entrevista por João Paulo Barreto
“Eu acho estranho comemorar o aniversário de uma pessoa que não está mais aqui. A gente vai celebrar o nascimento dele, mas, infelizmente, ele não está mais aqui para se desejar feliz aniversário. É difícil falar do John, porque ele é uma pessoa, uma figura tão importante na minha vida. As coisas que ele dizia me impressionavam muito. Desde menina. A maneira dele pensar, a maneira dele ser. As músicas dele, claro, maravilhosas. As imperfeições dele, porque ele era humano. Aliás, ele nunca pretendeu ser nada além do que ele foi”, me fala Lizzie Bravo ao final dessa entrevista acerca de sua experiência de vida como fã dos Beatles e, em especial, de John Lennon.
Lizzie chegou a Londres em 14 de fevereiro de 1967. Partindo do Rio de Janeiro, nunca esperava que, naquele mesmo dia que chegou à Inglaterra, estaria de frente para seus ídolos nas portas do Abbey Road Studios durante o período em que o quarteto gravava seu álbum pilar “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”. Muito menos que, praticamente um ano depois, em 04 de fevereiro de 1968, estaria gravando com a banda na faixa ‘Across the Universe”.
Entre essas duas datas, e além delas, Lizzie conviveu rotineiramente com contatos com a banda, seja nos plantões que passou em frente aos estúdios, quanto nas ruas próximas a Abbey Road. Nesse período, uma relação de proximidade se deu com os Beatles, quando pôde desconstruir muito da imagem de ídolos inalcançáveis que muitos tinham deles. “Sabe, você estava conversando com eles, em momento algum você ficava pensando: ‘estou conversando com um Beatle’. Não. Porque eles eram tão ‘na boa’, tão normais, que você ficava tranquilo. Eles não tinham nenhuma coisa do tipo: ‘Ah, sou um astro pop’. Não. Eles não tinham nada disso. Lembro de uma vez que a gente estava lá, de noite, passando aquele frio desgraçado. Aí acho que o Paul deve ter ficado de saco cheio, saiu lá de dentro do estúdio, sentou lá com a gente na escada. Nós todas agasalhadas, e ele de camisa. Lembro que ele falou: ‘Tá friozinho aqui, né?’ ‘Sim, tá bem friozinho’. Ele perguntou: ‘E aí? O que vocês estão fazendo?’ E nós respondemos: ‘Ué, nós estamos esperando você!’ (risos). Enfim, ele sentou lá pra bater papo”, relembra Lizzie.
Após aquele final de década de 1960, Lizzie Bravo retornou ao Brasil. Aqui, se tornou cantora, trabalhou com diversos nomes da MPB, teve uma filha, viajou o mundo a trabalho e morou em outros países. Em 2015, lançou um livro sobre seus dias com Beatles no qual resgata seus diários de adolescente, centenas de fotos da época e um sonho realizado. Nessa entrevista ao Scream & Yell, Lizzie fala sobre seu amor pelos Beatles, sobre cantar com eles e sobre a figura John Lennon na ocasião em que ele completaria 80 anos de idade. Confira o papo!
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Lizzie, essa é uma história que você já deve ter contado muitas vezes desde então. Mas, você poderia falar um pouco sobre o seu primeiro dia em Londres, quando viu os quatro Beatles em Abbey Road, naquele 14 de fevereiro de 1967?
Os Beatles pararam de fazer excursões no final de 1966. Então, a minha melhor amiga, Denise (Werneck), e eu, ficamos em um conflito. Como é que a gente vai fazer para conhecer esses caras? Porque eles não vão vir ao Brasil. Então, nós convencemos nossos pais a mandar a gente para Londres como presente de 15 anos. Nós tínhamos acabado de fazer 15 anos. Eu no final de maio e ela em meados de junho (de 1966). Não sei se hoje em dia ainda se faz isso, mas, naquela época, ao se completar 15 anos, tinha uma festa para te apresentar para a sociedade. Aquela coisa cafonerrima que a gente não queria. Ou você ia para a Europa. Mas, geralmente, você ia para a Europa naquelas viagens com guias, excursão, uma porção de moças. E nós só queríamos ir para conhecer os Beatles. O intuito da viagem era esse. A minha sorte foi que a Denise foi na frente, algumas semanas antes. Meu pai estava viajando, e eu precisava que ele assinasse a documentação para eu poder viajar sozinha com 15 anos. Então, quando cheguei lá, ela, que já vinha me escrevendo, sabia tudo. Sabia onde eles moravam, onde gravavam, a que horas chegavam ao estúdio. Tudo. Tanto que cheguei a Londres no dia 14 de fevereiro de 1967, nós nos encontramos na estação de trem, largamos as malas no hostel, e fomos direto para os estúdios. Porque ela tinha os visto entrando para gravar, eles estavam gravando o “Sgt. Peppers”. Ela falou: “Vamos para lá que eles vão sair”. Nós fomos e, algumas horas depois, saíram primeiro o John e Ringo. Depois saíram o Paul e o George, junto com o Brian Epstein. Ou seja, no dia que cheguei a Londres, com a mesmas roupa, pois a Denise não deixou nem eu tomar um banho e mudar de roupa, eu vi os quatro Beatles e o Brian Epstein. No mesmo dia que cheguei. Imagina o choque. Num dia estou no Leme, na minha casa, e, no dia seguinte, eu estou vendo os quatro Beatles. Foi meio de supetão, tudo de uma vez.
E você acabou ficando lá, não retornando na data combinada com seus pais. Como foi esse processo?
Meus pais achavam que eu ia ficar só durante as férias. O que eles não sabiam é que eu não tinha a menor intenção de voltar. Esse foi um probleminha mais adiante. Na hora em que papai ligou pra mim… Lembrando que telefonar para a Europa naquela época era um negócio complicado. Tinha que pedir a ligação para a telefonista, esperar. Ele ligou e falou: “Olha, volta porque sua mãe está vendo negócio de uniforme, material para escola”. Eu respondi: “Não, não voltar não.” Aí foi aquele choque para eles, mas não voltei. Minha amiga voltou para o Brasil, eu não. Sai do hostel, fui trabalhar num hotel de quinta, como faxineira e fazendo café da manhã. Mas fui despedida, porque eu não era suficientemente rápida para fazer as camas e lavar os banheiros. Sendo que eu nunca tinha feito uma cama em toda a minha vida (risos). Então, eu não podia ser muito rápida. Mas, depois dali, fui trabalhar como ‘au pair’, que é um acordo que o governo faz para trabalho onde você fica com documentação e legal no país. É quando uma jovem estrangeira vem para a Inglaterra estudar, e ela mora com uma família, ganha uma mesada. Pouco dinheiro, mas ela mora com essa família em troca de cuidar de criança ou ajudar na casa. Primeiro, estive em uma casa onde eu era, na verdade, faxineira. Não tinha criança para cuidar. Ralei muito. Depois que sai dessa casa, fui para outra muito legal. Essa outra família é minha amiga até hoje. Eles tinham duas menininhas pequenas que eu ajudava a cuidar. Nesse período, entre o final de 1968 e o começo de 1969, foi a época em que tive mais estabilidade. Em um lugar legal, em uma casa legal, com um quarto lindo e uma família bacana. Mas passei muitos perrengues antes disso. Enfim, com 15, 16 anos, você saber que pode ver o seu ídolo, no meu caso, o John, quase todo dia, não há perrengue que segure.
Quando aconteceu a gravação de “Across the Universe”? Eu vi em uma entrevista sua de 2010, para um canal de TV londrino, você e a sua amiga à época falando a respeito. Vocês já se conheciam?
A gravação do “Across the Universe” foi praticamente um ano depois de eu chegar lá. Eu cheguei no dia 14 de fevereiro de 1967 e a gravação foi no dia 04 de fevereiro de 1968. Em 10 dias teria feito um ano. Durante esse período, eu ia todos os dias para os estúdios. Então, já tinha um monte de amigos. Um monte de amigas inglesas e algumas de outros países. Porque íamos todo dia para a porta da casa do Paul, à tarde, porque o John sempre ia lá para, sei lá, acabar de compor ou resolver o que eles iam gravar e, depois, eles iam para os estúdios. Inclusive, o Paul tem essa casa até hoje, em Saint John’s Wood. É a casa dele em Londres até hoje e é muito perto dos estúdios. Ele vinha a pé às vezes. Várias vezes ele vinha à pé e, no verão, ele vinha à pé e descalço. Por isso que quando saiu a capa do “Abbey Road”, não achei nada demais ele estar descalço. E as pessoas fizeram o maior auê, né? “Ah, é porque ele morreu, e não sei o que”. E, claro, quem morava lá sabia que era simplesmente porque ele andava descalço mesmo. Então, voltando, nesse dia em que eles estavam gravando “Across the Universe”, eu chamei essa amiga para cantar comigo, a Gayleen (Pease – na foto abaixo com Lizzie), que eu já conhecia há um tempo. Eu a conheci logo depois que cheguei lá. Nesse quase um ano depois, a Denise voltou nas férias. Ela teve férias escolares e voltou a Londres. Estava lá no dia da gravação. Só que não pude chamá-la pra cantar, pois ela era desafinada. Então, eu chamei essa minha amiga, a Gayleen, porque ela sempre cantou em coral de colégio, que nem eu.
E qual foi a sua percepção, para uma menina de 15 anos, entrar nos estúdios de Abbey Road e cantar com os Beatles?
Quando a gente entrou nos estúdios, uma das primeiras coisas que o Paul fez foi me pedir para cantar em “brasileiro”. Mas fiquei com vergonha e não cantei em “brasileiro”, como ele pediu. Até hoje tenho raiva. Sempre gostei muito e continuo amando loucamente a música brasileira. Embora a gente tivesse vivido no exterior por um tempo (nós moramos, meu irmão e eu, com nossos pais na Venezuela por oito anos. Eu fui para lá com três anos), meu pai fazia questão de manter a gente informado quanto à música brasileira. Ele sempre trazia discos para a gente. Então, eu conhecia muito a bossa nova. As muitas músicas brasileiras que eu poderia ter cantado, né? Mas fiquei com vergonha e não cantei. Ainda assim, o ambiente no estúdio foi muito legal. Uma das coisas que contribuíram é que, tanto a Gayleen quanto eu, éramos meninas calmas, mais para tímidas. E a gente estava muito acostumada a vê-los, falar com eles. Praticamente todos os dias nós os víamos. Então, ficamos tranquilas. Não ficamos, sabe, uma cutucando a outra, nem dando risadinha. Ficamos tranquilas, sentadas lá, rindo das palhaçadas. Curtindo o momento, tomando chá e comendo biscoito. Acho que se tivéssemos nos comportado de uma forma diferente, talvez eles não teriam mantido a gente lá para cantar. O fato de nós duas sermos do jeito que éramos foi positivo. O ambiente no estúdio estava ótimo. Eles, muito entrosados uns com os outros, muito engraçados. Sempre tinha alguém fazendo alguma palhaçada. Paul adora tocar bateria, né? Bobeou, ele está na bateria. Aí teve uma hora em que ele tocou bateria. Teve outra hora que foi o George tocar com ele. Teve uma hora em que o George sentou no chão e ficou tocando um instrumento indiano. Ele acendeu uns incensos no estúdio. O clima estava super agradável, tranquilo. Sem pressão nenhuma. Um clima leve, engraçado. Foi uma experiência única. O John me chamou para cantar no microfone com ele. Ele explicou que o microfone era direcional. Ele tem uma guardazinha retangular na frente. O John me explicou que nós dois tínhamos que cantar naquele espaço, porque, senão, o microfone não iria captar. Então, eu tinha que ficar perto do microfone. E ele falou duas vezes: “Mais perto! Mais perto!” Assim, eu era absolutamente apaixonada por ele, sabe? Ele era a razão da minha existência (risos). E aí ele estava encostado aqui no meu ombro, do meu lado direito, muito perto mesmo. Eu não podia nem olhar para o lado, porque ele estava muito perto. Eu tinha que olhar para a frente e cantar. Naquele momento, a minha emoção era uma emoção de menina, apaixonada. Em nenhum momento eu pensei: “estou cantando com um dos maiores ícones”, sabe? Alias, nem eu nem a Gayleen, em nenhum momento naquela gravação, pensamos isso. (Voz empossada): “Nós estamos gravando com a maior banda que jamais existiu”. Não. Isso não passou pela nossa cabeça. Depois desse dia, eu e ela já nos encontramos outras vezes e conversamos sobre isso. Nós estávamos apenas felizes de estar lá dentro, ao invés de lá fora, que era o nosso lugar de sempre. Ficar do lado de fora e vê-los entrar e sair. Isso é o que a gente fazia todo dia. E, naquele momento, estávamos lá dentro junto com eles. Isso era a nossa emoção daquele momento. E para mim ficar do lado do John foi, assim, imagina! O meu coração estava disparado ao ponto de eu pensar se o microfone poderia captar o quanto ele estava disparado. Foi uma emoção muito grande. Tenho muitas amigas que me dizem: “Não sei como você conseguiu cantar”. Mas era porque eu estava muito acostumada a cantar, mesmo. Com o coral. Senão, acho que a minha voz ia falhar. Mas, claro, imagina uma menina do subúrbio carioca, como eu sou. Apaixonada pelo John. Fã dos Beatles, claro, mas eu era mesmo apaixonada pelo John. Estar tão perto dele, cantar junto com ele, saber que a minha voz estava sendo gravada junto com a dele. Até hoje, quando ouço esse música, eu penso: “Gente, essa voz que está cantando… Eu estava lá! Eu estava lá grudada nele!” É muito doido isso. É uma coisa, assim, quase inacreditável.
Você estava lá em 27 de agosto de 1967, quando morreu o empresário dos Beatles, Brian Epstein. Você se recorda do clima entre os fãs à frente dos estúdios, ou dos próprios Beatles quando você os viu novamente após o dia fatídico?
No fim de semana em que o Epi morreu, os Beatles estavam em Bangor, em um encontro de meditação com o Maharishi. Quando aconteceu, eu tinha 16 anos. Uma pessoa de 15, 16 anos em 1967, é equivalente a uma pessoa de oito anos, hoje. A gente era muito criança. Muito, sabe, inocente. A alegria da gente era ver os Beatles. Ninguém ficava pensando como eles estavam psicologicamente. Não tínhamos condição de avaliar isso. Em 1967, eles continuaram indo quase todo dia aos estúdios. Depois eles fizeram o “Magical Mistery Tour”, passaram meses editando o disco. Isso já era em um outro estúdio, no Soho. 1967 seguiu normal. Não notei diferença nenhuma.
Seu livro tem belíssimas fotos deles naquele período que você passou em Londres visitando a frente do estúdio. No dia da gravação, houve alguma foto que você tenha conseguido tirar lá dentro?
Tenho muitas fotos deles, sim. Meu livro tem pouco mais de 200 fotos, a maioria tirada por mim, outras pela minha amiga Denise e por alguns outros amigos que estavam lá. Do dia da gravação, porém, não tenho nenhuma foto. A única foto que tem é uma do John saindo dos estúdios que uma amiga tirou e cedeu para que eu colocasse no livro. No dia que entramos para gravar, eu estava com a minha máquina, mas o motivo de eu não tirar fotos são dois. Primeiro: eu tirava fotos todos os dias. Nesse dia, eu estava em uma situação diferente. Uma situação de convivência com eles. Eu achei que não tinha nada a ver eu tirar a máquina da bolsa e sair tirando fotos. Segundo: o Mal Evans (N.E. Assistente dos Beatles) estava com uma 35mm, tirando fotos direto da gente. Fez closes meus com o John e com o Paul. Só do rosto. Um monte. Um filme inteiro. Aí eu pensei: “bom, já que ele está tirando foto com essa máquina poderosa, eu não vou tirar minha caixinha de plástico barata para tirar foto, porque eu já vou ter fotos maravilhosas”. Só que essas fotos não saíram. E eu, que eventualmente me tornei fotógrafa, até imagino o que possa ter acontecido. Ele pode ter colocado o filme na máquina e não ter prendido direito. Isso já aconteceu comigo. Na época, logo que ganhei a minha primeira 35mm, percebi que é comum acontecer de ficar batendo as fotos, achar que o filme está rodando, mas, na verdade, ele não está. Ele está parado no mesmo lugar. Então, acredito que tenha sido isso que aconteceu com a máquina do Mal Evans, por isso as fotos não saíram.
Me lembro de ter visto uma matéria sobre uma pessoal ter comprado uma mala em um mercado de pulgas na Austrália, em 2004, e ao chegar em casa e abrir, achar diversas fotos originais, discos, fitas e outros materiais relacionados aos Beatles. Especialistas em coleções dos Beatles ligaram esse material ao Mal Evans.
Eu lembro de ter visto isso na época, mas não me aprofundei muito. Eu sei que o Mal estava escrevendo um livro, que nunca saiu. Sei que o material que ele tinha ficou com a viúva e os filhos dele, com quem tenho contato pelo Facebook – eles são gente boa. O Mal era uma figura. Super gente boa. Nesse primeiro dia meu em frente ao Abbey Road, quando eu vi o John pela primeira vez, o Mal me consolou. Lembro que o John foi o primeiro que eu encontrei. Ele desceu a escada onde nós estávamos sentadas. Quando levantei, dei de cara com ele. Aí, quando ele foi embora, comecei a chorar. A Denise foi e me expulsou (risos). “Vai chorar em outro canto que o Paul vai sair e eu não quero que ele te veja chorando”. E fui prum canto, chorando, e o Mal veio atrás de mim. Ele me abraçou, perguntando:” O que houve? Por que você está chorando desse jeito?” E falei, soluçando: “Ah, eu sou do Brasil, tenho 15 anos. Cheguei hoje e acabei de ver o John. Eu gosto muito dele”. E ele: “Ah, não chora não. Amanhã o John estará aqui de novo. Você vai vê-lo de novo”. E me deu um chocolate, um Kit Kat, tenho até hoje o papel. Está no meu livro. E digo que muitos desses quilos que eu carrego são culpa do Mal, pois foi ele quem me viciou em Kit Kat naquele fevereiro de 1967. Isso foi uma coisa que pensei muito recentemente. Acho que o Kit Kat, para mim, como eu o ganhei minutos depois de ter visto o John e o Ringo pela primeira vez, ficou associado a uma alegria e um prazer. Então, ver aquele papelzinho vermelho dá aquela sensação, sabe? Essa é a minha desculpa para ser viciada em Kit Kat (risos). Atenção pessoas: não sigam o que eu estou falando. Recentemente isso me passou pela cabeça. A lembrança daquele momento ficou associada ao Kit Kat. E você encontra esse chocolate em qualquer farmácia. Sempre que vou pagar algo, vejo aquele Kit Kat e tenho que pegar um. Porque a minha mente olha para aquilo e lembra de coisa boa, de um momento bacana.
Sim. Lembro de ter lido no livro que o Barry Miles “Paul McCartney – Many Years From Now” uma fala do Paul sobre a perda do Mal naquelas circunstâncias trágicas e no quanto amável ele era.
O Mal era super gente boa. Ele era grandão, impressionava pelo tamanho. Os Beatles não tinha segurança, nada. Era tudo aberto. Mas, às vezes, quando havia muita gente, o Mal dava uma organizada. Antes deles chegarem, ele orientava quem estava lá. “Fica um grupo ali, outro aqui. Abre um espaço porque eles vão chegar”. Lembro de uma vez o George chegar e falar: ” Dá um tempo, Mal. Deixa as meninas”. Uma bobagem, uma brincadeira assim. Tanto o Mal quanto eles, os Beatles, eram muito simpáticos com a gente. Eles eram muito normais, mesmo. Tranquilos. Sabe, você estava conversando com eles, em momento algum você ficava pensando: “estou conversando com um Beatle”. Não. Porque eles eram tão ‘na boa’, tão normais, que você ficava tranquilo. Eles não tinham nenhuma coisa do tipo: “Ah, sou um astro pop”. Não. Eles não tinham nada disso. Eu lembro de uma vez que a gente estava lá, de noite, passando aquele frio desgraçado. Aí eu acho que o Paul deve ter ficado de saco cheio, saiu lá de dentro do estúdio, sentou lá com a gente na escada. Nós todas agasalhadas, e ele de camisa. Lembro que ele falou: “Tá friozinho aqui, né?” “Sim, tá bem friozinho”. Ele perguntou: “E aí? O que vocês estão fazendo?” E nós respondemos: “Ué, nós estamos esperando você!” (risos). Enfim, ele sentou lá pra bater papo. Ele era bem tranquilo. Lembro uma vez em que eu estava com a Denise e nós encontramos com ele por acaso, algo que aconteceu várias vezes. Nesse dia, a gente estava comendo uma bala. Nós oferecemos e ele aceitou. Eu tenho esse saco de bala até hoje. E a história está no meu livro. Eu tirei uma foto da Denise com ele, e ele comendo a bala. Era, tipo, um Mentex, aquela bala branca. Só que era uma bala grande. Na foto, ele está com a bala na boca. Então, assim, eles eram muito normais. Não tinha frescura. Eles tinham uma relação legal com as fãs. Nós éramos The Girls. E eles, para a gente, eram The Boys. “The Boys vão chegar. The Boys vão sair”. A gente os chamava de The Boys e, nós, para eles, éramos The Girls. Teve um domingo em que a gente estava nesse estúdio de edição, lá no Soho. Quando o George chegou, ele olhou para a gente e perguntou: “Ué, vocês não deviam estar na igreja?” Afinal, era domingo (risos). Então, tinham essas brincadeirinhas.
Houve outros momentos ou locais em que você encontrou com eles além do Abbey Road?
Sim. Teve um dia que eu estava voltando. Eu havia me matriculado em uma escola, já no finalzinho, quando eu já estava para vir embora. Essa escola ficava perto dos estúdios. Mas frequentei pouquíssimas vezes. Eu só ia quando não estava acontecendo absolutamente nada, quando os Beatles estavam viajando, por exemplo. Eu, inclusive, morava bem perto dos estúdios Abbey Road. As meninas todas moravam bem longe. Eu era a única das que ia pra lá todo dia, pois morava perto. Mas tinham algumas outras meninas estrangeiras, americanas, italianas, que alugaram apartamento ali perto, para não ficar tão longe E teve um dia que eu estava voltando da escola e, ao invés de eu pegar o ônibus na porta, eu dei uma volta andando e passei na porta dos estúdios. Quando eu vi que não estava acontecendo nada, comecei a ir embora. Mas olhei para o outro lado e o Paul estava vindo, andando. Ele estava vindo a pé. Eu esperei ele chegar. Ele parou para falar comigo, pegou meus cadernos e livros, folheou para ver se eu estava estudando mesmo. Perguntou pela Denise. Ela era fã do Paul e era muito bonita. Sempre muito bem vestida. Era tímida, também, mas fazia um gênero. Ele perguntou por ela e eu disse que ela havia voltado para o Brasil. Comentei com ele que havia recebido uma fita cassete de uns amigos, todo mundo conversando comigo, mas eu não conseguia ouvir, pois ninguém tinha gravador cassete. Gravador cassete era uma coisa recente. E era caro. E o Paul falou: “Eu tenho! Vai lá em casa que te empresto”. Respondi: “Tá bom!” No dia seguinte, fui à casa dele. Quando cheguei lá, tinha aquele monte de amigas minhas na porta. Cheguei e meti o dedo na campainha. Lembro que as meninas olharam, assim: “Você está doida? O que você está fazendo, Lizzie?” Eu falei: “Calma, calma”. A empregada atendeu, eu falei que era a Lizzie, expliquei tudo. Ela abriu a porta eletrônica. E lá estava o Paul na porta, me esperando, todo sorridente. Eu levei uma revista Manchete sobre o Rio de Janeiro para ele. Nós fomos para a sala de visitas dele, que ficava nos fundos da casa. Quando entrei, observei que a sala de jantar, quando você entra, fica logo à direita. Aquela sala bem inglesona, com aquele relógio cuco grande, aquela mesa grande, uma mobília bem tradicional. Não me lembro de ter visto nenhuma foto dele nessa mesa. Onde ele me levou, era uma sala de visita que dá para um jardim bem grande. Eu já vi várias fotos deles ali, nessa sala de visitas. Inclusive fotos do John e da Yoko, também. Ele me levou para essa sala, pegou o gravador, me mostrou como é que usava. E me explicou que as pilhas estavam vencidas. Para quem é da minha idade (eu tenho 69 anos), naquela época, coisas portáteis, significavam carregar aquelas pilhas enormes. Aquela maior de todas, sabe? Tipo, meia dúzia dessas pilhas. E isso fazia o aparelho em si ficar pesado. Aí eu falei para ele não se preocupar que eu ia comprar as pilhas. Quando sai, as meninas estavam histéricas, querendo saber o que eu fazia lá dentro. Eu expliquei que ele havia me emprestado o gravador, pois eu queria ouvir umas fitas. Para elas se acalmarem, abri o gravador, tirei as seis pilhas, e dei uma pra cada. Pilhas usadas pelo Paul McCartney (risos). Fui pra casa, comprei as pilhas no caminho, e ouvi as fitas. Depois devolvi o gravador. Bom, isso tudo para você ter uma ideia. Isso foi em 1969, o cara já era famoso pra caramba. Muito famoso. E ele se preocupou de uma fã não conseguir ouvir uma fita, a ponto de se oferecer para me emprestar. Sabe? É esse tipo de delicadeza que eu estou falando. E no meu caso específico, como eu não era apaixonada pelo Paul, embora a maioria das meninas fossem, eu me dava muito bem com ele. Ele me perguntou se eu não tinha saudade da minha mãe. E eu dizia que não. (risos). Imagina: você tem 15 anos, pode ver os quatro Beatles todo dia, você vai lembrar de mãe nessa hora? Que Deus a tenha, minha mãezinha. Mas, naquela época, sabe? Imagina! E aí tudo que ele lia no jornal sobre o Brasil, ele me contava quando me via. Quando eu estava na porta da casa dele ou na porta dos estúdios, ele dizia: “Olha, só. Ontem deu 40 graus no Rio de Janeiro! Saiu no jornal”. Eu não estava nem um pouco interessada, mas tudo bem. Ele era uma figura. Um dia, ele disse pra mim: “Olha lá, o John está sozinho. Vai lá falar com ele”. Eu me dava super bem com o Paul. As meninas todas, quando viam o Paul, ficavam do mesmo jeito que eu ficava com o John. Com o John, eu ficava tímida. Eu queria ser a mais inteligente, mas, ao lado do John, olhando para ele, e falando para ele, era diferente. Eu tinha umas frases feitas, já prontas, sabe? “Como vai o Julian? E o disco, falta muito pra ficar pronto?” De resto, era muita emoção estar do lado dele.
Você ficou lá entre fevereiro de 1967 até quando?
Fiquei direto até abril de 1968, quando voltei com a Denise para o Rio. Fiquei alguns meses aqui visitando a família e voltei para Londres a tempo do aniversário do John, em outubro de 1968. Quando eu estava no Rio, inclusive, eu fiz um cachecol laranja de crochê que ele usou. Tenho duas fotos dele em dias diferentes usando esse cachecol. Dei no dia do aniversário dele. De outubro de 1968, fiquei até o final de outubro de 1969. Na verdade, eu não sei o dia exato dessa volta minha para o Brasil. Se foi final de outubro ou começo de novembro. Eu tenho até hoje todos os passaportes que tive na minha vida. Até um de quando eu tinha três anos, que é de quando eu fui para a Venezuela. Mas o único passaporte importante, que seria esse de quando eu voltei, para eu saber exatamente a data em que eu fui embora, sumiu. Há muitos anos, ele desapareceu. Ninguém sabe. Eu me mudei algumas vezes, morei em outros países. Nessas mudanças, ele sumiu. Então, essa data da volta exata, eu não sei. No meu diário, eu parei de escrever em um determinado dia no final de outubro.
Período riquíssimo de criação da banda.
Aqui tinha um grupo grande de beatlemaníacas, todas as nossas amigas. E as únicas que se aventuraram, literalmente se aventuraram, foram nós duas, eu e Denise. Porque a gente não conseguia conceber de continuar gostando deles sem nunca vê-los. Agradeço aos céus pela Denise ter tido essa ideia de irmos para lá. De ter me ajudado a convencer meus pais. E ao universo por termos escolhido um momento maravilhoso como aquele para irmos. Imagina você chegar lá quando eles estão gravando o “Sgt. Pepper”. E ainda ficar durante o tempo em que gravaram os outros discos, como “Magical Mistery Tour”, o “Album Branco”, o “Let it Be” e o “Abbey Road”. Foi um período em que eles estavam fazendo muita coisa. Talvez se a gente tivesse ido na época em que eles faziam turnês, não íamos conseguir vê-los tanto. Porque eles viajavam durante meses e meses. Então, foi muita sorte a gente ter ido exatamente nesse momento.
Em que momento surgiu a ideia de escrever o livro?
A ideia de fazer o livro já vinha desde a época em que eu estava lá. Eu percebi que aquilo tudo que eu estava vivendo tinha que ser contado. Não podia ficar só comigo. Lembrando que, naquela época… por exemplo, a (história da) gravação do “Across the Universe” não saiu em lugar nenhum. Só no “The Beatles Monthly Book”. Só nessa revistinha que teve um paragrafozinho que o Mal Evans escreveu. E acabou. Ou seja, nós continuamos ficando do lado de fora. Não mudou nada. Só os nossos amigos mais próximos que sabiam. E anos e anos depois é que começaram a colocar isso nos livros sobre a discografia dos Beatles. Começaram a citar a gente. Na época, eu lembro que algumas pessoas aqui no Brasil achavam que eu tinha inventado aquilo. Alias, eu não estou brincando. Há uns meses, agora, teve um cara que comentou no YouTube. Sabe essas pessoas que gostam de comentar para causar polêmica? Ele escreveu assim em um vídeo do YouTube sobre a gente ter cantado com eles: “Ah, quem é que garante que ela gravou, mesmo? Cadê a foto?” E fiquei pensando: “Meu Deus do Céu! Essa pessoa vive em que planeta? Nós estamos em 2020, é só ela colocar Lizzie Bravo no Google, vai aparecer várias coisas”. Até comentei com meus amigos: “Poxa, eu sou boa de mentira, né? Porque eu inventei uma coisa e os Beatles acreditaram. Porque eles botaram o meu nome e o da Gayleen em vários produtos oficiais da banda”. Então, como é que a pessoa pode ser tão ignorante de não se dar ao trabalho de parar para pesquisar, buscar, confirmar que é verdade. Naquela época, como não saiu em lugar nenhum, podia até a pessoa duvidar, mas agora? Com esse acesso que se tem à informações. Então, voltando, desde aquela época que eu achava que deveria escrever um livro. Voltei para o Brasil, comecei a namorar o Zé Rodrix, casei, tive a nossa filha. A gente casou em dezembro e a Marya nasceu no final de outubro do ano seguinte. E naquela época eu estava cantando em vários discos, começando a fazer jingles, e criando filha. Acabou que a minha coleção dos Beatles foi lá para o alto do armário. Naquele momento, eu não estava com muito tempo para lidar com esse assunto. Em março de 1980, eu lembro que pedi a uma amiga minha para me ajudar com aquelas coisas. Ela subiu a escada e foi me passando os objetos. Os diários, as fotos, os álbuns. Eu desci aquilo tudo e comecei a pensar. “Bom, eu vou fazer um livro”. Comecei por datilografar os diários. Eu não sabia ainda como eu ia contar essa história. Mas eu achei que o primeiro passo era pegar os cadernos escritos à mão. Eram vários. E comecei a datilografar aquilo na época à máquina de escrever, porque não tinha computador. Mas ficou por isso mesmo, porque no final do ano, teve aquela tragédia, aquela desgraça, com o assassinato do John e eu não consegui pensar em mais nada. Fiquei muito tempo, assim. Muito triste. E esqueci desse assunto. Após um tempo, eu fui morar em Nova York. Nessa época, eu passei para o computador. Papai comprou o primeiro Apple Macintosh. Eu o tenho até hoje aqui, guardado. Quando papai saia do computador, eu entrava. Assim, eu passei para o computador aquilo que já tinha feito na máquina manual. Assim daria para, eventualmente, editar. Mas também abandonei isso. Passaram-se anos e anos. Nunca mais peguei. Muito tempo passou até que minha melhor amiga, a Cecília Leal de Oliveira, que é a designer do livro, me convenceu. Eu digo o seguinte: esse livro não é só meu. Eu tinha as fotos, a história, os objetos, autógrafos, mas a Cecília é que fez o formato do livro. A maneira como ele mostra as fotos à medida em que você está lendo. Quando você estiver com ele em mãos, você vai entender. Nós começamos a trabalhar loucamente no livro. Em 2015, a gente decidiu que ia acabar esse livro. Eu ia para a casa dela, nos duas juntas ficávamos trabalhando. Na hora de escolher uma foto, a gente avaliava qual formato e qual foto seria melhor. Por exemplo, se tinham quatro fotos do John no mesmo dia, eu pensava: “Eu sei que o John dirigindo, é uma coisa muito diferente. Porque ele raramente dirigia, graças a Deus, porque ele era péssimo motorista. Então, dessas quatro fotos, coloca grande a foto dele dirigindo e as outras três em volta, menores”. Esse tipo de coisa, sabe? Era eu quem tinha dar essas dicas para ela com relação aos objetos e as fotos. O livro ficou pronto em dezembro de 2015.
Como funcionou o processo de venda e cobertura dos custos de impressão?
Fiz uma pré venda. Você pode imaginar o que custa fazer um livro de capa dura, papel couchê, 300 páginas, praticamente todas ilustradas? Custa muito dinheiro! Eu fiz uma pré venda que deu para pagar a primeira prestação da gráfica. E continuei fazendo a pré-venda. Quando chegou a hora de pagar a segunda prestação para eles me entregarem os livros, ficou faltando. Sabe quando você cata tudo? Raspa o cheque especial, quando você faz o diabo. Tira dinheiro de pedra, mas ainda faltavam 7 mil reais. Pensei: “Caramba, onde vou arrumar 7 mil reais?” Eu tenho uma neta, a Morgana, que hoje tem 27 anos. Ela está na Itália, trabalhava há muitos anos no Cirque Du Solei, e me ligou. Na época, ela me ligou não sei de qual país e perguntou como estava o livro. Expliquei que estava tudo bem, que estava pronto na gráfica, mas que eu tinha que arrumar um dinheiro para poder pegar os exemplares. Ela perguntou: “Vó, está faltando quanto?” Respondi: “Ah, minha filha, muito dinheiro. 7 mil reais.” Ela falou: “Estou passando agora para a sua conta do Bradesco”. Cara, comecei a chorar. A minha neta, que eu literalmente vi nascer, porque eu estava presente no parto dela, pegou da poupança dela, do trabalho dela. Ela trabalha desde muito jovem. E mandou esse dinheiro emprestado para mim. Foi uma emoção muito grande. Ela falou: “Vó, eu fico muito feliz de poder te ajudar, porque você sempre fez tudo pela mamãe e por mim”. E foi com o dinheiro da Morgana que eles entregaram os livros. Lembro que postei no Facebook uma foto na época, com a van chegando lá embaixo trazendo os livros. Quando chegaram, comecei a autografar os exemplares. Uma coisa engraçada foi que, o primeiro livro que eu autografei, eu escrevi: “Para fulano, Beatles Forever. Lizzie Bravo”. E as pessoas fotografavam e colocavam no Facebook. Eu pensei: “Cara, eu vou ter que escrever Beatles Forever para todo mundo”. Porque, senão, as pessoas vão perguntar: “Ué, ele recebeu o Beatles Forever, mas eu não?” Uma coisa é você escrever Beatles Forever uma vez. Outra é você escrever 1000 vezes. É um trabalho todo feito por mim. O livro chega, eu embalo, eu faço a etiqueta, eu colo, eu vou para a fila dos Correios, tudo eu (risos). Na época, eu e meu irmão viemos morar com a mamãe, pois ela ficou doente, com Alzheimer. Nós viemos cuidar dela. Nessa mesma época, quando o livro chegou, a nossa sala de visita era só livro. Era caixa para botar livro, era etiqueta, impressora, sabe? Era um esquema ali só para os livros. Eu tive que mandar primeiro pra todo mundo que comprou adiantado. Aqui no Rio, eu fiz vários encontros em restaurantes para entregar. Eu avisava: “Pessoal do bairro tal: estarei no restaurante tal entre as horas de… você quer o seu livro?” Aí as pessoas respondiam dizendo que queriam pegar lá comigo e eu levava. Chamava o frete para me levar. A pessoa tinha que pegar os livros (cada um pesa 1,5 kg) no terceiro andar, onde eu morava, descer, colocar no carro. Enfim, tem que ser um pouco doido para fazer um projeto desse tamanho sem nenhum tipo de apoio financeiro. E outra coisa: eu não contabilizei um monte de despesas. Eu não contabilizei que eu tinha que alugar um local para guardar os livros, que chamam de storage. Eu gastei uma grana com etiquetas, tinta para impressora, plástico bolha, fita adesiva. Coisas que eu não contabilizei na hora de fazer o preço do livro. Fiquei vendendo os exemplares até que se esgotaram, em setembro de 2017. A essa altura, mamãe já estava bem doente. Eu simplesmente tirei isso da cabeça. Todo mundo me pedindo. “Faz mais livros, faz mais”. Eu devia ter feito. Mas eu estava muito perturbada. Acho que qualquer pessoa que viu um familiar ou um amigo passar por esse processo da demência para o alzheimer, sabe que é uma coisa muito dolorosa. Só quem passou mesmo que sabe. Sua cabeça vai para outro lugar. Agora, no começo de 2020, mandei fazer mais mil exemplares. Não é uma segunda edição, mas a primeira edição revisada. A Cecília e eu demos uma geral no livro, corrigimos uma ou outra coisinha que tinha ficado errada, como datas de fotos (umas duas ou três, apenas). Corrigi e mandei fazer. Só que eu mandei fazer o livro no Paraguai. Eu já estive no Paraguai duas vezes. Fiz fantásticas amizades lá. Já fui duas vezes fazer palestras, cantar com as bandas locais. São pessoas muito bacanas e muito fãs dos Beatles. E eu consegui fazer os livros lá, em uma gráfica de muita qualidade por um preço melhor do que o daqui. Só que eles ficaram prontos exatamente quando começou a pandemia. Então, tenho mil livros maravilhosos, ainda na versão em português, guardados lá. Eu tenho tido contatos semanais com o pessoal da gráfica, os livros estão muito bem cuidados. Eu liberei os livros só para as pessoas que já tinha comprado lá no Paraguai. E eles estão me dizendo que ficou maravilhoso. Tem um amigo que já tinha o livro da primeira tiragem feita no Brasil e ele disse que a impressão dessa parece que ficou melhor ainda do que a do primeiro, que já é muito boa. É isso. Eu tenho mil livros, mas não sei te dizer quando eles vão estar aqui.
Eu li que você, também, está no processo de lançar uma edição em inglês do livro. Em que andamento está esse projeto em outro idioma?
Sim. No meio disso tudo, eu, não sei como, com a mamãe muito doente, consegui traduzir para o inglês. Essa versão traduzida eu mandei para um amigo britânico corrigir. Ele é escritor e, por acaso, eu o conheci lá nos estúdios. Ele era fã, também, e estava lá na porta. Ele escreve para a BBC e já trabalhou na EMI, onde conheceu os Beatles. Ele disse para mim: “Lizzie, quando eu ia imaginar, naquela época em que a gente ficava lá, adolescentes, na porta dos estúdios, que um dia eu ia sentar com os o Paul, com o George, para discutir plano de marketing da carreira solo deles?” Isso aconteceu com ele. Então, ele corrigiu o meu inglês já há muito tempo. Mas só há uns dois meses (N.E. Entrevista gravada em 17/09/2020) é que eu comecei a ler essas correções. Eu já li, digamos, a metade. Hoje estou fechando a tampa do capítulo do “Across the Universe”. O meu livro são os meus diários. Mas dividi em capítulos. Eu tenho um capítulo só do “Across the Universe”, eu tenho uma introdução, eu tenho dois capítulos que são de um amigo meu inglês que passou a tarde entrevistando o John na casa do Paul. Esse capítulo está lá por uma história curiosa. O que aconteceu foi que a gente se conheceu lá e eu emprestei a minha máquina para ele. Ele não tinha máquina. E acabou que ele tirou fotos fantásticas. E depois me devolveu a máquina e a gente nunca trocou nome e endereço. Eu nunca soube o nome dele e nem ele o meu. E eu tinha uma foto maravilhosa que ele tirou do John para mim. Aí, em 2009, uma amiga minha estava na fila para entrar em um show do Paul lá em Londres, e ouviu essa história. Pediu licença, se aproximou, e falou com ele que me conhecia. Falou que conhecia a moça que havia emprestado a câmera a ele. Ele pirou, né? De lá pra cá, a gente conversou muito. Ficamos amigos, falávamos por horas ao telefone. Toda vez que eu vou a Londres, passamos horas juntos. Ele nunca havia contado a história sobre esse dia em que ele havia passado horas na casa do Paul, com o próprio Paul, o John e o Mick Jagger. E depois o George chegou. No meu livro, essa história dele é um dos capítulos. E outro capítulo é de dois amigos ingleses. Esse que é escritor e traduziu o livro, e mais um outro amigo que eu fiz lá na porta dos estúdios. Eles também nunca tinham contado a história deles nem ninguém nunca tinha visto as fotos que eles tiraram. São muito bonitas. Todas P&B, fotos lindas que ninguém nunca viu. Essa edição em inglês eu vou finalizar e a Cecília vai montar para colocar as fotos. Com o idioma inglês, vai ser um pouco menor o texto. Teremos que ampliar algumas fotos, para o livro ficar direito. Mas a gente não sabe o que vai acontecer. Não posso mandar imprimir mil livros e não saber se os Correios vão funcionar. Mas eu quero deixar o livro em inglês pronto, esperando para ver o que vai acontecer. Perto de 200 pessoas que não falam português compraram o meu livro. Eles me escrevem dizendo que já decoraram todas as fotos. “Pelo amor de Deus, eu preciso ler o que você escreveu”, já me disseram. Teve gente que comprou dicionário inglês-português para tentar entender o que eu estou dizendo. Teve de tudo. Mas, enfim, espero conseguir lançar. A gente não sabe o que vai acontecer. Mas eu quero deixar ele pronto para, assim que for possível, mandar fazer essa versão em inglês. Mas, é aquela coisa. Os livros em português, que já estão impressos no Paraguai, também não sei quando vêm para cá. Sem previsão de abrir as estradas. Na hora que chegar, anuncio. O outro capítulo surgiu por conta de uma sugestão da pessoa que corrigiu o livro. Aqui no Brasil teve duas pessoas profissionais que fizeram essa correção do meu livro. Na segunda correção, essa moça falou para mim: “Lizzie, eu como leitora, gostaria de saber o que aconteceu com você depois que você voltou de Londres”. Aí, por conta disso, eu fiz um outro capítulo chamado “Minha Vida Depois de Londres”. Meu livro é a minha história contada pelos diários da época, com esse capítulos separados, e é isso. Olha, eu tenho uma quantidade absurda de depoimentos de leitores que eu junto em um arquivo do Word que são emocionantes para mim. Sempre gostei de escrever. Mas eu nunca havia escrito um livro antes. Saber que eu pude tocar a emoção de tanta gente… Porque era esse o meu intuito, João. Eu queria dividir com as pessoas o que eu senti estando lá. E acho que consegui. Pela quantidade de relatos, acho que consegui isso. O que era meu intuito. E agora espero conseguir de novo com a edição em inglês.
Você tem uma vasta experiência profissional como cantora, além de amizades e uma história de vida ligada à MPB. Poderíamos falar um pouco essa sua trajetória após voltar de Londres, em 1969?
A minha ligação com a música brasileira é algo muito forte na minha vida. Eu tenho um filha com o Zé Rodrix, a Marya Bravo, que é cantora, compositora e atriz de teatro musical. Eu conheci o Zé logo depois que eu cheguei de Londres. Junto com ele, conheci o Bituca (Milton Nascimento), que é meu padrinho de casamento. Conheci o Som Imaginário inteiro. O Fredera (Frederico Mendonça de Oliveira), o Wagner Tiso, Luiz Alves, Robertinho Silva, Naná Vasconcelos. Esse pessoal passou a ser parte do meu dia a dia. E comecei a gravar no disco de um, no disco de outro. Nesse período, também, eu comecei a gravar jingles. Fiquei anos e anos. Depois fiz parte de várias bandas. Eu fui da banda do Zé Ramalho quando ele estourou. Éramos eu e Elba (Ramalho) as vocalistas, com mais uma outra moça. Quando o Zé saiu do Sá, Rodrix e Guarabira, eu entrei no trio. Depois, entre 1980 e 1992, eu cantei com a Joyce (Moreno), que é minha comadre. Cantei naqueles discos todos dela. “Clareana”, “Feminina”, aquelas músicas todas eu canto. Viajamos para o Japão, fizemos shows nos Estados Unidos e aqui no Brasil. Gravei com muita gente da MPB. Isso é uma coisa que tenho muito orgulho. Eu sou muito apaixonada por música brasileira. Eu sou muito fã dos Beatles, mas, também, muito fã de música brasileira.
Lembro-me de ter lido sobre “Casa no Campo” e sobre a “esperança de óculos” ser você.
Essa música, o Zé Rodrix fez com o Tavito. A gente cantou no Festival de Juiz de Fora, no começo de setembro de 1971. Ganhamos o primeiro lugar. E isso garantiu uma vaga para se apresentar no FIC, Festival da Canção, lá no Maracanãzinho. Tiramos o nono lugar. Agora é interessante que, um dia, a gente estava em casa, e eu falei para ele: “Zeca, que negócio é esse dessa letra que você fez? Negócio de ‘esperança de óculos’? O que é isso?” E ele falou pra mim: “Lizzie, é você!” Eu quase morri de vergonha (risos). “Desculpa, amor”. Eu não me toquei que era eu. Não me toquei, mesmo. Não sabia o que era e ainda achei esquisito. Por aí você vê (risos). Isso não tem muito a ver, mas lembrei agora de quando fui ver o show do Paul, o último dele em São Paulo, nessa última vez em que ele esteve aqui. Fui com a minha filha. E ele começou a cantar “Maybe I’m Amazed”. E eu chorei porque essa era uma música que Zé tocava ao piano e cantava para mim. Porque a gente fazia tudo junto. Cantava junto. Vivia junto o dia inteiro. Nosso casamento foi breve, ma muito intenso, porque você ficar o tempo todo com aquela pessoa, parece que foi muito mais tempo do que realmente foi. Eu tenho minha filha Marya, maravilhosa, super talentosa. Não é porque é minha filha, não (risos). É porque ela é muito boa. E minha neta Morgana, minha amada neta. Com quem eu falo mais pelo WhatsApp, porque ela vive viajando. E é isso. Esse presente que o Zé me deu. Essa filha e, através dela, essa neta.
Como foi o seu encontro com o Paul anos depois de Abbey Road?
A última vez que eu o Paul foi no dia 14 de fevereiro de 1990. Lembro porque cheguei a Londres no dia 14 de fevereiro de 1967. Então, foi muita coincidência. Em 1990, ele estava em coletiva de imprensa na cidade de Indianópolis, Indiana, para os repórteres brasileiros. Era para falar sobre a vinda dele ao Maracanã. E eu havia sido contratada como fotógrafa. Só que, quando eu cheguei lá, a Fiona, secretária dele, falou pra mim: “Lizzie, nós não estamos autorizando fotógrafos. Mas como eu te conheço, deixa a sua máquina aqui comigo, você entra e assiste à coletiva,” Eu entrei, fiquei na minha, assistindo a coletiva não na mesa dos repórteres, mas um pouco afastada. Na hora que acabou, ele apertou a mão de todo mundo. Quando ele falou comigo, perguntou: “Por que eu me lembro de você?”. E contei: “Porque cantei contigo no mesmo microfone”. Comecei cantando com o John, mas, mais adiante, o Paul me chamou para cantar com ele. Aí ele botou a mão na cabeça, exclamou: “É mesmo! Você estava lá em Abbey Road!” Nós nos falamos rapidamente, eu falei que morava em Nova Iorque, que tinha uma filha, que era cantora. Ele até falou: “Tá vendo? Foi bom ter começado a cantar com a gente”. E perguntou: “Você vai para o Brasil pra ver o meu show?” Eu falei: “Claro que vou”. A última frase que eu ouvi da boca do Paul McCartney foi: “I see you there”. Mas, de lá para cá, já tentei centenas de vezes encontrar com ele e ninguém nunca deixou eu chegar perto. Desisti há muito tempo. Não deixam chegar perto dele de jeito nenhum. O que acho uma coisa muito burra. Porque se eu fosse dos Estados Unidos… Você sabe que qualquer coisa que um americano faça, eles fazem um escarcéu. Se eu fosse americana, eles iam arrumar um jeito de me colocar junto com o cara. Mas aqui no Brasil, sucesso é uma ofensa pessoal. Não que eu seja famosa, nem nada. Mas, sabe, eu acho que seria um encontro muito interessante colocar eu e o Paul para conversar. Porque a gente conheceu pessoas da mesma época. Eu o vi muitas e muitas vezes pessoalmente. Eu acho que seria um papo interessante de ser realizado. O fato de eu ser brasileira, de ele estar no meu país. Enfim, mas não rolou. Dificilmente vai rolar. Mas não posso reclamar. Porque o vi tantas e tantas vezes.
Vi uma postagem sua sobre o livro ter chegado às mãos dele em 2017, quando ele estava aqui em Salvador para o show.
Sim. Fiquei muito feliz quando vi que o meu livro chegou até ele aí em Salvador. Infelizmente, naquela época, eu não estava conseguindo viajar por causa da mamãe. Eu só fui a um show naquela turnê. Geralmente eu ia a mais de um, quando ele estava aqui. Porque eu conseguia viajar, meu irmão ficava com a mamãe e eu fazia um bate-volta. Mas vários amigos meus foram para Salvador, gostaram muito do show. Foi uma grande emoção saber que ele tem o meu livro.
Quase novo encontro com John.
Outro dia o Sean Lennon postou que tinha encontrado uns discos brasileiros nas coisas do pai dele. E que ele estava ouvindo discos do Milton Nascimento. Vendo isso, me lembrei que, em 1967, em dei um disco para o John chamado “Os Sambeatles”, do Manfredo Fest. E eu perguntei para ele se ele gostou. Ele disse que sim. Eu imagino que, por curiosidade, pelo menos uma faixa ele deve ter ouvido. Por ser uma mistura de Beatles e samba. E o disco é bom, mesmo. Outro dia até voltei a ouvir. E eu sei que eu dei outros discos para ele. No verão de 1980, eu estive em Nova York de férias e eu deixei lá no Dakota um pacote com vários presentes para ele e para o Sean. E deixei vários discos brasileiros. E com certeza nesses discos, tinham discos do Bituca. Provavelmente, dei a ele discos nos quais eu canto, como “Minas”, “Geraes”, discos do Toninho Horta, da Joyce. Não me lembro exatamente quais os discos que inclui nesse pacote, mas, com certeza, desses discos que o Sean achou, pelo menos um deve ter sido eu quem mandou. Mas embora o John estivesse lá, começando o “Double Fantasy”, eu não fiquei nem na porta dos estúdios e nem na porta da casa dele. Claro que hoje eu me arrependo muito, mas eu não queria incomodá-lo. Achei que eu já tinha ficado tempo suficiente em portas esperando por eles. E me deu um negócio de não querer incomodar. As amigas que fiz depois e que frequentavam o Dakota, me disseram: “Nossa, ele ia adorar te encontrar, conhecer sua filha (ela tinha oito anos e estava comigo), te ver. Que pena que você não o procurou”. É isso. Mas os outros três Beatles eu vi depois. Rapidamente, mas vi. Mas o John eu nunca mais vi.
John Lennon completaria nesse 09 de outubro de 2020, 80 anos. Você, que o conheceu, que conversou com ele, poderia falar um pouco dessa figura mítica, do artista, bem como da pessoa John Lennon?
Eu acho estranho comemorar o aniversário de uma pessoa que não está mais aqui. A gente vai celebrar o nascimento dele, mas, infelizmente, ele não está mais aqui para se desejar feliz aniversário. É difícil falar do John, porque ele é uma pessoa, uma figura tão importante na minha vida. As coisas que ele dizia me impressionavam muito. Desde menina. A maneira dele pensar, a maneira dele ser. As músicas dele, claro, maravilhosas. As imperfeições dele, porque ele era humano. Aliás, ele nunca pretendeu ser nada além do que ele foi. Tem muita gente que não consegue imaginá-lo como “normal”. Por causa dessa circunstância horrível da morte dele, ele virou uma figura, assim, meio… (pausa) Eu não sei nem explicar direito. Mas, eu tenho muito carinho pela pessoa dele. Pelo o que eu consegui conviver. Mesmo sendo tão menina na época, e sendo apenas uma fã, eu tenho muito orgulho dele, das posturas dele. Eu acho bacana até quando ele fazia besteira, porque ele se dava conta. Ele tinha uma coisa meio ingênua. Uma vez, não me lembro para quem, mas eu disse que achava o John meio tímido. A pessoa disse: “Você tá doida! John? Tímido?!” Aí, a Yoko, em uma reportagem, falou que o John tinha realmente um lado tímido. E eu falei: “Tá vendo? Eu, mesmo adolescente, consegui perceber isso”. Então, é muito difícil falar do John. Desculpe se esse final vai ser meio decepcionante. Mas é difícil, porque é uma tristeza tão grande pensar nisso que aconteceu com ele. Mas, ao mesmo tempo, ele deixou tanta coisa espetacular para a gente. Eu adoro ouvir entrevistas de áudio dele. Ou até de vídeo, mesmo. Ouvir a voz dele. Porque, ouvindo a voz dele, eu consigo me lembrar dele se mexendo, falando. Mas, é isso. É uma pessoa muito especial na minha vida. Um dos meus ídolos. E me sinto muito privilegiada de ter podido ficar um pouquinho perto dele. Mesmo na condição de quase criança e fã, mas, um pouquinho, eu consegui. E, também, eu tenho orgulho de ter deixado uma gotinha mínima de Brasil na história dos Beatles com a minha voz no “Across the Universe”. Eu tenho muito orgulho de ter participado dessa gravação, que foi uma coisa inacreditável mesmo. Você pensar que uma menina, como eu disse antes, do subúrbio do Rio de Janeiro, acabar no mesmo microfone com seu ídolo. Isso é um negócio muito doido. E eu sei que a música dele é eterna. E, até hoje, atual. Enfim, eu estou dizendo de verdade: não é muito fácil falar do John.
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.
Emocionante. É a única palavra que encontrei pra descrever essa entrevista.
Bah!!!, excelente uma das melhores matérias e entrevistas
muito bom e emocionante,a lizzie é otima nos detalhes, faz a historia ficar mais calorosa.