Texto por Renan Guerra
Em “O Homem, o Mito, o Viagra”, oitavo episódio da segunda temporada de Sex and the City, exibido em julho de 1999, um cara mendiga a companhia de Miranda (Cynthia Nixon) argumentando que, sem ela, ele teria que “ficar aqui ouvindo esses jovens estudantes universitários bebendo Amstel Light e debatendo Fiona Apple”. Essa frase tinha um tom pejorativo e pretensioso, como que desdenhando do poder juvenil da artista que, na época, tinha vendido mais de 5 milhões de cópias de seu disco de estreia, “Tidal”, de 1996, e estava prestes a lançar o segundo, “When the Pawn…”, que sairia em novembro daquele ano. 21 anos depois, as pessoas voltaram a discutir Fiona Apple com o mesmo afinco que no século passado. Em plena quarentena, a cantora reapareceu e adiantou o lançamento de seu 5º disco, “Fetch The Bolt Cutters” (2020), que foi festejado pela crítica com fogos de artificio, resenhas derretidas tal qual manteiga em pão quentinho e notas 10. O debate estava formado.
Em questão de horas após o disco ter chegado às plataformas (e, provavelmente, com poucas audições), “Fetch The Bolt Cutters” já tinha sido alçado ao posto de melhor álbum do ano (em abril) suscitando diversas questões: esta não era uma avaliação prematura? As pessoas não estão exagerando? Fiona Apple sempre foi interessante assim?
Bem, três meses depois já é possível dizer com bastante segurança: as avaliações podiam ser prematuras, mas estavam corretas. “Fetch The Bolt Cutters” é um discão poderoso e, sim, Fiona Apple sempre foi uma força descomunal, mas as pessoas estavam muito interessadas no seu clube do Bolinha, em que as mulheres sempre foram as intérpretes, as belas vozes e que a Fiona sempre era a problemática, a jovem que não sabia lidar com a mídia, a garota com cara de modelo que reforçava o heroin chic, “anoréxica e frágil gritando suas afetadas e conflituosas influências de Lolita”, como tentou descrever um “fã” britânico, que resumiu: “O nome dela se tornou abreviação para pretensão”.
A história de Fiona Apple rende diferentes debates: a presença das mulheres na indústria da música; a complexidade das cantoras-compositoras da geração anos 90; as problemáticas do sucesso midiático na adolescência (Fiona tinha 19 anos quando “Tidal” estourou); a anorexia e a bulimia vendidos como conceito estético; a relação artista versus mídia. São muitas questões que rendem boas discussões e que podem nos dizer muito, mas esse texto aqui não quer se voltar para essas questões (quem sabe, em outra hora, em outro momento), mas sim celebrar o fato de que Fiona Apple é uma artista sempre vibrante e que consegue ficar reclusa durantes anos (foram oito anos de “silêncio” fonográfico entre “The Idler Wheel…”, de 2012 (13º melhor disco dos anos 10 no Scream & Yell), e este “Fetch The Bolt Cutters”), para ressurgir em silêncio com um disco e nos fazer rever tudo de novo, pensar tudo de novo, entender tudo de novo.
Curiosamente, quando Fiona Apple surgiu com “Tidal” e o hit “Criminal”, ela era celebrada como uma nova voz da música pop. Agora, em “Fetch The Bolt Cutters”, muitas pessoas se posicionam na linha contrária, querendo afastar Fiona do pop, dizendo que o som dela é obtuso, difícil, complexo demais. Se não ficou muito claro nos discos anteriores, vale a pena ressaltar agora: Fiona sempre foi uma artista complexa, talvez até difícil, mas nunca deixou de ser pop, e sim passou a reler o pop de uma maneira bastante pessoal, mas a estrutura segue lá: as faixas são curtas, há refrãos e repetições, há batidas reconhecíveis e reproduzíveis. É uma leitura muito personal do pop, podendo, talvez, ser diferente do que o ouvinte espera, mas não deixa de ser pop.
Vladimir Safatle, em entrevista aqui no Scream & Yell, já falou como existe “um desnível no tipo de circulação entre literatura, cinema, artes visuais e música, é como se a música tivesse que ser a mais segura de todas as artes, aquela que não te coloca problemas do tipo ‘como eu ouço isso?’. Se aceita isso no cinema, por exemplo, você vai ver um filme e se coloca num lugar que é ‘como eu vejo isso?’, mas com música parece que é mais difícil”. Partindo desse pressuposto, espera-se um conforto natural da música e, muitas vezes, quando encontramos um confronto, isso pode ser tensionado. O curioso é que aqui nem estamos falando de um disco que descontrua a música ou nada disso, mas de um disco até bastante convencional, que se apropria da voz e dos instrumentos de uma forma mais pessoal e isso pode soar estranho em tempos de músicas produzidas por algoritmo.
“Fetch The Bolt Cutters” foi gravado durante cinco anos, em sua maioria na própria casa de Fiona, em Venice Beach, em Los Angeles – ela considera a casa como um instrumento do disco, como uma parte da banda. Produzido pela própria cantora, ao lado de Aileen Wood, Sebastian Steinberg e David Garza, o disco conta com participações dos cachorros e dos gatos que dividem a casa com Fiona. Outro detalhe importante é que o disco foi mixado no GarageBand, o que explica alguns takes longos dentro do disco e a voz mais crua, já que segundo a própria artista não tinha muita experiência com o programa.
Tematicamente, o disco fala sobre temas comuns no universo de Apple: liberdade, exploração, relacionamentos abusivos, bullying, assédio sexual e a complexidade dos relacionamentos interpessoais. “Fetch The Bolt Cutters” é como uma extensão natural de “The Idler Wheel…”, pois aprofunda os temas de outras formas e explora ainda mais as possibilidades vocais e sonoras de Fiona. É como se cada vez mais fôssemos vendo a artista dominar seus fantasmas, seus medos e suas feridas e isso ajuda a construir um trabalho que é extremamente pessoal, íntimo, mas que ainda assim reflete as psicoses e os medos de cada ouvinte.
A conclusão geral é que “Fetch The Bolt Cutters” é sim o disco do ano (já estamos em julho), pois tem força, tem inventividade e tem uma raiva que é propulsora de coisas interessantes. É o ponto alto de Fiona Apple, coroando uma carreira complexa, de uma compositora forte, de uma vocalista entregue e de uma produtora que sabe dominar aquilo que quer pouco se importando com que o mercado e o mundo se espera dela. É bom demais ver Fiona se divertindo, compondo em casa, brincando com seus cachorros e falando de coisas barras pesadíssimas sem que seja necessário uma via crúcis de mártir para isso. É lindo ver Fiona tão saudável e tão forte. Ouçam “Fetch The Bolt Cutters” com a intensidade que ele merece e se deixem se guiar por Fiona, pois – como canta em “Shameika” – ela é “um bom homem na tempestade”.
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Também colabora com o Monkeybuzz.