entrevista por João Paulo Barreto
É uma tarefa difícil tentar escapar de um tom nostálgico ao falar da formação cultural oriunda de uma fase infanto-juvenil influenciada pelas histórias em quadrinhos publicadas nos anos 1980 e 1990 pela Editora Abril nos clássicos “formatinhos”. Essa lembrança afetiva bate pesado em leitores quase quarentões como eu (bem como para quem já iniciou ou ultrapassou essa nova década primaveril de vida) em pleno desesperançoso século XXI, e que tiveram sua entrada no hábito da leitura a partir das páginas em papel jornal e recheadas de cores, aventuras e personagens publicados pela Abril. São memórias embaladas por histórias e figuras heroicas (ou não) criadas por Walt Disney, Maurício de Sousa, Bob Kane, Bill Finger, Jerry Siegel, Joe Shuster, Jack Kirby, Stan Lee e um leque tremendo de outros artistas. Um leque que perdurou no Brasil pelas páginas da editora por quase 70 anos. E são esses quase 70 anos de gibis que os autores Manoel de Souza e Maurício Muniz conseguiram, com brilhantismo, compilar nas 544 páginas (64 delas coloridas) do livro “Império dos Gibis – A Incrível História dos Quadrinhos da Editora Abril”, publicação lançada pela Editora Heroica.
Em sua proposta de trabalho, Manoel e Maurício se dividiram em uma demanda tão épica quanto a trajetória da empresa que eles decidiram documentar. Mas engana-se quem acha que o livro é uma biografia ou um relatório da Editora Abril. Claro, lá está toda a gênese da empresa dos Civita. Mas, como o nome do livro diz, os quadrinhos são seus personagens centrais. Dentro de uma pesquisa minuciosa junto a fontes no sentido de desvendar lendas e mitos para além de narrativas oficiais, os autores buscaram por esse processo, mas nunca perdendo o foco que norteia seu livro, a história dos gibis. O resultado é uma narrativa fluida que leva o leitor pelas histórias dentro das histórias.
Surgindo no Brasil como um fenômeno de vendas em uma época na qual a leitura dos gibis não competia com tantas outras fontes de entretenimento para crianças e adolescentes, os quadrinhos da Disney, na figura principal do Pato Donald (lançado inicialmente no formato magazine), teve seu debut na casa Abril em 1950, junto com a revista Raio Vermelho, que foi lançada antes e representa o marco de ser o primeiro quadrinho da editora cujas raízes se iniciaram na Argentina, sob o nome de Editorial Abril. “O formatinho foi criado para se adaptar às máquinas que o Victor Civita montou em 1952. Além disso, Pato Donald’= não estava vendendo muito bem nesse formato grande. Então, ele fez uma estratégia para reduzir o formato e o preço. E conseguiu deixar mais atraente para as crianças. Com o passar dos anos, ele meio que adotou aquele formato ali”, explica Manoel.
Com os personagens licenciados da Disney, a Abril, naquela década de 1950, e nas duas subsequentes, juntamente com os personagens de Maurício de Sousa, que surgiriam em 1970 na editora, viria a se consolidar em um mercado de entretenimento juvenil que até tinha concorrentes como a Ebal – Editora Brasil-América Limitada, mas seu alcance como império tornava a empresa dos Civita imbatível em vendas. “Nos anos 1970, a Abril chegou a vender 6 milhões de quadrinhos por mês. Ela vendia 72 milhões por ano. Eram números que, dos anos 1980 para a frente, não se repetiram mais. Por que? Primeiro que (em 1986) o Maurício de Sousa saiu da Abril”, contextualiza Manoel acerca das primeira décadas de ascensão da empresa, bem como seu primeiro baque comercial, e complementa: “Nos anos 1970, o número de vendas das revistas da Disney era um negócio absurdo. E a própria Mônica, que foi aumentando cada vez mais. Com a saída do Maurício de Sousa em meados dos anos 1980, a Abril tomou um baque. Ai ela precisou tapar o buraco. Foi quando os heróis começaram a receber um maior investimento”, argumenta Manoel em relação à solução econômica para a editora.
A entrada dos super-heróis da Marvel Comics na Abril se deu em 1979, mas ainda sem os grandes medalhões da Casa das Ideias estadunidense, que, por um tempo, acabaram ficando com a concorrente RGE. Isso após a Bloch ter perdido o licenciamento que, desde 1967, já havia passado pela Ebal e outras menores. Com a Abril, os personagens Capitão América, Homem de Ferro, Thor, Mestre do Kung Fu, Surfista Prateado e outros, ganharam inicialmente três títulos: uma revista homônima do Capitão, “Terror do Drácula”, que trazia, também, o personagem da Transilvânia, e a genérica “Heróis da TV”, que abarcava todo um leque de personagens da Marvel. Manoel conta que o título do Drácula não tardou a ser cancelado, mesmo com boas vendas. “Qual era o medo? A mãe assinava uma revista da Mônica, do Cebolinha, aí o filho via a revista do Drácula, e quando lia, tinha histórias de gente sendo morta com machadada, sabe? O medo da Abril era esse. Aí os pais iam ficar putos, cancelariam as assinaturas, e iam querer processar a editora. Então, era um negócio que na cabeça deles não pegava bem. A Abril fugia disso”, esclarece o autor.
A DC não tardaria a, também, fazer parte do leque da Abril, com a veterana Ebal não renovando seu contrato com a editora do Super-Homem e do Batman no começo dos anos 1980. Assim, estes e outros heróis chegaram ao catálogo dos Civita. Estendendo-se por toda a década e, com obras de Frank Miller (“Cavaleiro das Trevas”, “Demolidor”) e Alan Moore (“Monstro do Pântano”), revolucionando a partir da segunda metade dos anos 1980, o setor de HQs da Abril acumulou sucessos. Mas os anos 1990, com um foco megalomaníaco da empresa em outros mercados, como o de TV por assinatura, trouxeram grande prejuízos. Mesmo com o maior recorde de vendas da história dos quadrinhos lançados no Brasil (a saga “Morte e Retorno do Super-Homem”, que vendeu um milhão de exemplares em 1993 e 1994), a Abril começou a declinar. No decorrer daquela década e a partir do ano 2000, com a extinção do formatinho, um surreal aumento de preços e a competição acirrada da Panini Comics, que passou a licenciar a Marvel, logo o império dos Civita ruiu. A Abril durou até 2018, apenas com alguns dos títulos Disney sendo lançados por ela.
O tempo e a mudança dos ventos são implacáveis. Mas podem deixar boas lembranças. As mesmas de um garoto de 12 anos que comprou pela fortuna de R$3 aquele gibi especial com a morte do kriptoniano. Nessa entrevista ao Scream & Yell, o co-autor Manoel de Souza detalha mais alguns dos aspectos da sua longa pesquisa, permitindo-se falar da sua própria gênese como leitor dos quadrinhos nos anos 1980, e trazendo uma visão ampla dessa trajetória das HQs pela Editora Abril e as mudanças às quais esse mercado precisou se adaptar para sobreviver durante todas aquelas décadas. Confira o papo!
Em um livro com tamanha quantidade de informações, o que mais me chama atenção e atiça a curiosidade de jornalista é o processo de captação dessas mesmas informações e a criação das pautas. Você vem de uma experiência longa como editor da revista “Mundo dos Super-Heróis”. Como se deu essa iniciativa de encarar a história dos quadrinhos lançados pela Editora Abril, bem como a trajetória da empresa nesse ramo?
Eu já estava trabalhando há muitos anos na “Mundo dos Super-Heróis”. Tinha feito 110 edições da revista. A “Mundo dos Super-Heróis” foi um parto sair. Foi um parto manter. E essas 110 edições foram um parto sair. 110 partos a forceps (risos). Um período bem complicado. Bem trabalhoso. E chegou um momento em que eu quis ter a minha própria editora, porque era a próxima etapa. Eu, quando era adolescente, sonhava em ter a minha revista. Era aquele meu sonho de fã de quadrinhos. Depois de muito custo, eu consegui a “Mundo dos Super-Heróis”. E chegou num ponto em que eu quis ir além da revista. Decidi sair em carreira própria e montar a minha editora. Na hora de montar a editora, veio uma dúvida. O que lançar primeiro? Porque a Heroica foi criada, basicamente, para ser uma editora para publicar os meus projetos de gaveta. Eram projetos que não interessavam à Editora Europa, a empresa que eu trabalhava. E eu também não via outros lugares para publicar. Eu imaginava coisas mais complexas, mais detalhadas, livros com mais páginas, e isso envolvia um custo muito maior. Eram contas que não fechavam. As contas não fechavam nessas editoras tradicionais. Então, decidi fazer por minha conta. Na hora de escolher o primeiro título, a lista era enorme. Fui fazendo um pente fino. Até o momento em que ficaram duas ideias. Uma era um livro sobre os bastidores da Marvel e da DC, que era um material que seria baseado nas colunas do Roberto Guedes. Eu já tinha meio que acertado com ele para a gente fazer uma coletânea. E o segundo livro, que era um sonho antigo também, era sobre a Editora Abril. Eu tinha feito uma matéria para a “Mundo dos Super-Heróis” uns anos antes. Acho que em 2013. Nós tínhamos uma seção a cada edição na qual a gente englobava uma editora. Fomos fazendo com diversas editoras que publicaram quadrinhos no Brasil. A RGE, a Bloch, a Press, e por aí vai. Até que chegou a Abril. Fizemos duas matérias, na verdade, pois não coube tudo. E mesmo assim ficou muita coisa de fora. Naquele momento ali, em 2013, eu já tinha sacado o potencial da pauta em si. Então, em 2018, quando tive essa ideia de montar a minha própria editora, comecei a estudar e fiquei com essas duas ideias. Ou o livro da editora Abril, ou o livro sobre os bastidores da Marvel e da DC. O livro da Abril, na verdade, estava como segundo lugar. Eu estava mais querendo fazer o livro sobre os bastidores da Marvel e da DC, porque eram coisas que tinham mais a ver com o que eu fazia na “Mundo dos Super-Heróis”. Estava mais próximo do que eu fazia no dia-a-dia. Era uma coisa que, na minha cabeça, teria menos dificuldades. Planejei fazer esse livro para lançar em 2019, no Festival Guia dos Quadrinhos, que é um evento aqui de São Paulo organizado por um amigo nosso, Edson Diogo. Quando expliquei para ele essa ideia de fazer o livro, que eu tinha pensado em algo sobre os bastidores da Marvel e da DC, mas que eu achava que era mais bacana que um livro da história da Abril, ele que me desencorajou da ideia sobre a Marvel e DC. Ele me incentivou pelo da Editora Abril. Lembro que ele falou: “Não, esse da Abril é perfeito. Se eu fosse você, faria esse livro da Abril. Pelo menos, para um festival Guia dos Quadrinhos, ele tem tudo a ver com o público”.
2018 foi, também, o ano em que a Editora Abril encerrou de vez sua participação no mercado de quadrinhos, não foi?
Sim. A Abril tinha acabado de fechar o setor dela de quadrinhos. Isso foi em junho de 2018, e eu estava discutindo com o Edson em novembro de 2018. Então, eram cinco meses depois. Era uma coisa cujo trauma ainda estava ali. A ferida estava aberta. Ainda tinha aquela coisa de que a Abril tinha dado meio que um golpe nos funcionários, decretando falência. Feito um pedido de recuperação judicial e não pagado os funcionários. Tinha um monte de gente reclamando. O assunto estava no ar. E decidi pelo livro da Abril. Então, chamei um amigo meu, o Maurício Muniz, que é um parceiro de vários projetos. Nós fizemos várias coisas juntos. A “Mundo dos Super-Herois”, A “Mundo Nerd”, que foi uma revista que criamos juntos, também e era publicada pela Editora Europa. Já tínhamos escrito um livro uns anos antes sobre filmes de vampiros. Ele também gostava muito dessa ideia de um livro sobre os quadrinhos da Abril. Também era um sonho dele. Então, o chamei para fazer junto comigo. Gosto de parcerias. Bastante. Não sou muito fã de fazer as coisas sozinho. E a gente se dá muito bem. Era o cara perfeito para a empreitada. Ele, igual a mim, cresceu lendo os quadrinhos da Abril e tinha essa memória afetiva, conhecia várias das pessoas que trabalharam lá. Ele mesmo prestou serviço para a Abril como tradutor durante muito tempo. Tinha muito a ver. Era um assunto que nos interessava bastante. Isso em novembro de 2018. Final de outubro, novembro. Na minha cabeça, inocentemente, pensei: “Bom, tínhamos aquelas duas matérias publicadas na ‘Mundo dos Super-Heróis’, em 2013, que, juntas, davam umas 16 páginas. Temos meio que um resumo de tudo”. Imaginamos, né? Pegando aquelas duas matérias que fizemos na “Mundo”, faríamos algumas entrevistas a mais para potencializar, turbinar o material, e, na nossa cabeça, em abril de 2019, estaria tudo pronto. Na “Mundo dos Super-Heróis”, nós fazíamos matérias super complexas, dossiês de 50 páginas às vezes, e fazíamos em um mês. Eu pensei: “Não é possível que em seis meses eu não faça esse livro” (risos). Fizemos uma campanha no Catarse para conseguir a grana para a impressão e naquele momento eu já fui saindo da Editora Europa. Continuei fazendo a “Mundo dos Super-Heróis” durante algum tempo ainda, mas já tinha comunicado para eles. Durante um período, eu até tinha meio que acordado com eles que continuaria fazendo a revista de casa. Junto, eu ia tocar o livro. Mas logo depois descobri que não daria. Aí decidi sair de vez para me dedicar de cabeça, mesmo, ao livro. Foi quando aconteceu uma coisa que mudou tudo. Na verdade, duas coisas. Primeiro que o retorno no Catarse foi muito bom. Logo de cara, batemos a meta. Tínhamos pensado em 25 mil reais de meta. Mas eu já tinha feito uns cálculos de que precisaria de, pelo menos, uns 40 mil. O resto eu ia completar com um dinheiro meu, com as minhas economias. Fiquei com medo de pedir muito e ficar inviável de realizar. Mas, no final, nós conseguimos recolher quase 60 mil. Foi mais que o dobro no final. Vimos que o interesse pelo assunto era muito grande. Começamos a fazer entrevistas com ex-funcionários para conseguir mais detalhes de bastidores. Foi quando notamos que o assunto era bem mais complexo do que a gente imaginava. Porque as entrevistas começaram a render muitas e muitas horas. Nós fizemos, por exemplo, uma entrevista com o Sergio Figueiredo, ex-diretor da Abril, que durou nove horas! Fomos almoçar com ele em um restaurante ali na Rua Augusta, em SP, ficamos do meio-dia às nove da noite conversando (risos). E depois ainda falaríamos com ele várias vezes sobre outros assuntos que tinham faltado. Tinha muita coisa para ser falada. Logo depois, quando comecei a pesquisa, notei que tinham vários furos na história da Abril, coisas que não fechavam. A história oficial era meio, digamos, conto da carochinha. “Aquela história oficial de que o Victor Civita chegou ao Brasil em 1950, lançou o Pato Donald, e tudo foi um puta sucesso desde o início. E depois ele lançou a Capricho. Aí os filhos dele começaram a trabalhar com ele. Eles lançaram as coleções, lançaram a Veja, e foram todos muito felizes, e montaram a maior editora da América Latina”. Só que comecei a questionar: “Ok, legal, o Victor Civita era estrangeiro, veio para o Brasil, e ele não tinha nenhuma experiência antes como editor. Mas como é que ele conseguiu montar a revista?”
Como foi a divisão dos trabalhos de captação de entrevistas e de escrita entre você e o Maurício?
Nós tínhamos dividido o trabalho desde o começo. Peguei a primeira parte do livro, que seria da criação da editora nos anos 1950, e iria até a saída do Maurício de Sousa no final de 1986. E o Maurício Muniz ia contar dali em diante. Dei a chance dele escolher qual das metades ele ia fazer. Ele preferiu essa porque pegava a parte dos super-heróis, que era a que ele mais conhecia. Era, também, a que eu mais conhecia (risos). Mas como nunca fui um grande conhecedor de Disney, achei bacana pois eu ia aprender bastante sobre ela. Foi uma bela oportunidade. E fui a fundo. Você estava perguntando a questão da pauta. Foi nesse ponto que decidi fazer o livro. Porque vi que tinha muito assunto. Vi que tinha um interesse grande do pessoal. E vi, também, que não existia nenhum livro do gênero. Nenhum livro que contasse a história dos quadrinhos da Editora Abril do início até o fim. Fui atrás de muitos materiais, colher muitas informações, e comecei a descobrir muita coisa sobre os primeiros anos da editora. Por exemplo, eu já sabia que “O Pato Donald” não era a primeira revista da Abril. Sabia que era a “Raio Vermelho”. Mas era uma revista que eu nunca tinha visto, e também nunca tinha tido interesse de ter ido atrás de como era essa revista, do que ela publicava. E comecei a descobrir um monte de coisa a respeito. Ela tinha publicado várias edições, publicado personagens que hoje são praticamente desconhecidos, alguns personagens italianos. Depois de um tempo, descobri que a “Raio Vermelho” não foi a primeira publicação da Abril brasileira, que havia importado uns livros publicados pela Editorial Abril argentina, que era a empresa original que deu origem à Abril brasileira. A Editorial Abril era a empresa do irmão do Victor Civita. Então, foi assim, descoberta atrás de descoberta. E eu como fã do assunto, estava me deliciando com aquilo tudo ali, sabe? Porque a impressão que eu tinha era de que eu tinha aberto um baú do tesouro, que ninguém tinha essas informações. Elas estavam enterradas lá, escondidas. Não tinha isso publicado em lugar nenhum. As pessoas tinham parado de discutir. Você via os livros oficiais sobre quadrinhos, e eles se limitavam a repetir a história oficial que a Abril contava sobre ela mesma. Ninguém foi lá questionar como foram os primeiros anos? Como foi criada a revista do Pato Donald? Então, essa parte para mim, na verdade, foi um parque de diversões. E foram meses indo atrás. Decidi fazer uma pesquisa mais profunda do que nunca. Eu já estava acostumado com os dossiês dos super-heróis, que era aquelas reportagens nas quais a gente ia a fundo. Dossiês de sessenta páginas, às vezes. E nessa eu fui mais a fundo ainda. Chequei todas as revistas e fui atrás da origem dos irmãos Civita. Foi quando comecei a entrevistar as poucas pessoas que ainda estavam vivas daquele período.
Como foi esse processo de captação de fontes que passaram por aquele período mais antigo dos quadrinhos da Abril?
Aí entra uma pessoa que foi fundamental para o processo, que foi o Gonçalo Júnior. Porque o Gonçalo é um grande amigo meu e me ajudou muito na criação da minha empresa, da minha editora. Ele e a editora dele, a Noir, tem uma história meio parecida com a minha. Ele trabalhou muitos anos no mercado e chegou uma hora em que quis publicar as coisas dele por conta própria. Ele montou a Noir para isso. E ele meio que abriu as portas para mim. Deixou aberta todas as informações, toda a experiência dele com a Noir. Inclusive com o que deu errado, para que na Heroica eu não cometesse os mesmos erros. Ele abriu caminhos para eu ganhar tempo. Explicou tudo como ele fazia, como ele vendia os livros, os acordos que ele tinha com os livreiros. Ele foi meio que um padrinho da editora. E na questão do livro da Abril, ele foi além. Porque como ele tinha escrito um livro em 2005 sobre a carreira do Cláudio de Souza, que foi um dos principais diretores do núcleo de quadrinhos. Aliás, muitos dizem que foi o maior diretor de histórias em quadrinhos da história da Editora Abril. E o Gonçalo tinha vasto material das entrevistas com o Cláudio de Souza. E ali em 2018/2019, ele já tinha morrido. Ele morreu em 2012. E não tinha mais como falar com ele. E o Gonçalo me liberou todas as gravações que ele tinha com o Cláudio de Souza. Ele me liberou todas as informações do livro dele, “O Homem Abril”, que é essa biografia do Cláudio de Souza. O Cláudio de Souza foi um diretor que acho que era o funcionário de número sete ou oito da Abril. Ele entrou na editora em 1951 e ficou até 1974. Ele teve uma passagem monumental no setor de quadrinhos da Abril entre 1971 e 1974. Quando ele entrou, o setor de quadrinhos vendia um milhão e meio por mês de quadrinhos. Quando ele saiu, em 1974, vendia por volta de quatro milhões. Ele praticamente triplicou a quantidade. Foi um cara que criou diversas revistas importantes. Ele foi o cara que criou o “Manual do Escoteiro Mirim”. Foi o cara que criou a base para montar toda aquela equipe que fazia histórias brasileiras da Disney. E, ao mesmo tempo, ele foi um cara que teve problemas sérios lá, pois a filha dele foi levada pela ditadura. Foi lá para os porões do DOPS. E isso mexeu profundamente com a cabeça dele. E ele começou a descontar isso nos funcionários. Era um período em que a Abril estava bem complicada com a Veja, pois estava dando um prejuízo tremendo, e ainda tinha um censor dentro da redação. Todos os donos, o Victor Civita e os filhos dele, estavam muito focados na Veja, e eles meio que deixaram o setor de quadrinhos funcionando sozinho. E o Cláudio de Souza se sentiu o dono do negócio e meio que virou ali um pequeno ditador. Começou a passar da medida. Tanto que conto os detalhes que ele perseguiu o Primaggio (Mantovi), que era o responsável pelo estúdio de criação, e por aí vai. O Gonçalo também me liberou as entrevistas que tinha feito com o Roberto Civita, que era o filho do Victor Civita, e que já havia falecido em 2013. Além disso, ele me liberou entrevistas com o Álvaro de Moya, que foi um dos primeiros funcionários da Abril, trabalhou lá no comecinho, no lançamento da revista do Mickey. E eu fui conhecendo as pessoas. Foram aparecendo diversas pessoas no meio do caminho que tinham várias e várias informações. Conheci um colecionador no interior de São Paulo que tinha a coleção completa da “Raio Vermelho” e da “Rayo Rojo”, também, que era uma revista da Editorial Abril que publicou algumas histórias que vieram para o Brasil. Fui atrás disso tudo e foi uma diversão. Fiquei meses ali pesquisando o negócio. O problema é que nós tínhamos pensado que a gente ia subir o pico do Jaraguá e, conforme entremos de cabeça ali no projeto, vimos que a gente estava subindo o Everest de tão complicada que era a coisa (risos). E com isso, o nosso prazo inicial foi para o espaço. Aquela ideia de lançar em abril de 2019, sem chance. O livro acabou sendo lançado um ano depois. Em abril de 2020, para você ter uma ideia. Atrasou um ano o lançamento. Nesse período, eu fui passando as informações aos apoiadores do Catarse, que eram 588 ao todo. Mas eles foram bem compreensivos. Fui mostrando toda a pesquisa que eu estava fazendo. Tudo o que a gente estava encontrando. E só para você ter uma ideia, inicialmente, o livro tinha uma ideia de ficar com 256 páginas. No final, ele ficou com 544. Ele mais que dobrou o tamanho.
Lendo seu livro, fui meio que transportado no tempo para o começo dos anos 1990, quando, começando a adolescência, também fui apresentado aos quadrinhos de super-heróis. Lembro que minha gênese na leitura da DC foi dentro da febre midiática da “Morte do Super-Homem” e, com a Marvel, o relançamento da versão sem cortes de “Guerras Secretas”, em “A Teia do Aranha n. 62”. Quando foi a sua?
A minha gênese foi em 1985, com o “Hulk n. 21”, e o “Capitão América n. 70”. Naquela época, eu não comprava as revistas na banca. Venho de uma família muito humilde. Meu pai, motorista de ônibus; minha mãe, dona de casa. Não tinha dinheiro para comprar na banca. Apesar dos gibis serem baratinhos naquela época, a gente era tão pobre que nem o gibi na banca eu conseguia comprar. Eu comprava na banca de revistas usadas. E esse dono da banca de revistas usadas sempre tinha coisas relativamente recentes. E eu comprava mais barato. E sempre que eu completava dois gibis, eu ia lá e trocava por um. Não conseguia ter coleção. Eu só vim a ter coleção anos depois. Quando comecei a trabalhar, fui e comprei tudo de novo. Mas foi ali que começou. Antes de 1985, eu já lia alguma coisa um pouco antes. Lembro de ter lido algumas edições do Homem-Aranha, da RGE. Gostava muito do Tio Patinhas, daquelas histórias do Almanaque Disney, que eles iam para aquelas civilizações. Eram as histórias do Carl Barks, mas eu nem sabia quem era o Carl Barks. Da Turma da Mônica, eu gostava muito do Chico Bento. Gostava muito do Pelézinho, também. Mas, assim, era uma coisa que eu lia, mas, sabe, não tinha assim, digamos, uma atenção mais séria. Um dia eu lia Disney, outro dia eu lia a Mônica, depois eu lia alguma coisa de heróis que aparecia. E por aí vai. Depois que comecei mesmo nesse período que eu tinha uns 12 anos. Aí foi sério mesmo. Não parei mais. Fazia o possível para ler. Tinha alguns amigos que liam, também, mas depois eles saíram da escola. Acabei ficando eu sozinho lá (risos). Não tinha ninguém para emprestar nada. Era algo meio raro. Mas durante um período, algumas pessoas me emprestaram, também. Depois fui estudar desenho em um colégio técnico. Lá, realmente, tinha muita gente que gostava de quadrinhos. Em 1990, fiz um curso em uma oficina cultural, e o Toninho Mendes, que era o dono da Circo Editorial, me chamou para ser um assistente lá. Durante seis meses, eu trabalhei na editora que fazia “Chiclete com Banana”. Desde essa época, eu já tinha uma ideia de lançar uma revista igual a “Mundo dos Super-Heróis”. Mas ela só deu certo mesmo em 2006.
Como colecionador dos quadrinhos em formatinho da Abril desde os anos 1990, uma das coisas que mais me interessavam na leitura de “O Império dos Gibis” foi a fase do começo da Marvel e da DC na editora. As fases tiveram grande participação dos trabalhos de tradução do Jotapê Martins e o afinco editorial do Helcio de Carvalho. E uma das questões que me deixavam curioso era saber sobre as adaptações, cortes e mudanças ocorridas no formato das HQs vinda dos Estados Unidos para as menores publicadas aqui. Há aquelas diversas conversas em fóruns sobre tais cortes, inclusive. E o livro abrange bem essas explicações, principalmente no explicar das razões para os cortes na saga “Guerras Secretas”.
Esse foi um norte do livro. Foi algo que eu e o Maurício buscamos desde o início: explicar o porquê das coisas. Porque a Abril é cheia de lendas urbanas. Aquela coisa assim: “Ah, a Veja dava prejuízo e quem bancava a Veja e a Abril era o Pato Donald”. Bom, vamos atrás para ver se isso era verdade. “Ah, a revista do Drácula foi cancelada porque o Victor Civita não gostava dela”. Então, a gente foi pegando essas lendas e fomos atrás para descobrir o porquê. No caso específico do que você falou, tem muitas pessoas que tratam o Jotapê como um vilão, como se ele tivesse um prazer enorme em cortar. Como se não estivesse nem aí para ninguém e que se danem os leitores (risos). Dá a entender que o cara era meio sádico. Mas, na verdade, o que acontece é o seguinte: os quadrinhos daquela época, o perfil de quem lia os quadrinhos daquela época, era bem diferente. Existia uma grande maioria que lia quadrinhos por diversão. Pessoas que compravam como passatempo. E isso foi até a metade dos anos 1980. Depois, aos poucos, esses caras foram desaparecendo. Mas, o que acontecia era que tinha um cara que passava pela banca, depois ia pegar um ônibus, ficar na fila do banco, e ele tinha aquela tarde livre e ia lá e comprava uma revista do Capitão América pra ler. Muitos jogavam a revista fora depois, ou davam para outra pessoa ou davam para uma criança. Ou então a deixavam perdida em casa e a mãe jogava fora. Diversas situações. Não tinha esse espírito de colecionador que ficam vendo todos os pequenos detalhes. As pessoas queriam simplesmente um passatempo. Era mais ou menos como se fossem aquelas pessoas que compram palavras cruzadas, ficam fazendo, e depois, quando completam, jogam fora. Uma boa parte desses caras eram dessa linha. Compravam para se divertir, ou porque gostavam de alguns personagens, assistiam ao desenho do Homem Aranha na TV, e queriam ler uma história do Homem Aranha, também. Não tinham maiores pretensões. O cara não queria ser nerd. Não queria ir além. E tinha uma parcela, já naquele período, que eram caras tipo nós, mais apaixonados pelo assunto, que já acompanhavam de um tempo, que olhavam com mais atenção, e por aí vai. E aí eram esses caras que implicavam com os cortes. Porque, durante muito tempo, até por conta da economia brasileira, finalzinho da ditadura até o Collor, o Brasil ainda tinha aquela coisa da reserva de mercado. Era difícil vir coisas de fora. Não era fácil encontrar as revistas originais para saber que determinada história teve X páginas cortadas. Eu, mesmo, li “Guerras Secretas” a primeira vez e estava de boa (risos). Eu tinha 12 anos, cara, e achei legal pra caramba. Chegou no final, o Homem Aranha voltou ao uniforme dele, ok. Até estranhei que o desenho era um pouquinho diferente do resto, mas, beleza (risos). Pau na máquina. Eu só fui saber anos depois que tinham acontecido todas aquelas mudanças. Então, o Helcio e o Jotapê estavam muito focados em atender a esse público. E para atendê-los, o que eles faziam? Eles tinham que adaptar o material ao padrão da Abril.
E esse padrão seguia, também, questões de planejamento financeiro, de capacidade de impressão, certo?
Isso. O padrão da Abril era formatinho. Naquela época não existia chance de você fazer nada maior que o formatinho porque era uma produção industrial. Os caras faziam um cálculo no final do ano de quanto que eles iam gastar de tonelada de papel; quantas revistas eles iam fazer; por quanto eles iam vender; qual era a margem de lucro e qual era o lucro que a empresa ia ter. E tinha que seguir aquilo ali. Não tinha como chegar no meio do caminho e falar: “Seu Victor (risos), essa revista aqui tem 84 páginas, mas, olha, eu não posso mais cortar essa página. Eu preciso de mais um caderno”. O diretor ia demitir esse cara. “Se liga! Você tem dia para entregar e taí o seu prazo, taí a sua quantidade de página. Se vira!” E foi o que eles fizeram. Eles tinham programado colocar X histórias lá. E, de repente, alguém da publicidade vendia uma página dupla de anúncio. Já não era muito fácil conseguir anúncio de publicidade para os quadrinhos. E aí aparecia uma página dupla lá? O cara ia dar um jeito de cortar em algum lugar para colocar. Era uma realidade. Era uma questão, mesmo, de bastidores. Uma questão do negócio em si. Eles estavam focados muito nisso. Por que eles faziam isso? Porque, atendendo esses leitores que eram a maioria, eles conseguindo colocar anúncios para rentabilizar a revista, eles conseguindo selecionar as melhores histórias, essa junção toda é que deu força para as revistas continuarem. Tanto que se você pegar as revistas da Abril, as numerações das de super-heróis, a Abril sempre tem as mais altas. “Capitão América”, “Homem-Aranha” e “Conan” chegaram a mais de 200 edições. “Superaventuras Marvel” chegando a 170. E vendiam uma quantidade absurda, comparado com hoje. 50, 60 mil. “Homem Aranha” vendia mais de 100 mil. Então, na verdade, eu entendo como editor. Pensando como editor, pensando que ele tinha uma meta a cumprir, que ele tinha que entregar a revista no prazo, que ele tinha que atender o que os leitores queriam, e que o negócio tinha que dar lucro para continuar. E eles conseguiram. Mesmo com as limitações todas, eles conseguiram fazer um trabalho bacana. Agora, como leitor, alguns cortes eu acho que ficaram até melhores que o original (risos), pra falar a verdade. Porque, algumas histórias ali, eu cheguei a ler depois a versão da Panini, que era mais completo e tal. No caso, a gente sempre comenta “X-Men”, do Chirs Claremont. O texto dele é meio chatinho, assim. Extremamente detalhados. E eles simplificavam isso. E isso, eu acho, deixava o texto até melhor. Então, sendo editor, entendo essas escolhas todas e acho que realmente eles fizeram o que tinha que ser feito. Se não fosse assim, talvez as revistas não tivessem durado tanto. Mas como fã, tenho algumas restrições. Alguns dos cortes foram cortes bem grosseiros. É engraçado porque eu conhecia alguns deles. Os dois mais falados de todos foram os vários que ocorreram em “Guerras Secretas” e aquele de “A Queda de Murdock”. A seringa da Karen Paige que virou navalha. Esses foram os mais conhecidos. Mas depois, quando eu fui fazer a pesquisa do livro, comecei a descobrir vários. Um amigo chegou a fazer um levantamento. Nós estávamos com a ideia de colocar nos extras do livro todos esses cortes. Já tínhamos listado mais de 500. Mas não teve espaço. Era muita coisa. Alguns me deixaram meio puto. Eu lembro que tinha uma edição em que eles fizeram um especial de “Mestre do Kung Fu” que saiu na mesma época de “Superaventuras Marvel”. Só que esse especial só teve um número. Depois comparando com a revista original, vi que eles eliminaram uma (página) dupla que era linda no começo da história, e que fazia um resumo do que tinha acontecido antes. E era uma dupla toda desenhada. As cenas, se não me engano, formavam até umas palavras. Um trabalho de arte lindo. E na história da Abril, simplesmente eliminaram essa dupla. Ela tem a primeira página, eliminou essa dupla seguinte, e já vai para o restante, sabe? Um puta trabalho artístico ferrado que só fui descobrir décadas depois que existia. De repente, podiam ter cortado outra coisa. Alguns cortes eu questionava, assim. E algumas coisas eu achava meio esquisita, como quando pegavam cinco histórias e transformavam em uma. Isso mexia profundamente na história. Não era só eliminar uma página e cortar um balão. Teve histórias ali que foram reeditadas. Ali, acho que passou da medida. Acho que tomaram gosto pela coisa e meio que fugiu do controle (risos).
Lembro-me da questão dos letramentos manuais que a Lilian Mitsunaga fazia. Aquele trabalho incrível em “Asilo Arkham”, do Grant Morrison (que a Panini deu vexame – depois corrigido – de não usar o mesmo tipo de apuro da Lilian). No papo com ela, vocês abordaram muitas desses detalhes?
Essa entrevista especificamente não fui eu que fiz. Foi o Maurício. Porque nós entrevistamos quase 50 pessoas. Tirando o que devem ser umas seis que são do material de arquivo do Gonçalo, foram pelo menos umas 40 pessoas. E uma parte, eu e o Maurício entrevistamos juntos. Nós buscamos o pessoal, digamos, mais de frente, mesmo. Aqueles editores que participaram ali, mesmo. Pessoas como Helcio, o Figa (Sergio Figueiredo), o Julio de Andrade. Esses aí, eu e o Maurício fomos pessoalmente. E tentamos acertar a agenda o máximo possível que deu. Alguns outros, também, eram importantes, mas por conta de agenda, não deu para irmos os dois. Então, dividimos. Até para facilitar o trabalho, senão o livro não ia terminar nunca. Então, ele ficou com alguns e ou com outros. No caso da Lilian, o Maurício fez por já ter um contato maior com ela. O Festival Guia dos Quadrinhos, o Maurício participava muito junto com o Edson. O Edson meio que o contratava para ajudar na organização. E teve um ano que eles fizeram uma homenagem para a Lilian. Então, eles já tinham uma entrevista com ela que nós usamos como base. Essa entrevista é até citada na bibliografia. E depois o Maurício fez uma nova entrevista com ela, também. A Lilian sempre foi muito tímida. Ela trabalhava em casa, praticamente. Nós falamos bastante do trabalho dela. Ela nos deu as informações, e algumas nós não colocamos em forma de depoimento, mas serviu mais para confirmar as informações que a gente tinha do processo em si. Ela foi uma fonte bem bacana. Conseguimos bastante coisa com ela.
A questão dos espaços nos textos após a adaptação do formato americano para o formatinho também era algo a ser levado em conta. Como era esse processo?
Essa questão das letras é crucial para as histórias de super-heróis. Quando os super-heróis chegaram na Abril, eles já tinham passado por outras editoras. Eles já tinham sido em formato americano na Ebal e algumas outras editoras, como a GEP. Depois eles já tinham ido para o formatinho na Bloch e na RGE. Na Abril, eles ficaram de vez no formatinho. A Abril demorou muito tempo até publicar alguma coisa em formato americano. Na Abril, eles pegaram os super-heróis e colocaram no mesmo sistema da Disney e da Turma da Mônica. Então, eles usavam um tamanho de fonte que era a mesma. Só que os textos dos super-heróis eram muito maiores. Por isso que eles tinham que cortar para encaixar naquele tamanho de letra. Esse tamanho de letra existiu porque, depois de muitos anos estudando e testando, eles descobriram que se usassem o corpo 8 com espaçamento 8, e deixassem uma quantidade X de balões por página, a leitura seria muito mais agradável. A Abril tinha muito isso. Era uma busca de eficiência de produção, sabe? Isso aparece em vários trechos do livro. O Primaggio (Mantovi), por exemplo, viu que eles estavam perdendo muito tempo fazendo os desenhos muito grandes, e aí pediu para os caras desenharem menor, em uma certa espessura de traço para quando reduzisse ao formatinho, não perdessem. Lá no começo, também, o Cláudio de Souza falava que o material que vinha para a “Raio Vermelho” era o da Argentina, da Editoria Abril de lá. Por conta de falta de verba, eles reaproveitavam o desenho da página inteira. Só mudavam o texto. Só que lá na Argentina, eles deixavam os balões todos quadrados. E ficava um negócio esquisito aqui no Brasil. Com o tempo, eles começaram a deixar os balões mais redondos. Então, assim, existe sempre uma procura pela excelência gráfica e por atender bem o leitor que eu acho que tudo isso se refletiu. Então, quando os super-heróis chegaram na Abril, eles foram adaptados para aquele formato. Porque na cabeça dos diretores, não havia diferença entre história do Homem-Aranha e história da Luluzinha, ou do Cebolinha, ou do Tio Patinhas. Era tudo quadrinho, tudo para criança, entendeu? Aí o Helcio e o Jotapê que fizeram ali o se vira nos trinta para tentar, mesmo com aquelas limitações, fazer um trabalho melhor. Porque eles sabiam que se fizessem simplesmente como a RGE fazia, de pegar lá e publicar de qualquer jeito, não ia dar muito certo. Como não deu. Tanto que os títulos de heróis que a RGE tinha foram cancelados. O da Abril continuaram por muito tempo.
Essa abordagem da parte técnica da criação, bem como o detalhar dos lançamentos da Abril, é bem perceptível no desenvolvimento do livro, inclusive.
Eu tive uma preocupação muito grande com essa parte técnica, porque o plano era que o livro fosse muito além de um livro só para colecionadores. Ele conta a história da editora Abril, mas ele não é um livro sobre a história da editora Abril. Ele é um livro sobre os quadrinhos da editora Abril. Então, os quadrinhos lançados por ela sempre são o personagem. Os colaboradores são importantes. Os donos são importantes, mas mais importante que tudo, para o livro, são as revistas. As revistas sempre foram o foco. A ideia foi assim: explicar porque as revistas foram criadas, como elas foram criadas, e como elas eram criadas. Como a história era muito longa, começava lá nos anos 1940 e ia até 2018, eu tive uma preocupação muito grande de explicar os processos para o livro servir, também, como um documentário sobre a imprensa brasileira. Tanto a imprensa quanto a evolução das artes gráficas. Eu sou editor de arte, então, adoro essa parte gráfica. E sempre tive muita curiosidade. “Como eram feitas as revistas antes do computador?” “Nos anos 1950, como eles montavam as revistas?” “Vinha fotolito pronto? Como era essa impressão?” Então, o que pude descobrir nessa área, coloquei no livro. Lá explica que, em determinado momento, a Abril mudou o sistema de impressão deles de off-set para rotogravura, que era um sistema muito próximo ao off-set, mas conseguia fazer impressões mais rápidas. Então, para a Abril, isso era perfeito. Assim, eles teriam um ganho de eficiência enorme que baratearia o custo. Então, todas as revistas eram impressas daquele jeito. Por conta disso, se pensar bem, até tinha uma perda de qualidade. Porque as outras editoras que imprimiam no sistema tradicional de off-set, as edições até tinham uma qualidade um pouco melhor. Mas, no geral, para a Abril era mais vantajoso fazer daquele jeito, porque o custo era menor. Ela podia vender um pouco mais barato, e capitalizava nas vendas. Foi um processo usado por décadas. Eu fui lá, consegui localizar algumas pessoas que trabalhavam na gráfica da Abril na época. Até apareceu aquela história que o cara fez uma sacanagem na pintura do Cebolinha (risos), e ficou parecendo que um pinto dele na hora do banho. E por aí vai.
No livro, você e Maurício trazem informações aprofundadas acerca do processo de censura que alguns títulos sofreram dentro da Abril, como foi o caso do cancelamento do título do “Drácula”, além das já citadas mudanças da página de “A Queda de Murdock”, onde o tema das drogas era abordado; “Camelot 3000”, com uma cena de lesbianismo, além do “Arqueiro Verde” e o personagem Ricardito, com, também, uma abordagem sobre drogas (que acabou sendo publicada). Na época, como foi essa abordagem da Abril?
A Abril começou com quadrinhos, mas ela só foi uma editora de quadrinhos no início. Alias, se você pensar bem, a Abril nunca foi uma editora somente de quadrinhos. Porque quando o Victor Civita assumiu a empresa em 1950, ela já publicava livros infantis. E ela ficou publicando livros infantis por um tempo. Essa história é meio obscura. Tanto que no livro digo que são livros raríssimos. Muitos ali a gente nem sabe se foram publicados todos, porque cada livro, aqueles “Pequenos Grandes Contos”, a coleção “Eu Sou…”, aquelas coleções saiam e depois vinha uma lista do que ia sair em seguida. Mas o negócio é tão obscuro que não se sabe se saíram todos os títulos listados. Acho que listei uns 40 títulos. Mas não se sabe se foram lançados 40 mesmo, sabe? Tanto que depois que lancei o livro, algumas pessoas até entraram em contato comigo e mandaram fotos de alguns livrinhos que eles tinham. Mas não consegui, realmente, encontrar todos. Mas, em resumo, a Abril, se você for contar com esses livrinhos, nunca foi uma editora somente de quadrinhos. No começo, ela focou nos quadrinhos porque eles eram a onda da época. Era uma coisa que vendia bem. O irmão do Victor Civita, o César, tinha a licença da Disney, pois havia trabalhado na (editora) Mondadori. Depois ele virou um representante da Disney. E a Disney era conhecida mundialmente. Então, eles tinham em mãos um material muito bom para publicar. Mas logo em 1952, a Abril já lançou a revista Capricho, depois lançou Manequim, depois ela lançou a Quatro Rodas. Então, chegou uma época em que os quadrinhos eram mais um setor dentro de uma empresa que não foi pensada para ser uma empresa de quadrinhos. Ela foi pensada para ser uma editora dos mais variados tipos. Editoras que atendessem o homem, a mulher, o executivo, a criança. Então, no caso dos quadrinhos, o foco da Abril era o mercado infanto-juvenil. Mais infanto do que juvenil, até. Então, o que acontecia era que o carro chefe era a Disney. E geralmente eles tentavam publicar coisas que eram parecidas com a Disney. Com o passar dos anos, a Abril até tentou publicar algumas coisas um pouco diferentes. Por exemplo, pouca gente sabe, mas a Abril publicou Tenente Blueberry nos anos 1970. Um personagem do Moebius de quando ele ainda nem se chamava Moebius, mas, sim, Jean Giraud. Mas não foi muito bem. E eles tentaram publicar algumas coisas europeias que eram mais de aventura, mas também não foi muito bem. Quando os super-heróis chegaram no final dos anos 1970, já existia uma cultura muito forte de que quadrinho, para a Abril, era quadrinho infanto-juvenil. O que saía daquilo ali, a Abril não pegava porque não interessava. Eles achavam que não valia a pena. Porque eles estavam muito contentes com a Disney. Vendia pra caramba. Eles tinham os títulos mais vendidos do Brasil. Era um setor que, teoricamente, estava resolvido. Eles não estavam querendo ficar arriscando muito. E outra coisa que existia era uma dúvida muito grande entre os diretores que se lançassem coisas demais, poderia ocorrer o que eles chamavam de canibalização. Por exemplo, você tem a revista da Mônica e a do Cebolinha. Se você lançasse outros títulos, eles poderiam roubar leitores dos outros títulos do Maurício de Sousa, como a Mônica e o Cebolinha. Aí você ia começar a ter um monte de títulos que vendessem um pouquinho. Iria dar mais trabalho, enquanto que se tivessem poucos títulos que vendessem muito, era mais interessante. Então tinha essa dúvida, também.
E em que circunstância chegou a HQ do “Drácula” para ser um dos lançamentos da Abril e seu subsequente cancelamento?
O personagem “Drácula” foi comprado junto com o pacote que tinha o material que deu origem a “Heróis da TV”, “Capitão América”, e eles publicavam “Drácula”. Mas o Drácula, desde o início, era um personagem que estava em uma temática fora desse núcleo infanto-juvenil. As histórias dele tinham um tom no qual a Abril não tinha interesse em investir. Tanto que logo eles tiraram o logo da Abril da capa. Quando eles faziam isso, era meio que um sinal de que a revista subiu no telhado. Porque, para eles, qual era o medo? A mãe assinava uma revista da Mônica, do Cebolinha, aí o filho via a revista do Drácula, e quando lia, tinha histórias de gente sendo morta com machadada, sabe? O medo da Abril era dos pais ficarem putos, cancelarem as assinaturas, e quererem processar a editora. Era um negócio que na cabeça deles não pegava bem. A Abril fugia disso. Por exemplo, teve um depoimento do Figa (Sergio Figueiredo) no qual ele explicou que chegou um momento entre os anos 1970 até o final dos 1990, que o que a Abril não publicou certas coisas porque não quis. Se ela quisesse publicar “Cripta”, ela teria ido lá e teria comprado com o licenciador, sabe? Teria oferecido mais dinheiro e teria lançado. Se ela não publicava quadrinho erótico, “Tex” e outras coisas é porque, simplesmente, não tinha interesse. Não queria. Ela já tinha os principais personagens do universo dos quadrinhos. Tinha a Disney, tinha o Maurício de Sousa, que já era uma coisa enorme, durante um período teve Hanna Barbera. Tinha Luluzinha, que também era um fenômeno. Vendia pra caramba. Tinha o material da Warner, como Tom e Jerry. Tinha Pantera Cor de Rosa, que também era uma potência. Tinha Pica-Pau. Enfim, tinha um portfólio completo. Então, o Drácula, o que pegou, era que os caras viram que aquilo ali não encaixava no portfólio e eles não queriam “manchar” esse portfólio. E olha que a revista do Drácula vendia bem. Vendia por volta de 60 mil exemplares. Um número bom na época. Tanto que o Helcio de Carvalho ficou puto quando cancelaram a revista (risos).
Já com a cena do beijo em “Camelot 3000” e as abordagens relacionadas às drogas nas outras edições, qual foi a análise da editora?
A questão do “Camelot 3000” e da Karen Page foi uma outra pegada, mas tem a ver com esse mesmo assunto. Por que? Bom, “Homem-Aranha”, “Super-Homem”, para os diretores da Abril, quando você fala de uma revista da DC, por exemplo, eles imaginavam o desenho dos Superamigos. Eles imaginavam que era algo para criança. Então, na cabeça deles, não existia quadrinho adulto para que os super-heróis tivessem temática adulta e para criança. Naquela época, o negócio estava surgindo ainda. Então, por exemplo, se você pegar aqueles primeiros materiais do “Capitão América”, “Heróis da TV”, eles até têm uma temática, às vezes, um pouco mais adulta, mas ainda é uma coisa mais antiga. Essa coisa mais adulta, como essa pegada de mostrar mais sexo, drogas, violência, era um negócio que começou a iniciar ali no começo dos anos 1980. E “Camelot 3000” foi um dos primeiros. Só que como o pessoal sabia que existiam essas limitações, os caras não iam deixar passar uma cena de lesbianismo em uma revista de super-heróis, que era do núcleo infanto-juvenil. Então, o Jotapê fez o corte lá. Já o Ricardito passou porque eles não entenderam muito bem a história. Foi meio que um vacilo lá da parte de censura interna da Abril (risos). Mas o caso da Karen Paige ainda tinha um outro problema. Em determinado momento, a Abril começou a fazer parte de um movimento contra as drogas no Brasil. Então, não pegava bem sair em uma revista da Abril um personagem se drogando. E eles não estavam nem aí para o contexto de que estavam mostrando que a droga era ruim. Não! Não iria sair. Ainda mais uma pessoa com uma seringa tomando um pico. É um negócio muito forte para a época. Os editores até achavam que em 1987 isso já estaria ultrapassado, que já tinha sido vencida essa barreira, mas não foi bem assim. Tiveram que mudar de última hora. Mas depois, realmente, mudou. Por volta de 1989 e 1990, já não teve mais como segurar. Depois do “Cavaleiro das Trevas”, aí a coisa mudou bem. Os diretores abriram os olhos. Começou a vir uma leva de quadrinhos mais adultos e ali começou um movimento mais forte dos quadrinhos voltados mais para colecionadores do que simplesmente para o cara que comprava quadrinho só como passatempo. Tanto que os gibis começaram a ficar cada vez mais complexos. Hoje, o cara compra um gibi para ler só por passatempo, ele não vai entender nada, tamanha a complexidade da cronologia.
Falando um pouco mais acerca do tipo de formato que os quadrinhos da Abril possuíam, essa marca do formatinho passou a mudar com o revista “A Espada Selvagem do Conan”, que surgiu com aquele aspecto magazine no primeira metade dos anos 1980, e, alguns anos depois, com a mensal do Batman, que tinha o tradicional formato americano. Como foi esse processo?
Na verdade, a revista do Pato Donald já tinha um formato magazine no começo, lá na década de 1950. O formatinho foi criado para se adaptar às máquinas que o Victor Civita montou em 1952. Além disso, Pato Donald não estava vendendo muito bem nesse formato grande. Então, ele fez uma estratégia para reduzir o formato e o preço. E conseguiu deixar mais atraente para as crianças. Com o passar dos anos, ele meio que adotou aquele formato ali. No começo dos anos 1970, a crise mundial do petróleo influenciou a indústria gráfica e a indústria do papel. Com isso, por conta da matéria-prima, outras editoras começaram a usar o formatinho. A própria Ebal começou a publicar histórias de super heróis em formatinho. Mas a Abril foi a pioneira no Brasil. E também foi uma ideia copiada lá da Itália, com as revistas da Mondadori, que lançavam o Mickey e do Pato Donald. Na Abril, essa questão do formatinho, isso só começou a mudar… (pausa) Com o Conan foi uma primeira mudança. Mas o Conan era um negócio meio à parte, assim. A revista do Conan teve uma história parecida com a da revista do Drácula. As histórias tinham um alto teor erótico, violência explicita, e para ajudar ainda as histórias eram em P&B. Tinha aquela lenda lá dentro da Abril de que quadrinho preto e branco não vendia. Mas tanto que o Conan, também, chegou um momento em que tiraram o logo da Abril da capa. Então, ele ficou em cima do telhado, também. Só que o Conan virou um fenômeno de vendas. Isso salvou o título. Enquanto o Drácula vendia 60 mil, o Conan vendia 120 mil. E a revista do Conan era mais barata de fazer do que a do Drácula, pois era P&B.
Sim. Lembro que no livro você comenta sobre isso ter chamado muito a atenção dos diretores. A rentabilidade do título diante do baixo custo de produção.
Sim. Era uma revista muito rentável. Então, era aquele negócio: “Beleza, nós temos a tradição e tal”, mas quando o dinheiro entra na jogada, as pessoas meio que abrem algumas exceções. O Conan acabou virando uma exceção. Mas, mesmo assim, não tinha sido quebrada uma barreira. Tanto que em 1985, e o livro também descreve isso, o Hélcio e o Jotapê queriam lançar uma revista baseada na revista da Marvel, a “Epic Illustrated”. Era tipo uma “Heavy Metal” da Marvel, no formato magazine. 20,5cm x 28cm, nessa média. Só que eles não toparam. E aí eles acabaram fazendo um formato intermediário. Fizeram um formatinho, não tão formatinho, que foi aquele formato da “Epic Marvel”, que eles publicaram “Dreadstar”, do Jim Starlin. Só que a revista durou somente seis números. E ali era um intermediário entre o formatinho e o formato americano. Mas o que realmente abriu os olhos para um potencial nesses quadrinhos com um formato maior e focado em um público mais adulto e com mais renda foi “O Cavaleiro das Trevas”. Esse foi o sub-capítulo mais profundo do livro. O Maurício que cuidou mais dessa parte. Ele foi a fundo em todos os detalhes do lançamento de “O Cavaleiro das Trevas”. E ali mostra bem todas as barreiras que o Helcio e o Jotapê tiveram que enfrentar para que “O Cavaleiro das Trevas” não saísse em formatinho. É um negócio que é meio impensável. Porque, realmente, era uma novidade. Então foi necessário que “O Cavaleiro das Trevas” primeiro estourasse na mídia brasileira, com as matérias publicadas no Estadão, na Folha e com um monte de gente falando do material para que os caras da Abril sacassem que eles publicavam DC e podiam lançar “O Cavaleiros das Trevas” também. E mesmo assim, não saiu exatamente como a edição americana. Eles tiveram algumas adaptações ali. Ficou um meio a meio. Saiu com um anúncio na quarta capa. O papel era outro, não tinha a lombada quadrada. Saiu um pouco diferente do formato prestige que havia sido publicado pela DC em 1985, 86. Aqui saiu em 1987. Então, ali meio que foi um divisor de águas, mesmo. E com esse sucesso, o Batman ganhou uma outra revista, que publicou até o Ano Um, mas ainda era em formatinho. Depois juntou essa ideia que a revista do Batman, que apesar de ser o Batman, não vendia bem. E era uma revista de linha. Aí eles realmente tentaram inovar colocando o Batman em formato americano. Pelo que me lembro, realmente foi a primeira revista de linha no formato. Acho que foi ela e depois teve uma outra do Conan, a “Conan Rei”. Logo depois tiveram as Graphic Novels, também. Então, foi tudo isso. Uma coisa foi levando a outra. Eles viram que as graphic novels estavam indo bem, então, eles também começaram a investir em revistas de títulos de linha um pouco mais sofisticados. “Monstro do Pântano”, depois, aumentou de formatinho para formato americano.
Sim, lembro dessa mudança com o formato do título “Monstro do Pântano”. Sempre acho bem curioso ver essa mudança de formato após o título já ter sido iniciado.
Esse período que coincide com a história do Batman foi um período em que a Abril decidiu publicar diversos títulos em formato americano. No caso do Batman, eles tinham começado do zero, mas no caso do Monstro do Pântano, eles decidiram aumentar o titulo que já existia. A Monstro do Pântano, se não me engano, acho que foi o próprio Jotapê que falou sobre. A ideia deles, desde o começo, era lançar em formato americano. A arte do Monstro do Pântano é cheia de detalhes. Imagina lançar em formatinho. Perderia tudo. É uma revista complicada para se fazer muita redução da arte. Então, desde o início eles já queriam o formato americano, mas não aconteceu. Só depois de uns números foi que acabou rolando.
Sendo um leitor, como disse, oriundo dos anos 1990, e observando como a mídia na época divulgou histórias como “A Morte do Super-Homem”, bem como lembrando das vendas recordes anunciadas da minissérie que o Jim Lee fez do “X-Men”, pergunto se os anos 1990 não foi um dos ápices da Abril, em sua opinião.
A Abril teve várias fases e se fosse para falar de um ápice dos quadrinhos mna editora, diria que foi de 1971 até 1995, no máximo. Nos anos 1970, a Abril chegou a vender 6 milhões de quadrinhos por mês. Ela vendia 72 milhões de quadrinhos por ano. Eram número que, dos anos 1980 para a frente, não se repetiram mais. Por quê? Primeiro que o Maurício de Sousa saiu da Abril. Quando o Maurício de Sousa saiu, ele já deixou um buraco assim de…(pausa). A gente até fez um cálculo para o livro. Foi algo em torno de 20% a 25%. Porque o Maurício de Sousa estava em forte expansão no mesmo momento em que a Disney estava em franca decadência. O Maurício de Sousa entrou em 1970 na Abril e ficou até 1986. A saída do Maurício da Abril foi o propulsor de várias mudanças ali. Já a Disney teve seu auge nos anos 1970. Em 1974, a revista do Tio Patinhas vendia por mês algo em torno de 520 mil exemplares. Era a revista que mais vendia no Brasil. De todos os títulos. Títulos jornalísticos, inclusive. Ela, de vez em quando, empatava com a Capricho. E era um período que já era tudo auditado. Já exista o IVC, que era a empresa que auditava as revistas. Pouco antes, o Assis Chateaubriand falava que O Cruzeiro vendia um milhão de exemplares, mas não tinha auditoria. Então, era tudo no boca a boca. Depois que foi criado o IVC, até por insistência do próprio Victor Civita, eles começaram a fazer as auditorias e foi ali que mostrou que realmente a Abril vendia mais que todo mundo. No final do livro tem lá os números de vendas. Foi um parto conseguir esses dados (risos). Era um negócio que não existia em lugar nenhum. Mas você vê ali nos anos 1970, o número de vendas das revistas da Disney era um negócio absurdo. E a própria Mônica, que foi aumentando cada vez mais. Com a saída do Maurício de Sousa em meados dos anos 1980, a Abril tomou um baque. Ai ela precisou ter que tapar o buraco. Foi quando os heróis começaram a receber um maior investimento. Calhou que naquela época os heróis passavam por um período de muito brilhantismo nos Estados Unidos. Foi quando juntou as reformulações da DC com “Crise nas Infinitas Terras”, com um maior investimento nas Graphics Novels, e a Abril tinha um licenciamento disso tudo. Então, na verdade, quando a Disney foi entrando cada vez mais em decadência, os super-heróis foram tomando espaço. Tanto que ali nos anos 1990, a Marvel era quem mais vendia. Metade das vendas de quadrinhos da Abril vinha da Marvel. Em 1995, inclusive, houve uma tentativa da Panini de pegar os direitos da Marvel e já publicar naquela época, e aí tiveram que fazer um acordo. Falaram com o Roberto Civita, que era o presidente da Abril na época, para tentar resolver isso, e nem ele sabia que a Disney já não era a que mais vendia. Ele ficou até espantado, achando que era o Pato Donald que ainda vendia mais na Abril.
E sobre os anos 1990?
O que se pode dizer em relação aos anos 1990 é que eles tiveram um período em que os quadrinhos de super heróis venderam muito bem por conta de alguns fenômenos. Em especial “A Morte do Super-Homem”, que foi o quadrinho de super herói, até onde se sabe, que mais vendeu até hoje aqui no Brasil. Teve tiragem de 200 mil exemplares e vendeu quase tudo. Se juntar ali aqueles números da Morte e Retorno do Super-Homem, dá facilmente mais de um milhão de cópias. Então, foi possivelmente o último grande fenômeno dos quadrinhos aqui no Brasil. Porque, desde então, às vezes o Maurício de Sousa consegue alguma coisa assim, mas tudo meio que foi caindo aos poucos. Inclusive o Maurício de Sousa. Se você olhar os números que estão nas tabelas do final do livro, tem as informações sobre as vendas do Maurício de Sousa mesmo após a ida para a Editora Globo e depois para a Panini. Até por comparação. E você vai vendo que a Disney, no começo, é um fenômeno, só que com os anos ela vai caindo, caindo, até chegar a números péssimos nos últimos anos. E o Maurício de Sousa chega a números estratosféricos de 300 mil exemplares e, às vezes, mais do que isso até. Mas se você for pegar os últimos números, a revista da Mônica estava vendendo, pela primeira vez, menos de cem mil exemplares. Foi em 2016, o último dado que eu consegui. E a partir dali as revistas em quadrinhos saíram do IVC, que já é um indício. Quando sai do IVC é porque a coisa não vai bem. E depois vieram todas essas crises seguidas. Crise editorial, crise política com o impeachment da Dilma, pandemia. Fico imaginando quanto deve estar vendendo hoje a Mônica. Mas também não sei te dizer. Em resumo, acho que o que aconteceu foi o seguinte. Pode falar que os anos 1990 foram os anos em que os super-heróis mais venderam, mas acho que o auge dos quadrinhos da Abril, realmente, ocorreram entre 1975 e 1987, por ali. Porque era o período em que a Abril ainda tinha tudo, tinha todas as grandes franquias, e tudo estava vendendo bem. Então, no contexto geral, ali foi meio que o auge.
Nos anos 1990 inclusive, vimos a Abril diversificar suas atividades, chegando a, inclusive, investir em diversos canais de TV, como a própria MTV Brasil. Esse foi um dos passos dados que indicou um começo de uma queda para a empresa?
A Abril ter investido em TV, sim. Aquilo foi um negócio que minou a empresa. Porque eles começaram a ter u m nível de investimento nessa área que era uma coisa absurda. Era coisa no nível de gastar US$500 milhões para lançar satélite. Era um dinheiro que se eles tivessem gasto com internet, por exemplo, de repente, hoje, estariam melhor. Mas a Abril, cara, era… (pausa) É difícil explicar a situação da Abril porque o que a acontece é que a Abril chegou a ser a maior editora da América Latina. Cheguei a ver um documento que confirmava que a Abril, em 1996, 1997, atuava em 25 áreas de interesse. 25 mercados, digamos assim. E era primeiro lugar, acho, em 23 desses mercados. Era uma empresa muito grande. Ela criava as principais revistas brasileiras em uma época que revista era um veículo de muita importância. Só perdia para a TV. Ela distribuía o próprio material. Ela tinha a melhor equipe de vendas, o melhor sistema de assinaturas. E ela também tinha uma gráfica onde imprimia. Em resumo: ela só não fazia o papel e não produzia eletricidade. Eram as únicas coisas do processo que ela não fazia. E ainda exportava para outros países. Era um monstro de empresa. E o setor de quadrinhos era mais um ali no meio. Só que era um setor que era meio um patinho feio. Enquanto o setor de quadrinhos dava, por exemplo, um milhão de lucro, a Veja, a Quatro Rodas, a Playboy dava 100 vezes mais. O setor de quadrinhos na Abril, perto do restante da empresa, era uma coisa menor. Não era o foco principal da empresa. Não era algo que o Roberto Civita estava preocupado. Eles não queriam que desse prejuízo, obviamente. Mas não era um negócio que os caras focavam. Tanto que nunca houve uma ideia da própria Abril ter os personagens dela, investir mais a fundo nisso. Ou chegar lá no começo e fazer uma parceria com o Maurício de Sousa, virar sócio dele, para tentar criar personagens tipicamente brasileiros, por exemplo. Nuca teve esse tipo de visão, sabe? É meio diferente da Panini, porque o foco dela é só o mercado infanto-juvenil. Panini é uma editora praticamente só de quadrinhos e de revistas de cultura pop. Ela não publica revistas sobre política. Ela não tem revistas, sei lá, sobre carros. Se tiver alguma coisa sobre carros, vai ser sobre os carros do Batman (risos). Não vai ter uma revista igual a Quatro Rodas, por exemplo. Então, a Abril tinha essa característica de uma empresa multi. E o setor de quadrinhos acabou sofrendo com isso. Porque não era prioridade da empresa e quando ela começou a sangrar por conta desses enroscos todos, o setor de quadrinhos acabou sendo influenciado. Em 2002, por exemplo, a Abril quase faliu. Chegou um mês lá que não tinha dinheiro para pagar os funcionários, de tão grande era a quantidade de dívidas, sabe? Tiveram que fazer uma reformulação monstruosa. Eles meio que mandaram metade dos funcionários embora. Aí em 2005 e 2006, estavam tendo recordes de faturamento, sabe? Era muito assim de altos e baixos. Quando estava ruim, mandava um monte de gente embora. Depois melhorava e eles contratavam todo mundo de novo e virava aquela empresa lotada de funcionários.
Os anos 1990 terminam para os quadrinhos de super-heróis publicados pela Abril em uma queda de vendas e de qualidade de material que foi notório. Tanto que, em 2000, eles tentaram reformular tudo, aposentando o formatinho e trazendo o formato Premium, só que custando quatro vezes mais. Chegou até a vender bem durante um período, mas depois naufragou a parte de super-heróis da Abril.
Esse período que você falou da Premium remete a uma proposta inicial do livro. Como a gente tinha essa ideia de falar da Abril como um império, eu estava brincando muito no começo de que ia ser uma alusão ao império romano. Em um primeiro momento, o livro foi dividido em três partes. O surgimento, a expansão e a decadência do império. Depois, com o tempo, vimos que (o assunto) era muito amplo e começamos a aumentar. Ficaram os primeiros anos, a expansão, a época de ouro, depois a era heroica, que foi quando os super heróis tinham ficado mais em evidência, e depois a decadência. Só que vimos que a decadência, na verdade, começou lá na frente. Em resumo, fomos criando subdivisões. E uma subdivisão que criei depois de uns meses de trabalho foi exatamente essa que mostra o período que teve o baque com os super heróis, que foi em 1997. Porque começou a rolar duas coisas ao mesmo tempo. Uma foi uma queda indiscriminada na venda de quadrinhos. Começou a cair muito. “Homem-Aranha”, que vendia 80 mil, começou a vender 20 mil. De uma hora para outra. Se você pegar os números que tem nessas tabelas IVC, você vê que a queda é absurda. Isso principalmente super-heróis. “Turma da Mônica” ainda se manteve. A Disney também caiu. No caso dos super-heróis, foi um período em que, criativamente, não estava daquelas coisas. Porque muitos dos principais autores da Marvel e DC tinham saído para montar a Image. A Marvel e a DC tomaram um baque ali. Principalmente em 1992 e 1993, como a Abril só publicava o material depois, tinha um gap aí, às vezes, até de quatro anos. Então, realmente, estava um período meio complicado. Foi o período do (Homem-Aranha e a) “Saga do Clone”. Do Batman paralítico. São coisas que alguns leitores até gostavam, mas já tinha muita gente torcendo o nariz. Mas começou a ter uma queda. Foi naquele momento, também, que a internet começou a pegar mais forte. Os games deram um salto tremendo. Começaram a ficar bem mais interessantes. Foi um período que a própria Abril começou a investir em TV a cabo. De repente, as crianças tinham ali um canal, o Cartoon Network, e podiam ficar o dia todo assistindo desenho. De repente, não tinham mais tempo para ler quadrinhos. Então, começaram a surgir vários concorrentes. E também era um período em que a Abril começou a ficar mal das pernas por conta desse investimento em TV que não acabava nunca. E ela não conseguia os assinantes suficientes para pagar o custo. Começou a influenciar no resultado da empresa. E no caso da Marvel, especificamente, a Panini já estava de olho para pegar o material. Juntou tudo isso e deu aquele capítulo de “Perdas e Danos”, que há no livro. As coisas vão degringolando. Por conta da crise, do momento ruim da Abril, eles acabam com o departamento de criação da Disney, mandando embora todos aqueles funcionários. Muitos ali com mais de 25 anos de casa. Caras que passaram a vida inteira ali, criando histórias da Disney, de repente foram demitidos. Logo depois começaram a diminuir vários títulos. Começaram a mandar um monte de gente embora. E a principal mudança foi essa que você comentou: a extinção do formatinho. Acabaram com todos aqueles formatinhos e ficaram só cinco revistas em um formato totalmente novo, com um preço três, quatro vezes maior. Realmente, ali foi uma aposta arriscada que em um primeiro momento não deu muito certo. Assustou todo mundo.
Você citou a Panini e um pretensão já em 1995 de tentar adquirir os direitos de publicação da Marvel no Brasil. É curioso observar como em 2001/2002, isso realmente aconteceu e a Panini já conseguiu lançar logo em janeiro de 2002 as revistas Marvel, encerrando o ciclo da Abril com os direitos da “Casa das Ideias”. Observando toda busca por um domínio mercadológico da Abril durante os anos 1990, os prejuízos com a TV, a não valorização por parte dos diretores com o setor de quadrinhos, não é de se admirar que isso tenha acontecido.
O próprio Figa, que foi o cara que ficou de frente ali nessa coisa toda, explica bem isso no capítulo. Foi cagada da Abril, mesmo. Porque eles estavam com problemas tão ferrados por conta da grana gasta em investimentos na parte de TV, que a empresa estava sangrando. A empresa chegou a um momento de estar lutando pela sobrevivência. E o que acontece. O setor de quadrinhos não era um dos setores chaves para a Abril, sabe? Não era. O foco da Abril, ali, era a Veja, era a Quatro Rodas, era a Playboy, era a Exame. Todas essas revistas, para a Abril, teriam que ser salvas antes dos quadrinhos. Então, na verdade, não tinha assim uma preocupação. Não era uma prioridade. Se tivesse que cancelar, cancelava. Não era um negócio que eles tinham uma relação mais forte. Isso, claro, estou me referindo aos donos da empresa. Dos altos diretores. O pessoal da redação, com certeza. Primeiro porque eles gostavam do que faziam lá e segundo porque tinha a questão do emprego deles. Mas, realmente, foi um reflexo disso tudo. E a Panini estava ali querendo abocanhar. Uma coisa em relação a Abril que fica clara no livro é aquela coisa de você ser grande demais. A arrogância de achar que ninguém pode te vencer. Então, a Abril não contava que os caras tinham feito um acordo lá com o Helcio, da Mythos, para produzir o material. Isso foi todo o diferencial. Porque, até então, a Panini não tinha redação no Brasil. A Panini, agora, tem uma estrutura com mais editores e tal, mas, assim, a Panini era um escritório, sabe? Não tinha, assim, uma editoria, um editor presente. O que eles lançavam era mais na área de figurinhas. Mas muitas vezes era só licenciamento. Não tinha uma questão de alguém criando um setor de assinaturas. Eles não tinham know-how disso no Brasil. Então, até por isso que talvez que eles tenham ficado meio parados. E tem que pensar nisso, também. Eu acho que é aquela coisa. Os caras achavam que ninguém podia com a Abril, cara. E durante muito tempo não podiam, mesmo, sabe? Não podiam mesmo. Tem até uma parte curiosa ali, por volta de 1998, mais ou menos nesse período, em que os licenciadores começaram a oferecer outros produtos. Por conta da crise, a Abril não estava mais querendo publicar tudo. Então, tinham muitas minisséries ali, coisas pelas quais ela não se interessou. E aí os licenciadores começaram a oferecer para outras editoras pequenas. E calhou exatamente com aquele período do desenvolvimento do desktop publishing, editoração eletrônica, em que você não precisava mais de uma estrutura igual a da Abril para montar uma editora. Se você fosse montar uma editora no começo dos anos 1990, você tinha que montar uma oficina ou contratar alguém terceirizado para fazer os fotolitos. E era tudo na mão. Era um investimento razoável. Então, ali em 1997 e 1998, se o cara tivesse um micro razoável, e uma internet com uma conexão razoável, já conseguia ele mesmo fazer a revista. Um traduzia, o outro diagramava, o outro fechava, e acabou. Não precisava mais de uma equipe de 20, 30 pessoas. Hoje, por exemplo, aqui na minha editora, eu estou fazendo tudo sozinho, praticamente. Crio livros, edito, diagramo, escrevo, anuncio, fiz meu site, gerencio o site, tiro pedido e levo no Correio (risos). Faço tudo, cara. Há 20, 30 anos, isso era impensável. Era impossível. Então, na verdade, acabou criando esse fenômeno que era até aquela brincadeira que eu ia fazer no livro, com a ideia de comparar o império dos gibis da Abril com o império romano. Eu ia até criar um capítulo dessa fase que ia se chamar Invasões Bárbaras, que ia falar sobre as pequenas editoras que começaram a publicar coisas da DC e até a Mythos pegou algumas coisas da Marvel. Eu ia fazer essa brincadeira que era como se fossem os bárbaros invadindo o império romano, sabe? Tentando derrubar o império. Depois, no final, acabei tirando. Deixei mais simples. Mas de certa maneira, foi o que aconteceu. Aos poucos, todo mundo começou a atacar a Abril, mesmo, até que a Panini foi lá e tirou a Marvel. O golpe foi duro.
No livro, inclusive, você cita aquele momento em que o Figa tentou, em 2010, recuperar os direitos da DC, mas a editora estadunidense alegou não ter mais confiança que a Abril conseguisse manter-se como detentora e lançasse as revistas com regularidade.
Esse contato do Figa aconteceu em um daqueles momentos que te falei, como o de 2002, quando a Abril estava quase falindo, mandou metade dos funcionários embora, fez a lição de casa, arrumou a casa, e melhorou. Em 2008, a Veja fez 40 anos. E se não engano, na época, foi o recorde de faturamento da Veja. Naquele período, a Abril estava muito bem. Porque a Abril já tinha saído desse enrosco da TV. Ela já tinha vendido toda a parte dela. E ela estava muito bem na área de educação, porque ela tinha comprado umas editoras, como a Ática e coisas do gênero. Então, ela estava em um período de alta. Foi por conta disso até que o Figa conseguiu convencer os caras a fazer um investimento desse porte. Mas aí tinha a questão da confiança. E o futuro mostraria que o cara da DC estava certo. Mas o Figa já tinha conseguido dar uma melhorada na Disney, estava fazendo os álbuns de figurinhas, e tentou recuperar alguma coisa. Só que naquele momento duas coisas pesaram para não dar certo. Primeiro que a Panini já tinha um domínio meio que geral de tudo. E segundo, tinha isso que o livro aborda. A DC tinha ficado meio traumatizada. Porque a Abril havia cancelado de uma hora para outra o contrato com a DC. Era aquele negócio: “Vocês cancelaram com a gente quatro anos atrás, e agora vocês querem voltar? Qual garantia eu tenho de que o ano que vem não vai dar uma dor de barriga em vocês e vocês cancelam tudo de novo?” Então, isso meio que pegou. E a Panini, bem ou mal, estava publicando em vários países. E é uma empresa já focada nessa área. E a Abril já tinha ficado lá para o final da fila. Só tinha sobrado a Disney no material deles.
Em relação ao mercado de quadrinhos de hoje em comparação ao de anos anteriores, quando a Abril tinha o domínio do mercado, e que o livro aprofunda bem, podemos analisar essas diferenças e esse quase domínio da Panini, como algo positivo? Esse quase monopólio da Panini é algo preocupante?
Acho que primeiro não dá para comparar o que acontece hoje com o que aconteceu antes. Você consegue comparar, por exemplo, o mercado dos anos 1990 com o do anos 1980, com o dos anos 1970 e com o dos anos 1960. Já o mercado dos últimos 10, 20 anos, ele tomou um caminho que é diferente de tudo que existia antes. Primeiro quando os quadrinhos começaram a invadir as livrarias. Era um negócio que antes não existia. Tirando a Martins Fontes e a Record, que publicava “Asterix”, era meio raro ter quadrinhos em livrarias. Não era muito comum. A Ebal lançava aqueles álbuns do “Príncipe Valente”, “Flash Gordon”, mas não era o foco principal. Era uma exceção. Depois de um tempo foi que os quadrinhos em livrarias viraram um fenômeno. E tudo isso acho que está acontecendo porque o mercado de quadrinhos, as empresas e os profissionais da área, fizeram 20 anos que nos tornamos de nicho. Tem uma fala ali do depoimento do Figa, de uma conversa que ele teve com o diretor dele em 1999, que o cara fez uma análise de mercado. Ali ele chegou à conclusão de que o mercado dos quadrinhos, que antes era de massa, tinha virado de nicho. Isso que deu origem aos quadrinhos Super Heróis Premium, que a Abril lançou. Foi esse raciocínio. E talvez ali eles tenham feito de uma maneira errada, mas o raciocínio estava certo. O que o cara falou ali foi meio que apontar um caminho que se tornou a realidade nos anos seguintes. Hoje nós somos nicho. Quadrinhos de super herói, quando um gibi vende 10 mil cópias, os caras soltam fogos. Na época da Abril, “Homem Aranha” vendia 120 mil. Você pegava lá “A Morte do Super-Homem”, o grupo todo vendeu um milhão. É o tipo de coisa que eu tenho dúvida se um dia vai se repetir. Até porque a base toda desse mercado está sendo destruída. Porque a grande sacada do veículo revista era a distribuição em bancas. O Brasil sempre foi um país carente de livrarias. Algumas cidades nem têm livrarias. E as bancas supriam essa necessidade, porque era um jeito de a pessoa ter cultura acessível. Qualquer lugar tinha banca. Chegou a um período que o Brasil tinha mais de 20 mil bancas. É bastante coisa, se você pensar bem. Eu acho que nunca teve mais de 500 livrarias no Brasil. E Abril foi importantíssima nessa área. Ela tinha a principal distribuidora, a DINAP, que chegava praticamente no Brasil inteiro. Onde ela queria, ela mandava a revista. Era um sistema monstruoso de distribuição. E esse sistema acabou. As bancas estão agonizando, porque as pessoas estão parando de ler material impresso, porque, na cabeça das pessoas (risos), se você ler whatsapp, é a mesma coisa de ler em uma revista feita por um jornalista. E isso explica muito como o Brasil está hoje. Hoje em dia, fica difícil até quando você pensa que, mesmo que você imprima 100 mil cópias, como é que vai se vender isso? Você tem que fazer uma campanha monstruosa pela internet para tentar vender distribuindo pelo Correio. Mas, mesmo assim, hoje em dia a coisa é tão fragmentada, que não sei se tem 100 mil leitores no Brasil. De quadrinhos ou até de livros. Não sei se tem. Os dados são meio confusos. Então, por isso tudo que eu digo que é difícil comparar o que a Panini faz ao que a Abril fazia. Além do que, hoje, o raciocínio é diferente. A Abril tinha menos títulos que vendiam muito. A Panini tem muito mais títulos. Mensalmente, desde 2012, a Panini passou a Abril em quantidade de títulos nas bancas. A Panini, por anos, lança mais de mil quadrinhos. Só que se você pegar esses quadrinhos, a maioria deve vender três, quatro mil exemplares. E olhe lá. Ela ganha no montante, sabe? Tem que pegar muitas variações do produto para cada um vender um pouquinho para ganhar no total. Antigamente, você tinha um só produto com vendas gigantes. Além disso, difícil responder isso porque nós estamos no olho da tempestade. Eu acho que a gente chegou num ponto da discussão que se você falar: “Ah, a Panini é monopólio. Isso é prejudicial para o mercado?” Eu acho que não. Porque se não tiver a Panini, eu não sei quem vai publicar isso. Quem que tem know-how para publicar esses materiais hoje? O que poderia acontecer, talvez, era a Panini não pegar tudo e outras editoras começarem a lançar algumas coisas da Marvel, da DC. Mas pelo que eu vejo, a Panini tenta abocanhar tudo. Ela não larga nada.
Observando os quadrinhos em formato retangular do “Flash Gordon” que tenho aqui na estante, sempre fico admirado pelo apuro técnico. Pergunto-me se algo assim seria viável hoje em dia…
Até daria para lançar, mas a diferença é que não seria coisa vendida em banca. Se for vendido, vai custar R$200. Graficamente, hoje, é até mais fácil fazer essas coisas. Mas o problema é viabilizar. E também nesses casos de materiais do Flash Gordon, a conta é cruel porque a dúvida é sempre essa: quantas pessoas se interessariam por um material desse? E dessas pessoas, quantas teriam grana para comprar? Aí você chega num número que se você conseguir vender 200, 300 cópias, é muito. Aí, para conseguir viabilizar, tem que dar um jeito de vender tudo antes e fazer sob demanda. Porque, realmente, não dá para chegar e imprimir 5 mil cópias e falar: “ah, legal, uma hora vende”. Talvez nunca venda, porque vai lá saber.
Esses períodos década por década que o livro traz ajudam bastante a criar esse panorama de acontecimentos, de altos e baixos da empresa, para entender como as coisas foram caindo.
Sim. Um dos focos do livro foi, realmente, comentar tudo que rolou. Teve um momento em que fiz uma planilha em que baixei do Guia dos Quadrinhos tudo que foi lançado pela Abril. A criação de cada um dos títulos. Criei uma planilha que depois fui dividindo conforme os capítulos do livro. Peguei todas as revistas que surgiram naquele ano ou números especiais. Edições 100, algumas comemorativas. Fui seguindo aquilo e fiz questão do livro falar de todos esses. Acabei descartando um ou outro por falta de espaço ou porque não eram coisas assim muito importantes. Mas, cara, a partir de 1965, mais ou menos, o livro cobre basicamente todos os anos. Ele vai falando ano a ano tudo o que aconteceu até 2018. E dá para ver bem esses altos e baixos, sabe? Tem períodos que está bem, períodos que não. E chegou um momento que, como o setor de quadrinhos era um setor que foi ficando cada vez mais para trás em relação aos outros. Ele ficou em um setor que podia até estar bem, mas se a empresa estivesse mal, ele ia junto. E foi o que aconteceu no final das contas. Sozinho ele até dava lucro. Mas o montante ali do enrosco todo, ele acabou afundando junto.
Lendo o livro, é perceptível uma fluidez no aspecto temporal, aprofundando os fatos e as informações para o leitor, contando a trajetória do setor de quadrinhos da Abril. Como foi esse processo de escrita?
Isso é uma coisa que me incomodava bastante. Porque os livros que tem parecidos com esse, principalmente aqui no Brasil, ou são livros muito de opinião da pessoa, com muito chutomêtro, com a pessoa falando o fato, mas sem entrar em detalhes ou explicar o porquê. Ou, às vezes, são livros extremamente acadêmicos, em que as informações até estão ali, mas é um parto ler. Tive que ler tanta coisa para escrever esse livro. E vou te falar, o quanto de coisa que li sem prazer. Que tive que ler na marra só para buscar a informação mesmo. Muitas escritas confusas, sem a preocupação de colocar datas nas coisas. Não tem depoimentos atestando o que aconteceu, mesmo. Foram três livros que foram a minha base para edição. Porque teve um negócio curioso que eu nunca falei para ninguém. É a primeira vez que eu estou comentando isso. O livro, conforme a gente foi escrevendo, com o Maurício fazendo a parte dele de 1987 para a frente e eu escrevendo a minha parte, aconteceu que eu criei os primeiros capítulos e não estava nem um pouco contente com eles. Porque, primeiro, estava com uma linguagem muito parecida com revista, aquela coisa de explicar tudo detalhadamente. E tinha uma coisa muito de adiantar coisas que iam acontecer. E cheguei a uma conclusão: “Já que o livro, pelo visto, vai ficar bem grande, vamos fazer na ordem cronológica. Explicando as coisas. Elas vão acontecendo no tempo certo. Para quando acontecer algo bombástico, que seja uma surpresa” Porque, senão, eu já explicaria ao leitor que aquele cara, o Cláudio de Souza, por exemplo, seria o cara que iria revolucionar os quadrinhos da Disney, nos anos 1970, e ele começaria aqui, em 1952. Então, já seria um spoiler. E lá na frente, ele já vai revolucionar. Então, preferi não falar nada. Fui falando para, lá na frente, o leitor já sabe: “Puxa, aquele Cláudio de Souza que começou lá nos primeiros anos, aqui ele virou o diretor geral”. Tive essa preocupação. E teve um negócio também, assim, que em um primeiro momento, até por influência das matérias que eu fazia na “Mundo dos Super-Heróis”, eu comecei a encher o livro de intertítulos. Então, sempre que mudava de assunto, eu criava um intertítulo. Estava falando lá da “Raio Vermelho”. Quando voltava para o Pato Donald, criava um intertítulo. E ia criando outro. E outro. Chegou uma hora que começou a criar tanto título… E também tem o seguinte: no início, até 1970, mais ou menos, a Abril não tinha muitos lançamento de franquias diferentes. Só que a partir da segunda passagem do Cláudio de Souza pela redação, em 1971, o negócio começou a se multiplicar. Porque ele começaram a lançar tudo. Hanna Barbera, Mauricio de Sousa, Manual dos Escoteiros Mirins. A Disney ganhou um monte de títulos extras. Começaram a lançar Pica-Pau, Tom & Jerry, e várias outras. E acabou não funcionando. E também tinha uma coisa que era uma forma de eu tentar organizar. Primeiro, eu falava tudo que acontecia com aquele setor. Depois, lá na frente, falava de outro setor. Só que como eles estavam interligados, eu acabava dando um spoiler do que ia acontecer no outro setor. Chegou uma hora que desencanei. Comecei a fazer por ordem cronológica e fui jogando os dados, como se fosse uma peça do quebra-cabeça. Contando que o leitor, na cabeça dele, ia montando a paisagem. Eu fui tirando, deixando o mais limpo possível, sem intertítulos. Criei apenas a (letra) capitular, para indicar a mudança de assuntos, e tem um espaço entre os parágrafos para dar uma refrescada. E foi basicamente isso. Acho que ficou legal. Os livros que eu mais usei de referências na edição foram “A História Secreta da Marvel”, do Sean Howe, que é um livro que adoro e que tem esse tom em uma coisa bem simples e direta. E “Homens do Amanhã”, do Gerard Jones. São dois livros estrangeiros maravilhosos. E aqui no Brasil, o livro do Gonçalo Júnior, “A Guerra dos Gibis”, que é sensacional.
Você comentou sobre a Heroica ter surgido como uma forma de você levar para a frente projetos que você tem “engavetados”. Um livro sobre a Ebal seria um deles?
Estou junto com o Gonçalo em um plano de lançar um livro sobre a Ebal. O meu plano era não fazer mais nenhum livro nessa linha até por conta do trabalho que dá. É muito cansativo. Mas depois que lancei o livro e dei uma refrescada na cabeça, e começaram a surgir os pedidos dos leitores, vi que, realmente, um livro da Ebal cairia bem. Conversando com o Gonçalo, a gente meio que chegou a um acordo. Ele tem bastante coisa de pesquisa. E eu também tenho uma ideia de fazer umas coisas que use essa linguagem do livro da Abril, essa coisa mais direta, e aí estamos planejando. Devo mexer nisso no segundo semestre.
É curioso observar o mercado de quadrinhos hoje, no qual muitas pessoas que consomem (eu, inclusive), preferem adquirir arcos fechados, histórias reeditadas em outros formatos que compilam materiais do que acompanhar mensalmente, comprando cada edição individualmente. Pergunto-me se esse é o futuro desse mercado.
Sempre digo assim: é tudo chute, porque se alguém falar que sabe o que vai acontecer, eu desacredito totalmente. Imagina há um ano, se a gente estivesse conversando, se eu dissesse para você que ia ter uma pandemia, que ia ficar todo mundo em casa, imagina? Vai saber se não vão ter outras semelhantes. A gente está passando por um período muito louco. Agora saiu um vazamento de dados de milhões de pessoas, e eu acabei de descobrir que vazaram os meus dados, também. Então, a gente está em um mundo tão louco, as coisas acontecendo tão rapidamente, que aquele conceito lá de quadrinhos, o cara parar e tirar um momento como passatempo, isso está cada vez mais difícil. Acho que os quadrinhos continuam como sempre foram. Discordo um pouco dessa coisa de: “ah, antigamente era melhor”. Acho que antigamente tinham coisas muito boas, mas também tinha muita porcaria. Acho que a maior diferença, hoje, não é tanto nos quadrinhos. Acho que a maior diferença, hoje, é o público. Nós estamos vivendo um momento meio doido no qual os principais lançamentos que a Panini está divulgando são coisas velhas. “Omnibus” do Quarteto Fantástico, do Byrne. Algo que foi lançado há mais de 30 anos. Do Conan. Algo dos anos 1970. “Os Eternos”, que até comprei agora. Mas é do Jack Kirby anos 1970. Sabe? É uma novidade velha. É tipo você falar que o lançamento do ano foi um novo vinil dos Beatles. E as músicas novas? E os quadrinhos novos? Então, acho que o maior desafio dos quadrinhos é pegar caras como o meu sobrinho de 16 anos que não gosta de ler. Essa que é a maior barreira. Acho que se ficarem investindo só em caras como nós, tudo bem. Queira Deus que a gente ainda viva uns 40 anos. Mas uma hora vai acabar. Vai ficar cada vez mais nichado. Então, acho que o problema dos quadrinhos é isso. E é um problema meio estranho. Outro problema foi que os quadrinhos digitais não deram certo. Se os quadrinhos digitais tivessem dado certo, teria sido a salvação. A distribuição digital é a mais democrática e a mais eficiente possível. Imagina? Você termina um quadrinho e cinco minutos depois você coloca no ar. E a pessoa baixo no celular, no iPad, no kindle, na TV. Sabe? Essas tecnologias estão aí. Mas elas não vão para frente porque não tem procura. As pessoas não gostam. O público novo prefere ver vídeo no YouTube do que ler quadrinhos. E o público velho não gosta do quadrinho digital. Prefere papel. Então, fica um negócio insolúvel.
Você ainda compra quadrinhos mensais?
A questão das mensais, concordo com você. Eu mesmo não acompanho mais. Até mesmo porque aqui perto de casa não tem mais banca. A única banca que tem aqui fica em um lugar difícil de chegar, não tem onde estacionar. Então, raramente vou lá. E um fenômeno que tem acontecido, não sei por que, mas essa banca só tem coisa antiga. Não sei se os caras estão pagando, mas é isso. Não tem chegado muita coisa nova. E quando chega, são só coisas caras. Os gibizinhos de linha eu não tenho visto muito. Mas também, assim, é muito difícil acompanhar. É muita coisa e, ao mesmo tempo, não tem mais aquele brilho que tinha antigamente para pessoas da nossa idade. Só que a minha grande dúvida para finalizar é o seguinte: eu tenho dúvida se os quadrinhos sobrevivem sem a revista mensal. Porque, pelo menos os quadrinhos de super heróis, a base deles sempre foi a revista mensal. Para eles conseguirem fazer a produção, a mensal sempre foi a base. Conseguirem dividir a história que era em seis partes, fazem 22 páginas por mês, o cara com o compromisso de fazer uma página por dia. Então, é um método industrial. Aí, de repente, você vai falar para o cara que ao invés de fazer 22 páginas, ele vai ter que fazer 120? Vai ter que dividir em capítulos? Publica na internet os capítulos e depois publica impresso? Não sei. Vai ter que ser feita alguma mudança porque se não tiver essa divisão de trabalho, deixar na mão de um único artista fazer tantas páginas de uma vez só, eu acho que vai ser complicado. O fluxo mensal era perfeito para esse tipo de coisa. Porque toda hora você tem alguma coisa nova para vender, o dinheiro volta. Então, isso que eu não sei como que as editoras vão resolver.
E essa ausência de leitores novos, uma geração nova que não lê, focada em celulares, redes sociais, que não se aprofunda em nada, é algo que não ajuda. Você citou o seu sobrinho de 16 anos que não lê, e eu lembrei de mim mesmo, aos 16 anos, nos anos 1990, sendo levado por esse hábito de ler quadrinhos e em como isso reflete em minha vida hoje.
Uma coisa que vejo que mudou muito e que está sendo crucial é que a gente está mudando de uma sociedade que antes era muito focada na escrita, muito focada em ler a palavra, para uma sociedade que está cada vez mais focada em assistir ao vídeo, sabe? Muito focada em buscar informação no YouTube. Muito focada em buscar informação de outras pessoas falando. É muito mais fácil você assistir ao Jornal Nacional do que ler uma matéria em uma revista, em um jornal. Só que não é a mesma coisa. Por exemplo, o conteúdo todo que tem nesse livro “O Império dos Gibis” teria que fazer um documentário de 45 horas para sair tudo. E não teria tantos detalhes. Não teria uma imersão tão grande na história. Uma coisa não substitui a outra. Mas, para as pessoas, não: quanto mais fácil, melhor. Para que eu vou ler um gibi? Tanto que eu vejo por aí diversas pessoas que conhecem tudo do Thanos, por exemplo, baseados no que ouviram em podcasts ou assistiram no Youtube. Ninguém foi lá e leu os quadrinhos do Jim Starlin, a fonte primária dessa saga. É um negócio meio de louco.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.