entrevista por Leonardo Vinhas
Se os anos 90 foram a verdadeira new wave brasileira, como defendem jornalistas como André Forastieri e Ricardo Alexandre, a campineira Linguachula é uma daquelas bandas que, como tantas da new wave “original” dos EUA, entrou para a história como uma que foi mais comentada que ouvida. Não que seu som não merecesse muitas audições, mas, embora sua demo tape tenha circulado bastante, seu primeiro álbum, de 1995, foi lançado pelo selo Banguela (de Carlos Eduardo Miranda e dos Titãs) já em seu crepúsculo (e ainda inédito em digital), e sua mistura de punk, pós-punk e ritmos brasileiros não conseguiu ir muito além do circuito de shows do interior.
A Linguachula sempre era mencionada por seu ataque no palco, apresentando uma espécie de skate punk brazuca e de cabeça aberta. Era, garantem os testemunhos da época, muito alto, suarento e direto. Mas os atrasos no lançamento do disco e o encolhimento progressivo do circuito alternativo que realmente fazia as bandas circularem cobraram seu preço, e a banda interrompeu suas atividades.
Em 2018, porém, o vocalista e guitarrista Dê Ferro retomou o grupo com uma nova formação. E agora, 25 anos depois da estreia, chega o segundo álbum, “Som da Quebrada para Quem Quer se Divertir”, lançado pela Monstro Discos, um disco que soa tão pesado quanto seu antecessor, porém se permitindo mais vagar (no primeiro álbum, nenhuma canção ultrapassava os dois minutos de duração), presenças espirituais, e um universo lírico ainda mais conectado às influências literárias do vocalista, sem deixar de lado o caráter urbano, explicitado no título.
Por e-mail, Dê Ferro faz a ponte entre a época que a banda surgiu e o momento presente, comenta a mudança na formação e o que isso muda no som do Linguachula.
Como é retornar aos estúdios 25 anos depois? A ideia é “retomar de onde parou” ou entender todas as mudanças que vieram com o tempo e incorporar ao som?
Linguachula voltou ao estúdio com uma nova formação. O amigo e produtor Caio Ribeiro, que produziu nosso primeiro álbum, foi o idealizador dessa volta. No sentido de relacionamento com a cena, a sensação que tenho é que nossa carreira retomou do ponto de onde havíamos parado. Linguachula é uma banda que não foi esquecida, pois foi bastante representativa e respeitada no rock underground dos anos 90. Hoje, após tantas outras experiências vividas, tanto na música como nas nossas trajetórias pessoais, podemos explorar com mais maturidade as transformações das últimas décadas. Nossa musicalidade, certamente, reflete isso.
Sendo uma nova formação, o que ela traz da “essência” da banda e o que ela traz de novo pro som de vocês?
Essa nova formação tem muito da nossa essência. Campinas tem uma produção intensa de bandas. O Victor (Coutinho, baixo) e o Adriano (Caetano, bateria) vieram dessa cena que gerou bandas incríveis. O Victor tocou e gravou com várias bandas, entre elas os Muzzarelas e o No Class. O Adriano é ex-batera do Formigueiro, formada por dissidentes do Lucrezia Borgia, que era banda histórica da cidade, também da geração Juntatribo, e foi apresentado pelo Caio Ribeiro como sendo “um dos melhores bateras da cidade” e que tinha tudo a ver com o Linguachula. Victor e Adriano são da mesma cena que criou e recriou o Linguachula. O Victor, através de suas influências, contribuiu com arranjos e bases melódicas mais trabalhadas, o Adriano trouxe muita precisão nas batidas e um swing particular, que é uma extensão do que o Lingua já fazia nos anos 90. E eu, integrante da formação original, trouxe novas experiência musicais e uma vivência mais aprofundada nas artes, intensificando a ligação entre elas e o rock urbano que produzimos.
Quando o primeiro disco saiu, mercado e expectativas para ter uma banda eram muito diferentes. Imagino que a opção de gravar em um porta studio e fazer tudo em take único já mostra que agora o entendimento do cenário e as expectativas são outras, certo?
Sim, quando nosso primeiro álbum saiu tínhamos pouca experiência em todos os sentidos e tivemos dificuldade em lidar com a visibilidade da banda e com o assédio das gravadoras e do mercado. Acredito que isso acabou fazendo com que a banda interrompesse suas atividades. Hoje, nosso propósito mantém a mesma essência de quando começamos: fazer arte, estarmos ativos e fazer um rock verdadeiro e engajado. Num mundo totalmente digital resgatamos a origem analógica do rock. Nossa busca é por algo com consistência artística, que essa seja percebida tanto pelo nosso público como pelas pessoas que gostam de outras vertentes do rock.
A geração Junta Tribo tem sido alvo de livros, documentários… Vocês se sentem representados nessas paradas, ou sentem que esses filmes acabam enfocando em mais do mesmo?
O Junta Tribo foi um marco no rock brasileiro e ter participado desse momento foi muito importante para o nosso trabalho. Nos sentimos representados sim, pois estávamos lá participando de tudo aquilo, inclusive tivemos o privilégio de tocar nas duas edições do festival. As produções são muito boas por manterem vivas essa lembrança e esse momento único do rock brasileiro.
Os festivais hoje têm um caráter mais de “festa” e menos de apresentar bandas, até porque a tecnologia mudou a maneira de conhecer novos sons. Com isso, até temos mais festivais, com mais estrutura, mas sem esse caráter marcante que os outros tinham. Você acha que agora, pós-pandemia, os festivais podem voltar a ter uma relevância que vai além da festa?
Alguns festivais continuam com essa relevância de apresentar trabalhos consistentes. O Bacafest, no Rio de Janeiro, o Goiânia Noise, em Goiânia e o Autorock, em Campinas, são exemplos de festivais que têm engajamento com a música e com o publico. Estivemos tocando neles e percebemos isso claramente. Existe um público significativo nesses encontros. Quem gosta de música e arte sabe que, no digital, é possível conhecer apenas parte do trabalho de uma banda, o melhor jeito ainda é o show ao vivo! E, nesse sentido, acredito que pós pandemia, as pessoas continuarão reunidas em torno das bandas que possuem conteúdo e qualidade.
No primeiro disco, o projeto gráfico já chamava atenção, mas agora existe todo um caráter importante, com o trabalho desenvolvido com o Fabio de Bittencourt se tornando uma homenagem póstuma. Queria que vocês contassem como se deu a relação de vocês com o Fábio e porque esse aspecto das artes plásticas e do design recebe tanto cuidado nas obras de vocês.
Fábio de Bittencourt foi um grande amigo e referência para nós, um artista polêmico que frequentava os shows de rock do underground e usava esse como referência na sua arte. Integrar as artes visuais ao nosso som é um desafio e buscamos apresentar, além da sonoridade, uma estética que crie um ambiente que reforce o nosso discurso e a nossa musicalidade. Conheci o Fabinho nas festas no Instituto de Artes da Unicamp, no final dos anos 80. Seu espírito de liberdade e sua criatividade intensa me chamaram a atenção e nos tornamos grandes amigos. O Fábio estava sempre presente em nossos shows e na cena underground, foi um artista polemico muito conhecido e respeitado na cidade.
Os anos 90 são lembrados como uma época na qual as bandas curtiam umas às outras e eram colaborativas entre si. Era assim mesmo? E como está a relação e o olhar de vocês para outras bandas no cenário?
Realmente o espírito colaborativo entre as bandas dos anos 90 era um diferencial marcante. Hoje ainda trilhamos e acreditamos nesse formato colaborativo. As bandas que vivem o rock underground continuam se ajudando e esse é o caminho. Atualmente existem bandas incríveis e excelentes músicos. Uma banda precisa ter conteúdo e autenticidade, estamos sempre atentos a isso e procurando dividir com elas nossa caminhada. Em nosso álbum há várias participações especiais de bandas ativas da cena atual. Ainda mantemos essa essência de prestigiar as bandas e sermos solidários, pois sabemos que estamos todos na mesma trilha.
Quais bandas você destacaria entre as mais recentes? Alguma te impressiona, te parece muito fora da curva?
Gosto de conhecer bandas novas e estou sempre garimpando. Algumas me chamaram bastante atenção sim. A Blastfemme, do Rio de Janeiro é uma delas e por esse motivo convidamos a vocalista, Daniele Vallejo, para participar do álbum cantando a música “Som de Quebrada”. Jonnata Doll e os Garotos Solventes são uma super banda fora da curva com um trabalho incrível. Molho Negro, Nicolas Não Tem Banda, Wallacy Williams, Cheyenne Love, do Rio de Janeiro, essa banda é incrível! Daqui de Campinas, destaco Bong Brigade, Reptilian Kids, Bad Taste, Blowpipe. Tem muita gente boa fazendo musica com conteúdo e qualidade.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell.
Eu vi dois shows da Linguachula em SP, uma no Parque do Carmo pra umas 20 pessoas, autografei o cd e tudo.
Eu ficava mostrando o cd pra todo mundo na escola, gravava fita, instia pq sempre achei muito boa!
Um vez encontrei a Nani no show da Cassia Eller e falei que era fã da banda.
Que legal voltarem, e o som tá muito bom.