entrevista por Manoel Magalhães
entrevista publicada em 22 de outubro de 2006 na versão 1.0 do Scream & Yell
Em 1989, final da década em que o rock brasileiro se consolidou no mainstream da indústria do disco, a banda paulista Fellini gravava “Amor Louco”, que marcaria consideravelmente não só a carreira da banda, mas também a intenção do rock urbano encontrar definitivamente ritmos nacionais como o samba, influenciando na década seguinte o trabalho de grupos como Mundo Livre S/A e a Nação Zumbi de Chico Science.
“Amor Louco” é rock, é samba, é cidade, é São Paulo, é poesia, é tudo junto. Os instrumentais doces e herméticos encontram a poesia de Cadão Volpato em sua dose mais completa. Nas palavras de Thomas Pappon, guitarrista e compositor da banda, as letras desse disco são “Volpato do melhor, destilado em tonéis de choco milk, amor louco e paixão pelo surrealismo”. Tudo isso entre o samba de Adoniran Barbosa e os edifícios concretos da cidade de São Paulo.
Dezessete anos depois, Thomas Pappon conta ao S&Y como foi o processo de criação desse disco, que é considerado por muitos, um dos melhores álbuns da década de 80.
O disco “Amor Louco” é claramente o mais bem resolvido da banda na questão técnica de produção. Vocês fizeram algum tipo de pré-produção? Como foi o processo de amadurecimento do disco na cabeça de vocês antes de entrar no estúdio para a gravação?
Na verdade a pré-produção foi a mesma da dos discos anteriores, ou seja, havia um repertório pronto para ser gravado. A grande diferença é que sabíamos que estávamos entrando em um estúdio de 16 canais. E estávamos dispostos a ir mais fundo na exploração de sambas eletrônicos.
Quem produziu o disco com a banda foi um cara chamado Jacky [R.H. Jackson] não é? O que você considera fundamental dele para o resultado final do disco? Já escutei uma história de que ele – no decorrer das gravações – teve que se ausentar e isso acabou atrasando a produção. Como isso aconteceu realmente?
O Jacky teve uma contribuição de peso no disco. No início do projeto ele era apenas o dono do estúdio e o cara que estava gravando as músicas. Mas o papel dele foi crescendo, ele sabia muito bem como gravar o nosso som, como casar os violões com o beat eletrônico – para mim, a chave do disco – e chegamos ao ponto de realmente dependermos dele para concluir o trabalho. Ele viajou por dois meses (acho que foi para a Índia), quando faltava pouco para concluir a gravação. Tentamos sem o Jacky, mas não deu. E resolvemos esperar ele voltar. Como só podíamos gravar de noite e nos fins-de-semana, a gravação toda acabou durando uns cinco meses.
Muita gente atualmente usa o clichê do samba pra falar desse disco, tentando talvez fazer uma generalização dele. Você não acha que talvez a grande sacada do “Amor Louco” tenha sido justamente subverter esse clichê? Fica para mim muito essa sensação, que tanto nas letras do Cadão quanto na parte instrumental, a banda mastiga o samba e o transforma numa coisa muito nova e moderna. Você concorda com isso?
Os (pseudo)sambas dos álbuns anteriores ficaram bem legais e esse pareceu ser um bom caminho para continuar a ser explorado, o do samba. Volto a insistir que a combinação dos dois violões, baixo e beat eletrônico soava muito bem (outro dia revi um vídeo de um show nosso ao vivo em 89, e constatei isso). Mas, dito isso, é claro que o Fellini se achava uma banda de rock, e nossa preocupação era muito mais a de curtir, no espírito do “pô, isso é legal, vamos nessa” do que a de ‘subverter o samba’. Quando o disco ficou pronto, o René Ferri (da Wop Bop) comentou que ele tinha a cara de São Paulo, e que “parecia Adoniram Barbosa”. Achei aquilo o máximo, e, pela primeira vez no Fellini, me senti orgulhoso de fazer parte de um disco que realmente tinha a ver com a tal cara de São Paulo. Não a São Paulo do rock underground ou punk ou contestador, mas a São Paulo da boemia, das rodas de boteco e da tradição de trazer um acento europeu ao samba ou MPB e fazer algo urbano e inspirado. As letras tiveram papel fundamental nisso. Não sei se todos perceberam ou sabem disso, mas o Cadão é um cara ultraromântico e todas as letras são inspiradas em musas. O Cadão certamente estava inspirado quando fez as letras de “Amor Louco”. Por uma mulher e pela cidade de São Paulo.
O disco tem uma combinação belíssima da tradicional estética do grupo (letras poéticas e instrumental ousado) com um apuro técnico mais característico da música pop mainstream. Você acha que isso pode ser ponto fundamental para que o disco envelheça melhor que os outros?
Hmmmm, talvez… É o disco mais bem acabado do Fellini, mas, francamente, acho que nenhum dos cinco álbuns perdeu a dignidade. Nem o primeiro, com aquela bateria cheia de “reverse reverb” e as citações a bandas new wave. Ouço os cinco, na boa.
Quando você lembra do “Amor Louco” consegue pensar nas influências que vocês tinham naquela época? Quem pode ter influenciado diretamente no disco? O nome foi inspirado no livro do surrealista André Breton. Quais as outras influências que você lembra ou consegue reconhecer?
Bom, já mencionei as musas do Cadão… putz, deixa eu ver… Eu tava ouvindo My Bloody Valentine, Souled American, AR Kane… nada que tivesse tido uma influencia discernível nas músicas. Creio que um ponto importante foi que a maioria das músicas começaram a ser compostas no violão em Salvador, quando estive de férias por ali, em julho/agosto de 88. Minhas musas, então, foram Salvador na chuva e, mais tarde, minha mulher, a Karla, com quem casei no meio das gravações e sou casado até hoje.
Agora olhando do viés oposto. Qual você acha que é o legado desse disco para as gerações pós-Fellini? Já é possível analisar isso? Muita gente diz que o movimento Mangue beat de Recife teria sido bastante influenciado por esse disco em especial. Você concorda?
Sei lá. O disco passou em brancas nuvens. Foi o mais ignorado do grupo, pela grande imprensa (sem contar o “Amanha é Tarde“).
Qual é a sua música preferida no disco e qual a razão?
Nossa, essa é difícil… Adoro os sambas, “Cidade Irmã”, “Você é Música”, “Samba das Luzes” e “Kandinsky Song”, e, dessas, gosto em particular de “Você é Música”, porque ela não parece com nada e é tão simples… E a letra é Volpato do melhor, destilado em tonéis de choco milk, amor louco e paixão pelo surrealismo.
“É o Destino” e “Aeroporto” são canções que não estão no vinil de “Amor Louco” mas entraram no K-7 e no Cd. Você acha que elas acrescentaram alguma coisa? Eu particularmente acho “Aeroporto” um final muito bonito para o disco, mas sei que existe uma história estranha sobre a entrada delas na versão CD. Vocês não foram consultados? Como foi exatamente que isso aconteceu?
As duas faixas eram bônus do cassete de “Amor Louco” e entraram naturalmente no CD – fomos consultados, sim. O chato é que “Aeroporto” tinha entrado como bônus ‘escondido’ no CD Três Lugares Diferentes”, da Baratos Afins, o que foi um absurdo, uma tremenda cagada do Calanca. “É o Destino” era uma demo, o mix é ruim, uma pena – pois a música é fantástica. “Aeroporto” é de 85, uma gravação meio fuleira, mas bonita.
A versão em CD do “Amor Louco” teve a remasterização de um cara chamado Benoni Hubmaier. Já li em alguns lugares você falando bem dessa nova masterização. Você acha que acrescentou força a beleza do disco?
Esse cara é um gênio. Adorei o som do CD. Acrescentou peso e cor a um disco que já estava bem resolvido. Ah, como queria que esse Hubmaier tivesse remasterizado todos os outros…
Pensando depois de tanto tempo sobre esse disco, como você definiria o “Amor Louco”?
O melhor disco feito no Brasil nos anos 80.
– Manoel Magalhães (@manoelmagalhaez) é músico e jornalista. Vive no Rio de Janeiro.
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