Texto por Daniel Abreu
“Malandro, se você vai fazer um documentário sobre o Castor de Andrade e não tiver jogo de bicho, futebol e carnaval, a gente está jogando conversa fora, a gente vai falar do quê?” É assim que o ex-jogador de futebol Domingos Elias Alves Pedra, mais conhecido como Dé Aranha, define um dos personagens míticos do futebol brasileiro e do Rio de Janeiro, o bicheiro Castor de Andrade, na nova série da Globoplay.
Lançada no dia 11 de fevereiro na plataforma de streaming, a série é composta por quatro episódios de uma hora cada e se debruça sobre a história de um dos banqueiros de bicho mais conhecidos do Brasil. Além de contraventor, Castor foi por muitos anos presidente de honra e financiador do Bangu Atlético Clube. Já nos anos 70, se tornou o patrono da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, ajudando a escola a conquistar títulos em cinco carnavais. Essas três “paixões” de Castor formam o enredo da série documental “Doutor Castor” (2021).
Como principal financiador do Bangu, o bicheiro investiu pesado nos anos 80/90 em contratações. Uma delas foi o goleiro Gilmar. Revelado pelo Palmeiras, o jogador se transferiu para o clube em 1983. Chegando ao Rio de Janeiro, Gilmar foi direto para a “Toca do Castor”, centro de treinamento do time. O jogador se instalou em seu quarto, dormiu, e na manhã seguinte um senhor bateu na porta do quarto e entregou para ele uma caixa de uma marca esportiva, a pedido de Castor. Achando que era um par de luvas e chuteiras, Gilmar abriu a caixa. “Era o dinheiro que ele havia me prometido de luvas. Fui ao banco e os caras davam risada”, conta ele, rindo ao se lembrar do episódio.
O dinheiro que financiava o clube vinha do jogo do bicho, bolsa ilegal de apostas em números que representam animais criada em 1892 e existente até hoje em várias cidades do país. Um dos pontos mais interessantes da série, inclusive, é explicar o que é o jogo do bicho, sua origem e como ele era uma forma importante de fonte de renda para trabalhadores que tinham problemas para entrar no mercado de trabalho brasileiro, como por exemplo antigos escravos e imigrantes que tinham acabado de chegar no país.
Além disso, “Doutor Castor” mostra como esse tipo de contravenção se transformou em um tipo de máfia, inspirada na temida máfia italiana. No começo dos anos 70, a cidade do Rio de Janeiro foi dividida entre os bicheiros. Com uma cúpula formada, quem ameaçasse essa cadeia de poder, era eliminado. Um exemplo disso foi o China Cabeça Branca. Bicheiro da década de 30, ele tinha a utopia de legalizar o jogo do bicho. Dessa forma, ele começa a fazer denúncias públicas a respeito do jogo do bicho. “Um dia, na avenida Maracanã, indo para casa, na praça da Bandeira, param o carro, metralham o China Cabeça Branca e ele morre naquele momento”, conta o jornalista Aloy Jupiara.
Outro exemplo é a morte do policial Mariel Mariscot. Policial dos Homens de Ouro da Polícia carioca, um grupo com licença para matar, Mariel se torna bicheiro. Conhecido por namorar celebridades, ele foi executado a luz do dia quando estava se dirigindo para uma reunião da cúpula dos bicheiros. “De pequenos a grandes bicheiros, houve uma matança associada a esse processo de unificação do jogo do bicho no Rio de Janeiro,” explica o jornalista Chico Otavio na série.
Financiado também pelo jogo do bicho, o carnaval era outra das paixões de Castor. Nos anos 70, o bicheiro se torna o patrono da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. A série explica que entre os anos 60, 70 e 80, diversos bicheiros tomaram o poder em pequenas escolas de samba. Com o interesse da classe média pelo carnaval, esses bicheiros viram uma oportunidade de legitimarem seus papeis na sociedade.
Após a construção do Sambódromo, em 1984, uma liga das escolas de samba é criada, com o intuito de profissionalizar o carnaval da cidade maravilhosa. A série mostra que antes da criação dessa liga, o carnaval era administrado por uma associação de 40 escolas de samba. Todas as decisões relacionadas ao desfile eram tomadas por essa associação. Incomodados com esse sistema, os bicheiros, encabeçados por Castor, decidem criar a LIESA (Liga Independente das Escolas de Samba). O intuito, claro, era de um maior domínio dos bicheiros perante o evento e a chance de se relacionarem com o poder público com mais facilidade.
Falando em poder público, a série também mostra, com uma riqueza de fatos, a relação de Castor de Andrade com todas as esferas públicas. Mas a relação dele com a ditadura militar é bem curiosa. A série explica que quando houve o Ato Institucional n.º 5 (AI-5), em 1968, não apenas inimigos do regime e as organizações de esquerda foram perseguidas, mas os bicheiros também.
O regime militar queria provar para a sociedade os seus bons propósitos e os bicheiros eram vistos como um mal para a sociedade, pois viviam da jogatina. Dessa forma, os principais nomes do jogo do bicho foram presos. Castor serviu pena durante quatro meses na Ilha do Governador, porém não era um preso comum. Já que tinha curso superior, passou esse tempo detido com diversas mordomias, conforme a série mostra.
Já nos anos 80, para dar uma cobertura legal aos ganhos ilícitos do jogo do bicho, Castor começa a investir em negócios legais. Um desses empreendimentos foi uma metalúrgica. Essa empresa, inclusive, chegou a ganhar concorrências de fornecimento para as forças armadas. Um dos sócios dessa metalúrgica era sogro do filho do então presidente da república João Figueiredo. “Esse mesmo Castor, preso pelo regime, nos anos 80, através da sua metalúrgica, ele vira um fornecedor do exército. Ele não vira apenas um fornecedor de panelas, cantil, ele passa a frequentar as altas rodas do governo Figueiredo,” explica Chico Otavio.
Apesar de ser rica em cenas de arquivo e contar com depoimentos de jornalistas, ex-jogadores de futebol, juristas, historiadores, economistas, entre outros, a série peca ao tratar o papel da imprensa na construção simpática de um criminoso notoriamente conhecido. Durante os quatro episódios, a série dedica apenas poucos minutos para tratar desse assunto, e de forma bem superficial. Para o ex-manda-chuva da TV Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, Castor era apenas um contraventor.
“Doutor Castor” é uma série rica em detalhes e que mostra a construção e a derrocada de um dos principais criminosos do Brasil, além de apresentar para uma geração uma parte da história do Rio de Janeiro que muitos não conhecem.
– Daniel Abreu é jornalista responsável pelo Geleia Mecânica e colaborador do Whiplash.
3 thoughts on ““Doutor Castor” mostra construção e derrocada de um dos principais criminosos do Brasil”