texto por Renan Guerra
Em uma das cenas de “Meeting the Man: James Baldwin in Paris”, documentário recentemente restaurado pela MUBI, o escritor James Baldwin fala “pode não haver tanta humanidade no mundo como se gostaria, mas há alguma. Há mais do que se poderia pensar. […] O amor nunca foi um movimento popular e ninguém jamais quis ser realmente livre. O mundo se mantém realmente unido pelo amor e pela paixão de poucas pessoas”.
Em entrevista em 2020, aqui no Scream & Yell, o cantor e compositor Rico Dalasam falava o seguinte: “parece que a gente está sempre falando de racismo, de luta, mas na verdade a intenção é garantir que as nossas subjetividades estejam plenas e protegidas”.
Essas duas falas se encontram aqui em um âmbito: James Baldwin em todo o percurso do filme – assim como em sua carreira – tenta deixar claras suas subjetividades e suas complexidades, confrontando os jovens diretores brancos do filme em um atrito causado pelo simples fato de que James não é o que os diretores esperavam. Ele não serve a um discurso de construção que fala em “um escritor negro que fala aos brancos”. Os diretores tentam, repetidamente, filmar e construir um imagético de um James arredio, genioso e reativo.
Essa é uma imagem que repetidas vezes vimos também atrelada a Rico Dalasam, porque Rico nunca se mostrou subserviente ao que era essencialmente proposto pelo jogo do mercado – ele sabia fazer seu próprio jogo com essas cartas. Só que sabemos que esse tipo de jogada também é exaustiva, que mina subjetividades e que exauri quem tenta nadar contra a corrente. Nesses fluxos, Rico afastou-se da mídia e ficou em silêncio durante um bom tempo, no que ele classifica como “prática de ausência”.
Nesse meio tempo, Rico seguiu compondo e criando, o que se transforma agora em “Dolores Dala Guardião do Alívio” (2021), disco recém-lançado. Como dizia ele por aqui, “eu estou muito mais interessado em colocar subjetividades no prato do que as outras lógicas que eram menos subjetivas e agora a dualidade aqui é a dor e o alívio”. E isso é simbólico, já que a primeira faixa do disco, “DDGA”, começa com o verso “não falaria de alívio se não tivesse doído tanto”.
Essas dores são relidas, mirando o alívio e o amor em um disco complexo, que apresenta um Dalasam muito mais maduro, que trilha caminhos sonoros distintos, conseguindo casar rap e pop aos mais diferentes gêneros, em uma bela colcha de sentimentos. Nessa busca por subjetividades e intimidades, os versos de Rico surgem ainda mais contundentes. É como se tivéssemos acesso a espaços mais recônditos da intimidade dele e participássemos desse processo de cura, que se transforma em arte nos nossos ouvidos.
Logo no início, por exemplo, a tríade de canções “Expresso Sudamericah”, “Não é Comigo” e “Última Vez” dá a tônica do álbum. Há um olhar muito simbólico de Rico sobre sua própria caminhada, sobre sua construção enquanto artista e, de forma mais forte, suas construções amorosas, seus relacionamentos e suas trocas enquanto homem negro gay.
As diferentes escolhas estéticas também são importantes: o áudio confessional em “Não é Comigo”, os beats fortes com a voz alta em “Última Vez” e, claro, a beleza delicada de “Braille”. Importante destacar as vinhetas que permeiam o álbum e que são fundamentais para a construção dessa narrativa do trabalho, pois elas trazem um pouco das relações que constroem o entorno de Rico, como sua mãe, seus pares e seu olhar sobre as relações amorosas.
As construções estéticas que rodeiam “DDGA” também são recheadas de simbolismo: Rico rodeado de rosas brancas ou vestido com réstias de alhos; as cores cruas, como o marrom e o branco quebradas pela força do vermelho. As fotos de Larissa Zaidan captam essa complexidade da figura do artista: forte, misterioso, inteligente e também muito fofo, por que não? O vídeo “Dolores Dala Guardião do Alívio – O Filme” (assista mais abaixo), que foi lançado junto do disco e que tem direção de Zaidan e Del, é suntuosamente belo, conversando com estéticas de gente como Solange ou Blood Orange, mas também mirando símbolos e misticismos muito latinos e brasileiros, de forma bastante interessante.
Para a construção de todo esse universo de “DDGA”, é importante ressaltar como Dalasam se cercou de diferentes nomes fortes de sua geração, como o produtor Dinho Souza, o Chibatinha (guitarrista do ÀTTØØXXÁ), o Mahal Pita (que já colaborou com Baiana System e com Giovani Cidreira), o Pedrowl (produtor do disco de MC Tha), o RDD, entre outros nomes extremamente criativos. Há aqui um grupo de pessoas a se atentar e é interessante como Rico consegue trocar com eles e construir um trabalho coeso, que inclui as particularidades desses artistas, vislumbrando diferentes ritmos regionais modernos do Brasil.
Enfim, quando Rico quebrou o silêncio e lançou o single “Braille” já tivemos uma surpresa forte – a faixa inclusive ganhou o Prêmio de Canção do Ano do Superjúri do Prêmio Multishow de Música Brasileira de 2020. Depois veio o EP “Dolores Dala Guardião do Alívio” e havia ali uma construção forte e bem amarrada; parecia difícil que Dalasam fosse além disso. Porém o novo disco coloca o artista em um novo patamar, numa construção que é fruto, claramente, de uma maturidade de quem entende a construção das canções pop e de quem sabe como jogar com as palavras de forma sábia.
“Dolores Dala Guardião do Alívio” é um passo muito importante e reafirma a fundamentalidade de Rico Dalasam como uma das principais vozes dessa geração. Não há exagero nessa afirmação, para confirmar é só dar play em seu novo disco e entender do que estamos falando.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.
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