapiência), uma letra no qual o personagem diz que “não encontrou a religião e que nunca precisou dela” por ter colocado sua fé na pessoa que ama… bom, a música fala por si. O que é mais importante do que depositar a fé no amor concreto por alguém para além de qualquer foco em dogmas ou supostas vidas eternas? A vida é apenas uma. Faça-a valer.
E sobre o perigo de se idealizar e romantizar tempos passados, ao final de “Back In The Day” não surge uma solução para este processo de superar o que ficou para trás, desanuviando a angústia atual. Mas, do mesmo modo, você sorri por perceber a mensagem clara de identificação. E aprende a dar mais um passo à frente, ansiando por um futuro tão bonito quanto este passado que você idealiza. Ainda dá para sorrir e renovar sua fé e energia positiva a partir do simples ato de colocar uma música nos fones de ouvido. E não é para isso que Música serve? Sim. E não há cinismo, sarcasmo ou menosprezo que tire a verdade disso. Ainda bem.
– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta e colabora com o Scream & Yell.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
Leia também:
– Teenage Fanclub ao vivo em Amsterdã, 2019 (aqui)
– Três noites de Teenage Fanclub ao vivo em São Paulo, 2004 (aqui)
– “O Teenage Fanclub tem seguido um estranho caminho”, analisa Nick Hornby (aqui)
– “Jonny”: Para Norman Blake fazer música parece uma coisa extremamente fácil (aqui)
– Teenage, Primal Scream, MBV: “1991: The Year Creation Records Broke” (aqui)
– Três Discos: BMX Bandits (mais Norman Blake e Francis Macdonald) (aqui)
– Teenage Fanclub x BMX Bandits ou “Tears” x “No Future” (aqui)
– “Shadows”, do Teenage Fanclub, faz esquecer o tempo solitário sem power pop (aqui)
– “Man-Made”, Teenage Fanclub, mantém a qualidade da banda em alta (aqui)
Grande banda, sempre fazendo discos dignos de nota.
Sim, Nadya. Teenage é como aquele amigo que está longe mas que reencontrar é sempre prazeroso.