Texto por Luciano Ferreira
Não há dúvidas de que o The Flaming Lips é uma das bandas mais criativas, prolíficas e inquietas da atualidade. Com uma carreira sólida e um nome estabelecido, o grupo de Wayne Coyne prefere não permanecer recluso na sua “bolha” lançando álbuns e fazendo shows. É espantosa a quantidade de colaborações, trilhas, tributos e outros projetos paralelos em que a banda costuma se envolver ou criar, num processo de contato permanente com os mais diversos artistas: Miley Cyrus, Karen O (Yeah Yeah Yeahs), Mick Jones (The Clash), Henry Rollins, o duo Deap Vally, e muitos outros nomes.
Diferente de muitas bandas que se encastelam em sua fama, o grupo de Oklahoma opta pela troca constante de experiências com outros artistas em formatos variados, o mais recente é o álbum do projeto Deap Lips (Deap Vally + Flaming Lips), lançado esse ano. Chega a passar a impressão de que a banda está em todos os cantos que se olha, levando um pouco de si, trazendo um pouco dos outros. E esse processo parece salutar, já que a chama criativa do grupo parece não se apagar.
Dentro desse universo flamejante, não é difícil identificar as correntes encontradas em suas canções, variam de álbum pra álbum, ou podem estar todas juntas num mesmo trabalho. Num retrospecto recente: “Embryonic” (2009) e “The Terror” (2013) primam pelo experimentalismo indecifrável (o segundo foi tocado antes do lançamento no Lollapalooza Brasil 2013: muita gente não entendeu nada); “Oczy Mlody” (2017) é psicodélico, percussivo, denso e minimalista; “King’s Mouth” (2019) explora o território mais eletrônico, próximo dos blips e blops de “Yoshimi” (2002).
“American Head”, seu 16º álbum de inéditas na carreira, embrenha-se em paisagens bucólicas com as bases acústicas sendo revestidas por arranjos suntuosos e pequenos e sutis elementos que surgem e se vão, mas sem tirar a atenção da canção. É fácil visualizar que o esqueleto foi construído em levadas ao violão ou piano. É um retorno à zona de conforto, uma volta a 1999 com pequenas variações.
Esse olhar para trás está na base de “American Head”, não só no quesito musical, mas nas letras e nas ideias – a capa é uma foto de 1968 do irmão de Wayne Coyne. A banda, conforme declarado, pela primeira vez se percebe como uma banda americana, e é essa sensação que está embutida no título do álbum.
De forma temática, mas não exclusiva, Wayne se debruça sobre lembranças do seu passado, sem medo de encarar inclusive as mais dolorosas, e compõe um dos álbuns mais emocionalmente intensos e também acessíveis do The Flaming Lips, com refrãos épicos de arrepiar, como na linda “Brother Eye”, uma homenagem ao irmão: “Brother, I don’t want you to die / Brother, can you live forever? / Brother, I don’t want to cry / Can you live forever?”. As letras tem papel fundamental para o perfeito entendimento do disco, mostrando um lado confessional maior do vocalista, mas sem perder aquele senso psicodélico e irreverencia.
Um Flaming Lips mais melancólico surge já no início com “Will You Return/ When You Come Down”, em que o vocalista dialoga de forma imaginária com amigos que partiram e cujos fantasmas flutuam ao redor da cama. E prossegue em “Watching the Lightbugs Glow”, que inicialmente seria instrumental, mas a banda conseguiu que Kacey Musgraves fizesse um belo acompanhamento. Soa quase como um incidental para a faixa seguinte, mas mesmo sozinha é uma bela canção. E não tem como não lembrar de “The Great Gig in the Sky”, faixa do “The Dark Side of The Moon”, do Pink Floyd. Remissões ao grupo setentista, aliás, surgem a todo instante, principalmente nas viradas de bateria características de Nick Mason, incluindo em “Flowers of Neptune 6”.
Há várias canções com pré-refrão, artimanha para provocar a sensação de crescendo, como em “Dinosaurs on the Mountain”, com visões de dinossauros: “Eu gostaria que os dinossauros ainda estivessem aqui agora / Seria divertido vê-los brincando nas montanhas”. Na verdade, uma letra feita através de lembranças da infância em que Wayne viajava com a família. E falando em família, ela aparece em diversos momentos, na arrepiante “Mother I’ve Taken LSD”: “Mãe, eu tomei LSD / Eu pensei que me libertaria / Mas agora eu acho que me mudou / Isso me mudou …/ Agora eu vejo a tristeza no mundo / Sinto muito, não vi antes”, descrita por Wayne como uma canção devastadora, baseada num acontecimento familiar real.
Ao trazer à tona momentos do seu passado, família, drogas e perdas se tornam temas recorrentes nas letras, algo que já fica explícito nos títulos das canções: “At the Movies on Quaaludes” (sobre como os irmãos mais velhos iam ao cinema para ficarem chapados); “Brother Eye” (sobre a morte do irmão); “You n Me Sellin’ Weed” (sobre a época em que vendeu maconha e também sobre um amigo que teve um fim trágico); “Mother Please Don’t Be Sad” (um assalto no qual pensou que iria morrer); e “When We Die When We’re High” (um amigo que morreu num acidente de carro).
“American Head” é um passeio pelo passado de seu autor, guarda similaridades em alguns aspectos com o de qualquer um que vai envelhecendo e acumulando perdas (mortes) e ganhos (nascimentos).
O álbum foi gravado entre o final de 2019 e janeiro de 2020, logo antes do início da pandemia. Consiste num exercício pesaroso de olhar para trás para entender que é preciso seguir em frente. É como uma visita a lugares conhecidos, ambientes nos quais já estivemos e que continuam acolhedores, porém mais acessíveis, por que não visitá-los mais uma vez, mesmo que faça sangrar algumas feridas que pareciam cicatrizadas?
– Luciano Ferreira é editor e redator na empresa Urge :: A Arte nos conforta
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