introdução por Bruno Lisboa
O inquieto artista piauiense Valciãn Calixto surgiu no cenário musical em 2016 coordenando as ações do coletivo artístico local Geração TrisTherezina e colocando nas ruas seu primeiro disco, “Foda!” (2016). Passados quatro anos, Valciãn apresenta seu segundo disco, “Nada Tem Sido Fácil Tampouco Impossível” (2020), frase/título que o músico tem como mantra para a vida.
Neste novo álbum, Valciãn Calixto segue mantendo viva a cultura do axé e estabelecendo o diálogo com as religiões de matrizes africanas, mas com um olhar ainda mais pluralizado. As participações de Julia Barth (vocalista d’Os Replicantes), Jotaerre, Jeza da Pedra e Juliana D. Passos são resultados destas intenções.
No faixa a faixa abaixo, feito exclusivamente para o Scream & Yell, Valciãn esmiúça “Nada Tem Sido Fácil Tampouco Impossível”, trazendo à tona não só o processo de composição de cada uma das faixas como também revelando inspirações que o conduziram até o resultado final.
01) 3R1K0N4
Lê-se Ericona, que é a maneira carinhosa pela qual os familiares tratam a Eryka, minha companheira. A canção surgiu pronta, a letra veio na minha cabeça de uma maneira assim quase que automática. Vinha um verso, vinha a melodia, a harmonia, a cadência. Tudo muito leve, pra cima, dançante, humorado. Tal qual diversas outras canções, essa surgiu após uma das muitas conversas com a Eryka: “Tudo que a gente fala vira canção”. Numa madrugada conversávamos sobre o quanto muitas pessoas se deixam ficar refém de outras porque em algum momento foram ajudadas, até que percebem que quem as ajudou são ruins para outras pessoas e como têm ali uma dívida de gratidão, não conseguem se afastar, não conseguem se desvencilhar, não conseguem questionar, a isso a Eryka resumiu e batizou de ‘Gratidão Tóxica’. É o que aparece no refrão: “Aquela tua frase massa sobre gratidão” (risos). Então eu trouxe esse nosso aprendizado em conjunto para abrir o disco, começar o disco com uma homenagem à própria Eryka também, com quem tenho aprendido muito sobre mim e tantas outras coisas da vida em nossas vivências.
02) Nunca Fomos Tão Adultos
É a música que resume o termo “Axé Punk”. É o meu melhor exemplo. Eu consegui aliar a percussividade e as violeiras da swingueira nas batidas de rock. É o casamento perfeito, quem conhece desses dois mundos vai identificar os elementos de cada ritmo ali presentes. O timbre dos instrumentos. E trouxe esse vocal rasgado na música inteira, que a gente quase não vê em swingueira, com drive, tanto meu quanto da Julia Barth (Os Replicantes). Eu fico aqui falando, acabo me empolgando porque curti muito mesmo o resultado dessa faixa. É talvez a canção mais antiga do disco, foi composta ainda no começo do relacionamento com a Eryka, talvez por volta de 2014. Aqui e acolá a gente se estressava um com o outro, não conseguia acertar o passo, ansiosos, cobrando muito do outro, sem noção da exata responsabilidade que é a construção de um casamento, responsabilidade afetiva, cuidado mútuo, coisa que fomos aprendendo e construindo juntos. Assim, essas duas primeiras faixas do disco mostram dois momentos distintos do nosso relacionamento. Ingenuidade e alguma maturidade.
03) Sem Tempo, Irmão (Interlúdio I)
Essa é puro prazer. Ano passado eu comecei a gravar as músicas do “Nada Tem Sido Fácil Tampouco Impossível” no Calistúdio, meu estúdio, e sempre que concluía um arranjo, enviava para meu irmão mais velho, que toca bateria comigo, o Marciano Calixto. Na época ele estava passando uma temporada com o pai e eu pedia para mostrar as músicas pro pai. Só que nosso pai quase não para em casa, por isso que tem esses áudios do Marciano dizendo: “Ele não tem tempo, não tá aqui” (risos). Daí eu falei pra ele que ia fazer uma música com aqueles áudios todos, tipo essa aqui e ele duvidou (risos). Eu me senti desafiado (risos) e comecei a editar os áudios, cortar, acertar o tom. O resultado é o do disco. Aí tem uma coisa super positiva, aquilo que era uma cobrança dos filhos, a gente sempre reclamou que o pai nunca tem tempo para as coisas, tá sempre muito ocupado, hoje a gente dá risada dessa história ouvindo esse interlúdio.
04) Faz Tanto Tempo
Acho que sobre a lírica de “Faz Tanto Tempo” eu não tenho muito o que acrescentar, a letra ao mesmo passo que tem ali um jogo de palavras no refrão, uma circularidade, uma gradação, é muito direta. Toca no que um dia foi ferida para mostrar que cicatrizou e que se cicatrizou, não tem por que cutucar novamente. Faz uso de anáforas, sinestesia, recursos estilísticos para reforçar uma ideia e fala de um eu-lírico que de repente se sentiu pressionado por alguém que perdeu tanto o timing, que quando se dá conta de que vacilou, busca se desculpar, porém a pessoa superou sozinha a dor do vacilo alheio, se emancipou, se empoderou, foi seu próprio apoio, seu próprio ombro amigo e já não tem mais necessidade de atenção, não carece mais do afeto de quem tantas vezes se negou a dar, pois até já a perdoou. Perdoou antes mesmo que a pessoa se desse conta do vacilo que cometeu. A vida tem dessas coisas, às vezes, no alto da nossa arrogância, acreditamos não sei como ou por que, que sempre vamos ter quem queremos à nossa disposição eterna. Quando vê, já foi. “Se você ficou mal com o mal que me fez, hoje estou bem”.
05) Deus É Bom (O Tempo Todo)
É curiosa a construção dessa música porque eu criei a melodia e usei essa frase que é conhecida da comunidade evangélica norte-americana, em especial, com o bordão ‘God is Good (All The Time)’, mas só depois vim conhecer o filme “Deus Não Está Morto” (2014), de Harold Cronk, no qual a frase é inicialmente citada. Quem me apresentou o filme foi o Guilherme Filho, baixista que toca comigo. Eu conhecia a frase de texto de internet, rede social. De repente começou a me soar melódica até que a música começou a sair. Eu tinha duas estrofes e as melodias prontas, essa e a da Fé de Jó, aí durante um ensaio o Marciano disse que estava achando a música muito curta e a gente precisava aumentar (hahaha). Então ficamos ali tocando, tocando, tentando alguns outros versos e toda a banda me ajudou. Nos créditos dessa faixa eu cito o nome de todos, Vitor Manoel, Ronnyel Seed, Guilherme Filho e Marciano Calixto como co-parceiros. Tem ainda aquele trocadilho no final: “Deus é bom o tempo todo/ O tempo todo Deus é bom/ Deus é bom o tempo todo/ TODO Deus é bom”, onde a ausência de algumas palavras cria um novo sentido para o verso final e amplia o alcance de Deus, englobando todas as correntes espirituais conhecidas no mundo, o que também se evidencia pelas imagens que o Agostinho Torres usou na construção do clipe que lançamos.
Eu também subverti (por uma boa causa) o Salmo 23 da bíblia (O Senhor é meu Pastor) ao cruzar e trocar a palavra ‘Senhor’ por ‘Oxalá’, ou seja, é o Candomblé dentro do Cristianismo e vice-versa, pois eu defendo que todas as religiões, todos os credos, todas as fés são importantes e necessárias, que a intolerância religiosa não constrói nada positivo para a sociedade, só violenta, mata e apaga pessoas, cultos e histórias. E eu sei o que é isso, sou Umbandista e acompanho, muito triste, o que os ‘traficantes de Jesus’ têm feito no Rio de Janeiro, por exemplo. Fiquei chocado em como uma mãe em Araçatuba, São Paulo, perdeu a guarda da filha de 12 anos por tê-la iniciado nos rituais do Candomblé. Detalhe, perdeu a guarda da filha com apoio do Estado, que é laico, o que é pior.
A gente vive num país onde na hora que a criança nasce já recebe o batismo cristão e ninguém diz nada, nunca uma mãe perdeu a guarda duma filha por batizá-la logo após o nascimento, sendo que o batismo também é uma iniciação, também é um compromisso com a religião. Sendo assim, então por que a criança quando é para ser cristã pode ser batizada na hora que nasce e outra não pode ser candomblecista aos 12 anos de idade por vontade própria? Consegue perceber o tamanho do problema que é o preconceito, o racismo, a intolerância religiosa e as coisas que essas três ferramentas causam como a separação de uma família, uma separação violenta ainda mais?
Então essa faixa tem essa missão de reunir no vídeo, nos versos, todos os credos, sem distinção. É uma música para aproximar, para estreitar laços, para todo mundo curtir, dançar, pular abraçado mesmo. Foi pra isso que eu convidei o Jotaerre, pois quando o assunto é meter dança, ele e a guitarra dele embrazam no Chora Violla.
E se você perceber, o disco vem se dividindo em blocos, as duas primeiras faixas trazem duas faces de um relacionamento amoroso. As seguintes formam A Trilogia do Tempo: uma brinca com a falta de tempo, outra mostra que o tempo ajuda a superar o passado e a terceira diz a quem tem fé e a quem não tem que Orixá é bom tempo todo.
06) Deus Nos Livra
Comecei a escrever essa letra para uma parceria com o Zé Bigode, guitarrista do Rio de Janeiro, mas por diversos motivos acabou não acontecendo. Acho que eu só tinha três versos do refrão e deixei eles lá guardados um bom tempo. Quando comecei a gravar o disco, que estava montando a tracklist, lembrei dos versos que tinha enviado ao Bigode e comecei a tentar cantar, buscando uma melodia. Foi assim que muito naturalmente ela me veio como um funk, eu cantava e sentia a pulsação, a batida, a marcação do funk. A melodia me chamava pro funk e eu não podia fugir disso. Então peguei pra ouvir muito mais funk, estudando mesmo, observando as composições, nuances. Deu tudo certo e eu adotei o refrão dessa música como estilo de vida, uma oração para qualquer hora do dia.
07) Nya Akoma
Inicialmente se chamava “Mantra”. Até que numa noite tive um sonho e ouvi a palavra “Akoma”. Fui pesquisar e conheci os Adinkras, escrita pictográfica dos antigos ganenses, os akan. São expressões carregadas de imagens, simbolismos e mensagens importantes para a transmissão de valores de geração a geração na África, sendo o Sankofa, o mais conhecido, talvez, no Ocidente.
Então nós temos aqui um retorno à mãe Àfrica, o início de uma imersão nos saberes ancestrais, o auto entendimento afrodiaspórico, o afrocentrismo presente. E quando o negro começa a “Tornar-Se Negro”, como dizia a Neusa Santos, ele começa a curar muitos de seus traumas que o mundo ocidental lhe causou e causa.
A música fala disso, alguém que não vai mais repetir um estilo de vida que causa ansiedade, que é à base de cobrança, de competição, fala de alguém que não vai mais se permitir adoecer por conta dessas coisas.
E tem os diversos loops, uma das guitarras casada com o baixo, a repetição das melodias e do verso “Eu Não Vou Mais” com poucas alterações evocando a ideia de circularidade africana, da aldeia, da roda de capoeira, da roda de samba, do prato e faca com a intenção de criar uma atmosfera, um ambiente de alguém que quer, de fato, internalizar, que não vai mais [fazer algo] e não vai mesmo e que a única maneira de isso acontecer é repetir para si até a exaustão, expurgar a doença pelo cansaço, pela fadiga até a explosão final que é quando entra o Jeza da Pedra lindamente com aquele timbre dele de um grave aveludado falando da tristeza que é ter um jovem negro morto a cada 23 minutos e pedindo que o Brasil deixe em paz sua sexualidade no país que lidera o ranking mundial de assassinatos de transexuais.
08) Korey Wise, Eu Te Amo (Interlúdio II)
É um spoken word, uma manifestação onde o canal de comunicação é a oralidade e a atitude. O curioso desse estilo é que cada texto vai ganhando novos sentidos sempre que uma pessoa diferente o interpreta, pois cada uma vai dar entonações diferentes, conforme suas próprias perspectivas na hora de recitar.
Essa faixa é uma saudação aos meus mais recentes aprendizados na vida e uma forma de compartilhá-los, pois “Conhecimento é Amor compartilhado”; ela também justifica o disco, mostra que, apesar das limitações eu consegui finalizá-lo. Explica o porquê da frase que dá título ao álbum; resgata o caso do Cinco do Central Park, através da citação ao Korey Wise, que eu conheci na série da Netflix, “Olhos Que Condenam”, da Ava DuVernay; antecipa a faixa seguinte quando cito a preta velha vovó Maria Conga.
Tudo isso vai se desenhando em cima de um sample do “Boa Voz”, capoeirista conhecido por sua voz belíssima e marcante e clássicos pontos de capoeira. Acho que é a faixa do álbum com mais referência explícita e eu, muito provavelmente ainda devo estar esquecendo alguma aqui nesse texto. Essa é a faixa preferida do Jeza também, claro depois da que ele canta comigo (risos).
09) Ensinamentos da Preta Velha Vovó Maria Conga
Essa faixa eu tenho um carinho muito grande por ela. O refrão foi a espiritualidade quem me deu durante uma consulta com a entidade. No dia seguinte, eu fiquei com a conversa na cabeça e comecei a tentar sair do refrão, assim começou um fluxo natural, os versos foram chegando, chegando e quando fui ver tinha a música pronta e já havia me decidido que seria um xote, naquele momento eu identificava o xote como uma sonoridade que os pretos velhos gostariam de ouvir. Escrevendo e relembrando agora parece que estou revendo o momento em que ia escrevendo os versos no papel.
Assim o fiz. Somente quase um ano depois de ter feito a música que eu conheci a história de Maria Conga, que foi sequestrada da África ainda criança e trazida para o Brasil, onde foi separada de sua família: “se a vida embrutece a gente, na infância nos quebram por dentro”.
Quando eu me dei conta, ao conhecer a história de vó Maria Conga, que a música que eu tinha escrito um ano antes, também contava a vida dela, senti um baque, uma emoção, não sei explicar, mas muito forte, fiquei ouvindo a música mixada e lembrando desse meu percurso dentro da Umbanda, pois pesquisar a história das entidades é conhecer mais do próprio Brasil, é conhecer como meus antepassados, meus ancestrais viveram, onde encontravam forças para seguir em frente e lutar por liberdade.
Vó Maria Conga ganhou a liberdade com mais de 30 anos e a partir dali fez um pacto consigo mesmo de lutar pela liberdade dos seus irmãos, foi assim que ela ajudou a fundar diversos quilombos no Rio de Janeiro, incluindo o que hoje leva o nome dela. Ter contato com a história de vida de vó Maria Conga me abriu os olhos para entender que a pior fase vivida pelos meus irmãos já passou e que eu não devo esmorecer, não devo perder tempo reclamando da minha vida, mas sim buscar melhorar tudo que me for possível, dentro das minhas condições, ao meu redor. Assim farei por mim e pelos meus. E é por isso que esse disco existe, para trazer força e luz aos meus irmãos e irmãs de todo mundo. Adorei as almas. Saravá pra vovó Maria Conga!
10) Nada Tem Sido Fácil Tampouco Impossível
Se não me engano, desde 2014 que eu criei essa frase e venho fazendo dela um guia na minha vida, meu norte, um mantra também. “Isso passa” era o mantra que o Chico Xavier recebeu de seu mentor Emmanuel, né, pois bem, alguma entidade que me acompanha deve ter me soprado isso no ouvido. Inclusive, anos depois durante meus estudos sobre Umbanda, encontrei praticamente essa frase em um livro psicografado pelo Rubens Saraceni, escritor umbandista.
Mas tem outras curiosidades também. Em 2017 comecei a rascunhar os versos dessa música e de lá para cá foram sendo melhorados, inclusive, uma semana antes de fechar e finalizar o disco, faltava colocar apenas a voz nesta música.
Ela tinha sido gravada em C (dó maior) e o tom ficou muito baixo pra mim, eu não conseguia atingir os graves que ela pedia de tão baixo que o tom estava pra mim. Então o Elimar (mix/master) e o pai sugeriram subir dois tons e me deram três dias para regravar os instrumentos. Eu trouxe o projeto da música pra casa e aproveitei para mudar umas coisas no arranjo que eu ainda não estava satisfeito. Acabou que a música ganhou a última estrofe que não tinha antes e aquele arranjo do final com o solo de dois compassos do teclado. Foi assim que fiz meu amigo Agostinho chorar pela primeira e a segunda vez que ele ouviu a faixa finalizada.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.