Faixa a faixa: “Corpo Nós”, Guilherme Held

introdução por Luiz Chagas
faixa a faixa por Guilherme Held

Gui Held é o nome quando se fala em guitarra contemporânea no Brasil. O som que tira de sua Gibson 335 (a que usa é uma de 12 cordas que ele toca com 6) emoldura o que há de moderno no país, soando dos porões aos grandes palcos com a mesma intensidade. Exatamente como Lanny Gordin há meio século, um trabalho com o qual o de Gui se confunde. E não se trata de simples admiração (mútua no caso). Os dois nasceram no mesmo dia do mesmo mês e se conheceram assim que Gui chegou de Araçatuba, interior de São Paulo, onde nasceu e ouviu Lanny pela primeira vez.

Identificação absoluta. Durante anos tocaram juntos, moraram juntos, trocaram experiências de música e de vida, forneceram combustível para artistas incendiários como Macalé – no caso, em épocas distintas! Muitos consideram Gui herdeiro da psicodelia, da pirotecnia de Lanny, esquecendo-se que para este músico nascido em Xangai a performance explosiva encobria uma destreza sobre-humana, uma cultura musical enciclopédica, uma concepção originalíssima para arranjos aliada a uma capacidade de liderança musical surpreendente para quem o via como o “guitarrista louquinho da Gal”. E são nestes quesitos que Gui Held melhor se enquadra.

Em seu disco de estreia, Gui Held ultrapassou toda a expectativa de um trabalho solo de guitarrista – expressão que é quase um pleonasmo, sugerindo auto-indulgência, exagero, incontinência digital e outras bobagens. “Corpo Nós” é maduro, maturado, fruto do trabalho de uma vida que emerge após um período delicado no caminho de Gui – onde ficou sem a Gibson original, sem o pai, sem o parceiro. É um novo ciclo que se inicia, forte, brilhante. São 17 faixas, 17 músicas, nenhuma vinheta, nenhum começo falso, nenhum retorno. Há mais de um ano que o meio musical se mantém ligado nessa movimentação provocada por Rômulo Fróes, o diretor musical, à frente de um time de músicos voltados para Gui Held, finalmente o centro e a origem de tudo.

Corpo Nós” foi concebido por Gui Held e Rômulo Fróes em um período de dois anos a partir de um acervo de quase três mil músicas, temas, trechos, rabiscos, rascunhos recolhidos e guardados em um baú por mais de uma década. As gravações levaram cerca de dez meses em São Paulo nos estúdios Held, YB, Minduca (por Fernando Narciso) e Casa das Máquinas, em Salvador (por Tadeu Mascarenhas), as músicas foram mixadas parte por Gustavo Lenza e parte por Carlos “Cacá” Lima e o disco masterizado por Felipe Tichauer.

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Para entender um pouco mais o álbum, pedimos para Guilherme Held comentar cada canção, e antes ele avisa: “O disco é fruto da minha vivencia em São Paulo como músico e as amizades que construí nela e me ensinaram muito, um disco de doação e união de corações que transitam na mesma energia e química”. Conheça o álbum faixa a faixa pelo próprio Guilherme Held.

01) “Tempo De Ouvir O Chão”
Musica que compus entre o intervalo de dois ensaios gerais para a serie Milton Nascimento e o Clube da Esquina, onde tivemos uma vivencia pessoal com o Mestre Bituca e diria que essa musica reflete essa vivencia onde fiz a produção musical junto com Bid e toquei guitarras. A introdução instrumental é um dos únicos solos de guitarras que faço no disco e que representa a abertura do mesmo porque considero que imprime legal o disco como linguagem sonora e melódica, timbristicamente falando. O final instrumental eu considero como uma fusão numa linguagem melódica Lanyanna (em referencia a Lanny Gordin) no clube (da esquina).

02) “Pólvora”
Compus essa música com a Tulipa Ruiz. O Romulo foi o cara que teve a primeira sacada de tê-la no disco, após uma extensa pesquisa em meus rabiscos de composições. Essa música foi inspirada na minha ligação com Lanny Gordin e a Tropicalia. Uso o mesmo Fuzz-Wha pedal que o Lanny usou com a Gal, Gil e Caetano.

03) “Corpo Nós”
Essa é uma das minhas músicas preferidas. “Corpo Nós” tem uma linguagem afro-brasileira, pensei no tema da letra falar da relação entre mãe e filho, observando a força da minha mãe recém-perdida do meu pai, que faleceu por doença. Romulo pensou na Alice Coutinho, mão de sua filha Olga. Ela escreveu uma forte letra descrevendo o momento da amamentação. A Juçara Marçal interpretou muito bem com sua raiz negra visceral. Sergio Machado gostava dela e quando ouviu quis gravar uma segunda bateria junto com a bateria do Décio (do Bixiga 70) e foi tiro certo.

04) “Direto Humano”
Compus essa musica no intervalo de dois ensaios gerais de um projeto do Dante Ozzetti sobre a obra de Tom Jobim com banda e naipe octeto. Ela foi totalmente inspirada nesse universo Jobiniano e pensamos em chamar Dante com naipe onde misturamos madeiras incluindo guitarra com o Moog analógico dando o sub-grave no naipe escrito por ele e a Ná Ozzeti foi a cantora perfeita. Romulo acertou de chamarmos o Nuno para compor a letra.

05) “Sorongo”
Essa musica é um afro-samba industrial. Uma homenagem ao Pedro Santos e a cidade de São Paulo. Ficamos em duvida se seria instrumental ou não e quando pensei no Letieres de convidado com Orquestra Rumpillezinho decidimos que seria. Adoro essa fusão afrofuturista dos synths Kraft(werk) com os tambores baianos junto as guitarras fuzz de linguagem nigerianas ligados em linha.

06) “Laço de Fita”
Parceira com o Criolo, cara que mudou minha vida nos roles pelo mundo e vivencias musicais. Muitos sonhos realizados e muita consideração. Havíamos preparado uma musica e no dia da gravação ele chegou dizendo que estava gripado e que não tinha vindo pra gravar. Então compomos duas músicas e na hora que ele chamou o uber pra ir embora, em um minuto de espera nasceu “Laço de Fita”. Na hora me veio que caberia fortemente um naipe de metais e percussão com uma banda roots Motown. Gravamos a base antes de termos a melodia fechada. Convidei Bade na percussão, Cabral no baixo e somado a bateira do Bruno Buarque e naipe de metais do Bixiga 70, chegamos ao resultado forte. Masterizamos no rolo de fita pra ela soar setentista.

07) “Me Conta o Vento”
Essa eu tinha a harmonia pronta devia ter uns seis anos. Influenciada por Curtis Mayfield, Gil Scott Heron, Cassiano e Tim Maia. Sabia que era a cara do Curumin, enviei a base e ele voltou com a melodia e letra genial. Vi que estava a cara do Ganja e convidei ele pra tocar os synths. A linda orquestra de mellotrons é do Dustan Gallas. O Curumin gravou a bateria também. Sinto que ela dá uma beleza pop de equilíbrio ao disco.

08) “Isso é o Que Se Diz Irmão”
Essa música veio pronta (compus de uma vez), e quando ela chegou enviei para o Romulo e sentimos que eu iria gravar meu primeiro disco, foi o start. Ele seria o diretor artístico e eu o produtor musical. Ele entregou pro Clima letrar, uma das minhas preferidas do álbum. Pensei em ter Romulo e (Maria) Gadu de interpretes, a doçura da voz dela com a voz grave e potente do Romulo formou algo mágico ao meu ver, um encontro inédito. E sempre imaginava três percussões, como dos terreiros. O Thiago França fez o lindo arranjo de metais.

09) “O Homem Triste”
Senti um caminho dela parecido com minha vivencia no projeto do Dante (Revisitando Jobim) e convidei-o para escrever o arranjo e repetir a formação com naipe de orquestra com o moog. A letra é do Romulo, ficou a cara dele e combina muito com a melodia e harmonia. Nessa musica eu enxerguei o espaço que gostaria no disco para colocar meu ultimo experimento na guitarra onde gero ruídos de feedback de distorção e/ou roaming e com um pitch eu construo melodias com esses noises e roamings . Gravei improvisando essa guitarra.

10) “Manhã da Vida”
Quando mostrei pro Romulo, ele se inspirou e fez a letra e quis cantar. E sentimos que era pra ser vazia, um duo. Ela é um chordmelody do inicio ao fim e sempre toquei ela assim. Ela e o arranjo são uma coisa só.

11) “Rosa e Bela”
Essa harmonia devia ter uns seis anos. No começo de 2019, finalizei a melodia e quando mostrei pro Romulo definimos do Nuno Ramos escrever a letra e a Marina Aydar cantar, toda minha ligação com ela e dela comigo e Nuno. E com luxuoso repique, percussões gerais e cavaco do Rodrigo Campos. Depois descobri por ele que não era mais um samba e sim um pagode.

12) “A Cura”
Fiz a introdução dessa música num bote em Caraiva, na parte do rio. Outra parte achei nos meus rabiscos e finalizei ela em 2019. Essa eu também já sabia que teria três percussionistas tocando juntos (Simone Sou, Felipe Roseno e Romulo Nardes). Arranjo genial de metais do França, coro feminino e másculo e letra do Kiko Dinucci, que ele fez inspirado em uma conversa que tivemos sobre a cura. A composição é baseada no Pedro Santos e quase ficou instrumental. Ela celebra um dos momentos de alta dinâmica do disco.

13) “O Alvo”
Essa composição eu fiz com a Thalma. O Romulo achou ela no meu baú e fez questão dela estar no disco, concordei plenamente. Tem Curumin na bateria, Cabral nos graves. Eu sinto uma influência do Beck e o primeiro disco do George Harrison nessa música, onde tem o instrumento Sraj que o Fábio Sá tocou perfeitamente. Ela é um mantra psicodélico ácido num dia de sol.

14) “O Que Eu Quero Ser”
Parceira com Fernando Catatau, que fez a letra, e interpretada por Filipe Catto e Catatau. Sinto uma linguagem de rock progressivo com tambores, meio Clube da Esquina.

15) “Pra Bem Perto de Mim”
Parceria minha com o Rubel. O arranjo e a composição melódica foi inspirada no álbum “Carlos, Erasmo”. O arranjo é coletivo, fiz junto com os integrantes do naipe de metais do Bixiga 70 e um arranjo de cordas, tocadas por mim no teclado. O Doug fez a melodia linda de metais no refrão.

16) “Bem Maior que o Mundo”
Essa talvez seja a faixa mais moderna do disco. Ela é um disco-punk, mas que ao mesmo tempo remete a Minas (por causa da harmonia do refrão esta em 5/4), com uma melodia meio jobiniana. Pericles Cavalcanti fez a letra, sou fã, e sabia da ligação dele com o Beto Bruno cantando, já conhecia a química. Sergio Machado, Cabra e Duda Tsuda imprimiram a estética industrial que enxergava nela.

17) “Pingo D’água”
Essa é um duo, eu e Lanny Gordin. Cara que considero como padrinho musical e que morei junto. Ele pediu pra desafinarmos as 2 guitarras inteiras, para quebrarmos todo vinculo com esse plano material. Fizemos um free e assim que acabou usei a mesma técnica de Hendrix de inverter o rolo de fita inteiro, onde o reverse não atua em nota por nota e sim no todo, então o fim virou o começo literalmente. Aparece um trecho desta música no filme “Sotaque Elétrico”, onde participo com Lanny e falo dessa musica em um dos momentos.

Agradecimento mais que especial ao Romulo Froes pelos 10 anos me pedindo para gravar um disco autoral e me ajudou quase 1 ano fazendo a direção artística, na boa vontade.

– Luiz Chagas é jornalista e músico. A foto que abre o texto é de José de Holanda.

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