por Marcelo Costa
“Emily in Paris”, de Darren Star (Netflix, 2020)
Em fevereiro de 2021, a Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood anunciou os indicados ao Globo de Ouro deste ano, e qual não foi a surpresa pra muita gente descobrir que “Emily in Paris” estava indicada na categoria principal, como Melhor Série Cômica de 2020. Só podia ser piada. O exagero foi tanto que até uma das roteiristas da série, a experiente Deborah Copaken (lembra da história da jornalista cupido de “Modern Love”? É inspirada nela) assumiu a surpresa (“Nunca me ocorreu que a série fosse nomeada”) espantada, ainda, pelo equivoco da associação deixar de fora “a melhor série do ano” (para ela e para os Melhores do Ano Scream & Yell) – lembrando que mais de 140 obras televisivas foram citadas e absolutamente nenhum dos 124 votantes do Scream & Yell mencionou “Emily in Paris”. É, o Globo de Ouro pisou na bola. “Emily in Paris” é daquelas séries tão clichês, obvias, bregas e ruins… que chega a soar engraçada. Você olha para a TV e fica se perguntando: isso é sério? Estrelada por Lily Collins (a filha de Phill Collins – distante do pai – é um dos raros acertos da produção), “Emily in Paris” é um conto de fadas focado na história de uma garota de Chicago de 20 e poucos anos que se muda para Paris indicada para um emprego de social media numa famosa agência local. Ok, já matou a charada: estamos diante de uma autentica comédia de costumes em que os maneirismos franceses irão se confrontar com o american way of life. Deveria render um punhado de risadas, mas a produção força tanto a mão no conto de fadas e no maniqueísmo dos personagens que mesmo em um ano que precisamos muito rir fica difícil soltar a gargalhada com tanta bobagem inverossímil. Apenas uma coisa funciona nos 10 episódios e é… Paris, uma das cidades mais deslumbrantes do mundo, algo que nem uma série tosca da Netflix consegue estragar. Em tempo, a atriz e diretora Julie Delpy fez um filme divertido sobre o assunto (“Dois Dias em Paris”, de 2008) que, inclusive, antecipa muita coisa da série.
Nota: 3
“The Queen’s Gambit”, de Scott Frank (Netflix, 2020)
Série mais assistida de 2020, segundo a JustWatch, e segunda mais votada no Melhores do Ano Scream & Yell, o sucesso de “O Gambito da Rainha” é uma grande surpresa e uma enorme incógnita. Inspirada no livro homônimo lançado pelo escritor Walter Tevis em 1983 e tendo o xadrez, esse esporte incrível e… “novo”, como pano de fundo para a história (gambito da rainha é uma maneira de começar uma partida sacrificando uma peça para tirar vantagem depois), a série acompanha a trajetória de uma órfã prodígio em sua ascensão ao topo do esporte nos anos 1950 e 1960 enquanto luta contra problemas emocionais, vicio em drogas e alcoolismo. Por mais que esses desafios (e, ok, o xadrez) possam atrair a audiência, eles são meros obstáculos para um roteiro previsível (de um roteirista indicado duas vezes ao Oscar), cujo flashback do primeiro episódio entrega todo o arco da série, deixando a questão: por que ver sete episódios se você já sabe o final? Talvez devido a qualidade da adaptação do drama à época (fotografia, edição e direção de arte são impecáveis – tudo que o dinheiro pode pagar) e da atuação inebriante de Anya Taylor-Joy (indicada ao Globo de Ouro como Melhor Atriz – única indicação da série), que realmente brilha como a protagonista Beth Harmon, ainda que embalada em certa pieguice (e o momento junkie é o ápice desse deslize), tornando-a uma heroína modelo que sobreviveu a um acidente de carro, a um orfanato ultra cristão, a uma overdose e a tentativa de autodestruir-se para se tornar a maior enxadrista do mundo (ainda que, na realidade, nunca uma mulher tenha conquistado o título – a húngara Judit Polgár chegou ao 8º lugar no ranking mundial). Bem realizada, mas rasa como uma piscina infantil, “O Gambito da Rainha” foca apenas no amadurecimento da personagem enquanto pincela, e ignora, temas como feminismo, questões de raça e gênero. É só “ela passou por tudo isso para chegar aqui, não é incrível”. Bem, não, afinal é ficção, o que torna o resultado final caprichado, bonito de se ver e bacaninha… ainda que vazio.
Nota: 7
“Fleabag”, de Phoebe Waller-Bridge (Amazon Prime / BBC, 2016/2019)
Direto ao ponto: “Fleabag” é espetacular, uma das melhores coisas que a teledramaturgia produziu neste século, algo que seus 6 prêmios Emmy (de um total de 11 indicações) não dão conta de valorizar por completo. São duas temporadas, cada uma com seis episódios que não chegam a 30 minutos totalizando cerca de 5 horas de exibição. A primeira foi exibida em 2016 e a segunda (presente nos Melhores do Ano do Scream & Yell), em 2019. Excêntrica até a medula e britanicamente sarcástica, “Fleabag” é a prova cabal de que mesmo dentro de um gélido e cínico coração inglês também bate um coração. Criada, escrita, produzida e interpretada por Phoebe Waller-Bridge (acompanhada de um elenco inspirado), “Fleabag” deixaria Malcolm McLaren (o “criador” dos Sex Pistols) com um baita sorriso no rosto. Na primeira temporada, que poderia ter como subtítulo “a comédia sobre uma ninfomaníaca” (grifo de Ben Stiller), a personagem começa a série no primeiro minuto praticando sexo anal enquanto quebra a quarta parede (no modelo “House of Cards” de cumplicidade). No segundo episódio, o namorado descobre no histórico do computador buscas por palavras como “anal, gangbang, maduras, pau grande, tetas pequenas, hentai, asiáticas, adolescente, milf, bundas grandes, lésbicas, gay, facial, fetiche, bukakke, jovens e velhos, engolir, violento, voyer e… público”. Se “Emily in Paris” é um conto de fadas, “Fleabag” é um conto de fodas. Por muito menos, Joana D’arc, Siouxsie e Madonna foram quase queimadas em praça pública (na verdade, Joana foi) e toda essa verborragia é uma maneira de Phoebe cravar no peito do espectador: “estou aqui”. E assim que ela consegue a sua atenção, não desperdiça um segundo. “Tenho a sensação horrível que sou gananciosa, pervertida, egoísta, apática, cínica, depravada, uma mulher moralmente falida que nem pode chamar a si mesma de feminista”, desabafa a personagem em certo momento. Porém, você descobrirá que muitos desses sentimentos são derivados de luto, sentimento de culpa, insegurança e um, dois, três: solidão. O arco da personagem é tão detalhista quanto comovente, e após a primeira temporada passar devastando tal qual um furação, a segunda (ainda mais espetacular que a primeira, com o primeiro episódio soando uma tremenda obra prima) será quase como uma ida a igreja. Como o melhor do entretenimento, “Fleabag” é muito mais do que parece. E é genial.
Nota: 11
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell desde 2000 e assina a Calmantes com Champagne