entrevista por Pedro Salgado, de Lisboa
O encontro estava agendado para as 22 horas de Lisboa (18 horas no Rio de Janeiro), numa quarta-feira do mês de Junho. Alguns minutos depois da hora marcada, inicio a entrevista com Ana Frango Elétrico, por skype, contemplando diversos aspectos da sua carreira. No diálogo evidencia-se uma cantora e compositora expansiva, apaixonada por seu trabalho e pelas referências artísticas que integram o seu imaginário. Das suas palavras, resultam a crença de que o confinamento pode estimular a criatividade e alguma apreensão pelo momento conturbado que o Brasil está passando.
Um dos traços característicos de Ana Frango Elétrico é o grau fantasioso e onírico das letras das canções, cujo impacto é amplificado musicamente por um cruzamento sonoro refrescante, acompanhado de repetições frásicas. “Na maioria das letras eu estou na posição de observadora, no entanto, atualmente, sinto que o meu método mudou para algo pessoal e íntimo, ficando mais atrelado à música”, conta-me, enquanto destaca o seu apego ao modo instrumental, abrindo espaço para parcerias líricas e variados estímulos criativos.
Após um 2019 que lhe rendeu muito reconhecimento (prêmio da APCA e presença com um dos grandes discos do ano na votação do Scream & Yell), de uma forma espontânea, Ana Frango Elétrico revela-me que já está trabalhando em novo material e que, igualmente, estava muito animada com a perspectiva de se apresentar em Portugal (o show que ocorreria em 13 de Maio na sala lisboeta Musicbox foi cancelado devido à pandemia), acrescentando que seria como se recomeçasse a sua carreira. “Eu ia-me apresentar sozinha em Lisboa e fiz o mesmo no Rio quando não tinha público. Lembro-me que sentia um frio na barriga e vontade de conquistar coisas novas e julgo que iria suceder algo parecido em Portugal”, conta, e conclui com uma promessa: “Farei um show aí logo que seja possível”.
Do Rio de Janeiro para Lisboa, Ana Frango Elétrico conversou com o Scream & Yell. Confira:
Qual foi o momento em que você sentiu que pretendia fazer da música a sua profissão?
Eu tenho uma banda de colégio, desde os meus 16 anos, que se chama Almoço Nu. Inicialmente, tocávamos versões e depois (o repertório) se tornou autoral. Comecei a compor para esse grupo tanto sozinha como coletivamente. Depois fiz outras canções com uma pegada que eu não entendia ao certo. Quando saí do colégio, eu pretendia estudar artes plásticas e não queria fazer música. No ano em que entrei para a faculdade de Belas Artes, apresentei-me sozinha em lugares pequenos como Ana Frango Elétrico, interpretando aquelas canções diferentes que não eram do Almoço Nu e para as quais usei esse alter-ego. A partir desse momento as coisas foram avançando, larguei a faculdade e comecei a tocar bastante. No final da semana existiam sempre concertos, quando me chamavam eu ia, fosse numa cena underground do Rio de Janeiro ou em outros lugares. Gradualmente, criei o meu público, de porte médio, nas casas de shows. E reparei que os espetáculos ficavam lotados e o trabalho espalhou-se mais. Houve um momento na minha carreira em que eu seguia o fluxo (e ainda procedo assim), mas tive de pegar as rédeas no sentido de levar a sério aquilo que estava fazendo. Refiro-me ao fato das pessoas ganharem à nossa custa e não estou falando que não devem receber. Mas, a dado momento, ficou desproporcional, porque todos lucravam menos eu e desgastou-me energeticamente e financeiramente. O meu hobby passou a ser uma ocupação. Ao fim de muita atividade eu assumi o comando e o meu segundo disco, “Little Electric Chicken” (2019), fala bastante sobre isso e na necessidade de me profissionalizar dentro das minhas ambições. Sinto que do primeiro álbum para o atual me organizei mais. Pode ser loucura, mas pretendo expandir isso até no meu trabalho como pintora ou em outras questões gráficas que me rodeiam.
Por que é que o seu projeto se chama Ana Frango Elétrico?
O meu sobrenome é Ana Fainguelernt, que está ligado à minha família que veio da Rússia. É algo difícil de pronunciar, porque tem muitas consoantes. A história é longa, mas resulta de uma brincadeira poética com a palavra, o som e com a vontade de sair da questão patriarcal. Trata-se de uma forma de desvinculação do nome de batismo e de ligação a outras possibilidades de existência ou sexualidade; questionando se é homem, mulher, bicho, etc. Quando era criança, brincavam comigo chamando-me Ana Esparguete e outros adjetivos, por isso escolhi o nome Ana Frango Elétrico para controlar a brincadeira e automaticamente essa designação encarna no meu laço criativo, mas já não sou só eu. Sinto que o meu trabalho ainda está se processando.
Yoko Ono é uma das suas maiores referências artísticas. Nela, encontro um sentido provocatório e alguma estridência vocal que ressoam na sua música. São apenas estes os aspectos da sua admiração?
Existem mais razões. A irreverência interessa-me. Não que eu tenha que insultar toda a gente ou mostrar a minha bunda num show, mas a irreverência faz parte de mim. Inclusivamente, questiono as coisas de que gosto, os artistas do passado e isso acontece por mais que eu ame isso tudo. Por essa razão, admiro muito a estridência e irreverência da Yoko e, principalmente, as questões poéticas dela agradam-me bastante. Além disso, destaco o aspecto da produção sutil. Quando produzimos música não temos de falar só de frequência ou do microfone em que cantamos, devemos pensar na energia e na cor. Temos de nos saber comunicar com outros artifícios e eu sinto isso nela, porque não é só técnica. Na música “Imagine”, de John Lennon, está lá a Yoko Ono, a canção é ela. Julgo que a Yoko ficou muito associada a um ‘peace and love’ deitado na cama. Mas, o John entendeu e conseguiu traduzir a ideia que ela lhe apresentou: uma poesia libertadora, que cria possibilidades, desperta a imaginação e é para todas as idades. O livro da Yoko (“Grapefruit”) está nesse contexto. Acho bonito quando a poesia e a música apresentam possibilidades de proposições. Quando você escreve, fala ou propõe, as pessoas que leem ou escutam sentem coisas, mas também pode trazer nostalgia ou lembranças. Ela tem isso e a sua poesia não é só surrealismo, tem engajamento e potencia, lugares onde queremos chegar.
No álbum de estreia, “Mormaço Queima” (2018), a Ana abordou o experimentalismo e a psicodelia por uma questão de gosto pessoal ou por sentir que essas sonoridades serviam melhor às canções?
Um pouco dos dois. No “Mormaço Queima”, as canções reportavam aos meus 16 e 18 anos, comecei a gravá-las aos 18 e acabei por lançá-las dois anos depois. Eu tocava sozinha, mas hoje em dia (tocando só) faço isso de uma forma diferente de há quatro anos atrás. Quando começamos a produzir o “Mormaço” (o disco foi produzido por Ana Frango Elétrico em parceria com Guilherme Lirio, Gustavo Benjão, Marcelo Callado e Thiago Nassif), ficamos em dúvida se usávamos click, se iriamos tocar ao vivo e foi difícil tomar uma decisão. Mas nós escolhemos que a aposta era em mim e o que ditava a regra era que tocasse sozinha. Foi uma escolha ousada, porque talvez não valorizasse tanto as canções e outras coisas entrariam em jogo. Decidimos não usar click e a primeira coisa que gravamos foi voz e guitarra. Por isso, era o meu timbre e som de guitarra aos 18 anos e quando o disco foi lançado, já estava tocando de forma diferente. Só de gravar o disco senti que a minha maneira de o registar também mudou. Eu era mais rebelde e perguntava-me: “Porquê click?”, “Que produção musical é essa em que a última coisa que chega é a voz da cantora cantando? Não há voz no processo?’. Nesse sentido, quisemos desvincular certos procedimentos fálicos e machistas, que são muito repetidos, e criamos um novo sistema em cima de mim. Foi uma experiência. Houve coisas que funcionaram e continuo usando, enquanto outras nem por isso. Atualmente, não sou tão subversiva, porque fiz algo surreal e psicodélico e agora já posso explorar novas ideias. Mas o “Mormaço” foi um disco muito importante, abriu-me várias portas, aprendi bastante durante o processo e o meu ouvido mudou muito depois dele.
Para mim, “Roxo” é uma das melhores canções que você fez. Gostaria de saber como foi a transposição do conceito musical para o clipe.
Sinto que a faixa “Roxo” (mesmo tendo elementos que possam me incomodar um pouco), musicalmente ou como vídeo, foi onde consegui traduzir melhor a questão cinestésica associada ao meu trabalho. Porque estou falando de uma cor da qual eu não menciono o nome durante toda a canção, apenas falo da mistura de magenta e azul (que resulta em roxo). Para além disso, estou abordando processos poéticos, como agora e depois, em cima ou em baixo, e notar que enquanto estamos conversando tem alguém transando no apartamento de cima. Todos esses paralelos são verdadeiros e não são inventados. As pinturas no clipe são minhas e acho que consegui retratar esse aspecto cinestésico, porque estou falando de pintura, mas não só disso, uma vez que eu entro nos meus quadros e misturo as tintas. Consequentemente, é algo que está em mim e representa a forma como eu sinto as coisas. Existe uma interligação entre as cores, o gosto e a música e eu trabalho assim.
Do seu disco mais recente, “Little Electric Chicken” (2019), retenho a boa convivência entre um pop exuberante (“Se No Cinema”) e uma soul tropical (“Chocolate”), mas acima de tudo as suas interpretações são mais classicistas. Concorda com esta leitura?
Concordo! Esse disco é classudo e doido ao mesmo tempo. Foi como eu pretendia. Quando digo que é doido refiro-me à circunstância das estruturas não serem tão clássicas, alguns pormenores são menos óbvios e a poética não é tradicional. Sinto que o trabalho é quase um sample de classe, mas com outros aspectos. Houve duas imagens que me nortearam no processo do álbum, uma delas resultou do trecho de um poeta revolucionário russo que gosto muito, Vladimir Maiakovski: “A todas vocês, que eu amei e que eu amo, ícones guardados num coração-caverna…”. Acho que esse excerto é sobre o “Little Electric Chicken” e isso despertou a minha imaginação. Nele, estão presentes os meus afetos amorosos, familiares, lembranças e nostalgias. O poema orientou bastante e houve outra imagem decisiva, o churrasco num antiquário. Eu sinto que é como se eu entrasse num brechó (loja vintage) e fizesse um churrasco de calcinha e sutiã com biquínis de néon e óculos do ano 2000. Nesse contexto, juntei referências, que apliquei em outras coisas, dando-lhes um pouco de poética, sarcasmo e acidez.
Em que medida o confinamento afetou a sua produtividade e influenciou a sua criatividade?
Bastante! Mas em nenhum momento fiquei desanimada com as coisas que caíram. O que me causou tristeza foram outras situações. Apenas pensei: “Que pena isso acontecer! Tinha tantos shows legais para fazer…”. Sem me lamentar nem olhar para o meu umbigo devido a questões de agenda. Relativamente à criatividade, a quarentena influenciou-me muito. No momento, vivo uma fase de desvalorização de algumas coisas e reaprendendo e aprendendo outras matérias. Tenho gravado em casa, estou preparando um novo single (“Mama Planta Baby”), que será editado no segundo semestre deste ano e assinando uma produção musical sozinha. É a primeira vez que tomo posse do processo criativo e em que gravo uma bateria eletrônica e um órgão. Repensei alguns aspectos e não tenho feito muitas composições, mas musiquei uma letra da Ava Rocha que eu lhe pedi (já registrei uma base da canção e solicitei a um amigo que gravasse a bateria). É uma fase interessante, na qual equacionei o uso da tecnologia no meu trabalho e atualizei alguns métodos que estavam atrelados ao século XX.
Já começou a gravar novas músicas?
Sim! No princípio, planejava gravar um novo disco no final do ano ou no começo de 2021 e já tinha nome e repertório. Agora estou repensando algumas coisas, mas tenho dois projetos em mente. Sinto-me ativa, mas não tanto como estive, porque nos meus álbuns anteriores tinha muita pressa e estava ansiosa. Julgo que aconteceu pelo fato de ser mais nova e querer fazer as coisas rapidamente. Como já fiz isso, atualmente não sinto tanta necessidade. Acalmei, embora seja um pouco obsessiva no trabalho.
O que você mais ambiciona como artista?
O meu objetivo passa por me sustentar mais com a minha arte e não ter de ceder. Gostaria de produzir a música de outros artistas e atingir um universo criativo completo, interligando a minha pintura, os meus desenhos e a minha música. Também pretendo viajar, conhecer lugares, conquistar novos espaços e estabelecer parcerias com outras pessoas. Entretanto, irei apresentar este ano um livro de poesia chamado “Escoliose”, lancei um vinil no Japão e quero editá-lo na Europa, tal como nos Estados Unidos e tenho ambições nos vários continentes. No entanto, tenciono organizar o meu trabalho e expandir-me de uma forma bonita e não colonialista.
Acredita que os problemas que o Brasil está enfrentando terão uma solução?
Espero que sim. Sinto que a solução não está no Governo atual e além disso o Brasil tem uma estrutura de construção muito triste, colonialista e racista. Acredito que a arte pode ser uma locomotiva para essa resolução e a tecnologia poderá abrir espaços de conversa e repensamentos. Mas, sinceramente, está tudo tão complicado e entristece-me cada vez mais assistir a isso e perceber que temos o pior presidente do mundo. O Rio de Janeiro teve governantes que roubaram muito. É dramático verificar que mesmo num cenário de pandemia existem responsáveis políticos desviando dinheiro destinado ao sistema de saúde, ou seja, assassinando pessoas. A nossa elite é bastante mal educada, escravocrata e sem noção. Por isso, não sei onde vamos parar, quando o presidente vai perdendo apoios e quem resta é ainda mais radical.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Hick Duarte / Divulgação.
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