entrevista por Pedro Salgado, de Lisboa
“Cresci escutando o Young Marble Giants, a Nico, o Velvet Underground, The Space Lady e o ‘Sleep It Off’, disco da Cristina (de 1984), que marcou-me bastante. Você pode encontrar essas referências em algumas canções que fiz”, conta-me a minha entrevistada, no início de uma conversa via skype. E durante vários minutos vai sobressaindo a sua personalidade extrovertida e uma vontade de superação profissional, em consonância com um trajeto singular. O seu nome é Maria Soromenho, ela é artista visual e designer, e passou do universo da moda para a música, apresentando-se desde 2017 como Callaz, um pseudônimo que define a sua carreira artística e o lado criativo de Maria.
Nos primeiros trabalhos, os EPs “Beer, Dog Shit & Channel nº5” (2017), produzido por Filipe Paes e “Gaslight” (2018), produzido por Primeira Dama e Chinaskee, prevaleceu a filosofia ‘Do It Yourself’ e a visão estética peculiar de Maria Soromenho. Em termos sonoros, os discos mostram uma inclinação para o pop experimental, que alterna com momentos de intimismo melancólico. De “Gaslight” recordam-se também duas canções alusivas a mulheres famosas: “Mary Landon Baker” (uma socialite americana dos anos 20) e “Florbela Espanca” (uma poetisa portuguesa). Questionada sobre o seu feminismo, Callaz não hesita: “Sim, sem dúvida que sou. Vivemos um momento melhor, mas as mulheres ainda são muito descriminadas. É importante ser feminista para defender os direitos das mulheres, porque acima de tudo são direitos humanos”.
Seu álbum homônimo de estreia (produzido por Adriano Cintra) recém lançado revela maior atratividade sonora e uma clarificação sentimental que beneficia a proposta musical de Callaz. “Sinto que cronologicamente o disco sugere um maior entendimento. Quando fiz o meu primeiro EP não tinha banda e sabia pouco sobre música. Agora sei mais sobre o que faço e pretendo fazer”, explica. A consistência e um relativo equilíbrio entre momentos de vulnerabilidade e de pegada dançante dominam o trabalho. Nesse sentido, destacam-se o pop eletrônico “What Would Rimbaud Do?”, o cruzamento do synthpop com o reggaeton (“De La Mancha”) e a romântica “Isadora´s Dream”. Na sombria “Sexo”, quando Maria Soromenho canta: “Eu sempre quis saber tudo sobre sexo, mas tive vergonha de perguntar” (uma frase do crítico de cinema e ensaísta português João Bénard da Costa), o seu objetivo era abordar algo mais profundo. “Trata-se de um assunto pouco falado quando uma pessoa está crescendo ou então é tabu. Nessas palavras também se encontra o pudor que resulta de Portugal ser um país católico. Existe um elemento de vergonha e eu sempre senti isso”, conta.
Enquanto recorda com satisfação os seus dois shows nas salas nova-iorquinas The Bowery Electric e Rockwood Music Hall, em Dezembro de 2019, Callaz revela-me que irá participar em breve do festival português Where The Music Meets e fará outra live numa pequena sala de Nova Iorque onde já atuou (The Tiny Cupboard), cantando duas canções. “Nunca fiz uma live e irei cantar sem microfone. Sinto que deveria investir em equipamento com melhor som”, diz. Relativamente ao futuro, expressa um desejo: “Gostaria muito de fazer um novo álbum ou outro EP. Espero estar com uma pessoa no estúdio, em Lisboa, para gravar esse disco”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Callaz conversou com o Scream & Yell. Confira:
Tendo em conta que você teve um percurso como artista visual e designer, como se deu a sua passagem para o mundo da música e mais concretamente para a Callaz?
Inicialmente, quando trabalhei como designer de moda e detinha a minha marca, durante pouco tempo, eu já era bastante influenciada pela música. Na época, utilizava músicos como modelos e os sons estavam bastante presentes e o mesmo sucedia no trabalho de artista visual. Os meus amigos e o mundo onde eu vivia estavam muito relacionados com a música, só que eu nunca pensei em compor, porque não tive essa aprendizagem. Entretanto, fui viver em Los Angeles em 2016 e fiquei lá um ano. Nesse período, um amigo fez uma letra em português e perguntou-me se eu a queria cantar. Eu nunca tinha cantado, mas aceitei o desafio, gravei num pequeno estúdio e gostei da experiência. Lembro-me de um mês depois estar assistindo a um show do The Pandoras, senti a energia delas e pensei que também conseguia fazer aquilo. Eu sou irmã de Rodrigo Vaiapraia (da banda portuguesa Vaiapraia) e quando lhe falei em trabalharmos juntos, ele aceitou. No regresso a Portugal, íamos começar os ensaios, mas eu não sabia o que fazer, porque não tocava nenhum instrumento. O Rodrigo disse-me que estava sem tempo e desafiou-me a fazer música sozinha. Pensei que não ia conseguir, mas avancei e foi assim que começou o meu projeto Callaz.
Como você conheceu Adriano Cintra e em que medida o trabalho dele no seu disco de estreia a surpreendeu?
Na minha adolescência, o Cansei de Ser Sexy era uma das minhas bandas favoritas e eu sabia que o Adriano tinha formado a banda. Em dado momento ele mudou-se para Lisboa e fiquei sabendo que era amigo de um amigo meu. Eu mandei-lhe as minhas demos e perguntei-lhe se queria produzir o meu disco e o pedido foi aceito. Nos EP’s anteriores eu trabalhei com dois produtores e correu tudo bem, mas, desta vez, o Adriano quis saber o que eu pretendia e isso gerou uma dinâmica muito boa. A estrutura das músicas está presente e é igual às demos que eu fiz, por isso sinto que este trabalho é muito meu. Essa foi a razão da minha aposta num disco homônimo, que reflete o meu trabalho. Ele surpreendeu-me favoravelmente e lembro-me de lhe mostrar um beat relativamente básico e o Adriano fazer um beat parecido, mas mais intenso (e melhor tecnicamente), no entanto respeitava a minha ideia. Em nenhum momento estivemos separados enquanto fazíamos as músicas e gostei imenso de trabalhar com ele. O Adriano é um produtor incrível.
Após a edição do EP “Gaslight” (2018), você fez algumas viagens, passou pelos Estados Unidos da América e atuou em vários países europeus. Gostaria de saber o que a marcou mais nessas experiências e aplicou-se ao disco?
A minha passagem pela Suécia e Islândia no verão de 2019 foi muito importante, porque eu estava fazendo as demos do meu disco de estreia e tive dois comentários decisivos de duas pessoas. Disseram-me: “Keep the strangeness! (“Mantenha a estranheza!”) e o outro foi “Exaggerate the song! (“Exagera a canção!”). Essas ideias tiveram o mérito de me estimular ainda mais e isso aconteceu nos shows lá. As minhas apresentações serviram como testes e aproveitei para falar com as pessoas que assistiram. Tudo decorreu de forma a obter algum ‘feedback’, sem me limitar a estar sozinha no estúdio com o produtor.
Agrada-me a música “Fresh Pain” pelo contraste entre a animação sonora e uma aparente contenção lírica. Em que se inspirou para escrever esta canção?
Essa música está relacionada com o que eu estava sentindo sobre uma pessoa (risos). A letra é muito simples, mas mostra a frustração de sentir algo por alguém e o sentimento não ser correspondido. Mas, também reflete o fato de eu ter dificuldade em expressar-me e querer gritar. Escrevi a canção minimalmente, porque tudo o que eu sentia era escasso.
Grande parte dos vídeos da Callaz parecem sugerir uma dimensão onírica. Isso resulta de um conceito seu ou do pensamento de quem dirige o clipe?
Os dois aspectos. Mas sinto que há uma dimensão onírica na música, o chamado ‘dream pop’, por isso faz algum sentido que se traduza nos vídeos. Em alguns clipes pode prevalecer a ideia de quem os dirigiu, mas é sempre um trabalho feito por duas pessoas. Eu não sabia que causava essa impressão, mas tem lógica. No clipe de “What Would Rimbaud Do?” houve mais gente envolvida, enquanto nos outros fui só eu e uma pessoa dirigindo, portanto a minha visão é mais clara nesses trabalhos. Eu prefiro fazer as coisas dessa forma.
Se tivesse de deixar uma mensagem aos leitores do Scream & Yell qual seria?
A Tropicália foi muito importante para mim. Estou falando d’Os Mutantes, Rita Lee e Caetano Veloso. Eu escutei bastante a música deles quando estava crescendo. Tenho amigos em São Paulo que trabalham em cinema, uma área que também me interessa, e o Brasil agrada-me imenso. Estive algum tempo em Fortaleza, mas gostaria mesmo era de passar uma temporada no Brasil.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui.