entrevista por Bruno Lisboa
A inquietude é uma das maiores virtudes que se pode esperar de um artista. No universo da música, quem é movido por ela acaba por promover revoluções sonoras que objetivam combater a malfadada zona de conforto. E Maria do Céu Whitaker Poças, ainda bem, trilha por este caminho.
Com carreira iniciada em 2005, via “Céu”, a cantora lançou de lá para cá cinco álbuns de estúdio que tem como elemento comum as matrizes da música popular brasileira, mas a partir desta associação, Céu buscou promover o diálogo com ritmos universais como o afrobeat, o hip hop, o jazz e o R&B, visando, claramente, levar a sua música para os quatro cantos do mundo. E deu certo, pois ela conquistou prestigio não só no mercado nacional como também internacionalmente.
Produzido por Pupillo e Hervé, parceiros de estúdio desde o disco anterior (“Tropix”, eleito disco do ano por aqui em 2016 como também foram “Caravana Sereia Bloom” em 2012 e “Vagarosa” em 2008), em “Apká!”, seu mais recente disco, a cantora segue se reinventando ao se aproximar ainda mais de elementos eletrônicos, o que acaba por imprimir ares futuristas ao seu fazer musical. Não obstante, “Apká!” também funciona como um claro manifesto ante um país dominado pelo discurso de ódio e pela corrupção estrutural (enraizada na nossa história).
Na conversa abaixo, Céu fala sobre o processo de composição do disco, o amor como ato revolucionário, a recém-iniciada nova turnê, a maternidade, o mercado estrangeiro e a universalização da sua música, Caetano Veloso (que compôs a faixa “Pardo” para “Apká!”), a importância de se manter inquieta quanto ao mundo, a maior presença das mulheres na cena musical brasileira, planos futuros e muito mais.
Pupillo e Hervé foram os responsáveis pela produção de seu novo disco, novamente, provando que a máxima esportiva “time que está ganhando não se mexe” é verdadeira. Como foi o processo de composição e gravação de “Apká!”?
O processo de composição se iniciou a partir do momento que eu pude me dedicar ao final da minha gestação e após ter vivenciado um parto muito poderoso. Eu comecei a me sentir muito inspirada, especialmente também por não ter que ficar viajando e me movimentando, por eu ter esse momento de quietude na minha casa, me dedicando a minha família. Isso me trouxe muita inspiração e assim eu comecei a escrever.
O disco, de modo geral, é uma ode a contemporaneidade e ao universo das relações humanas, tendo o amor como pilar. Em tempos aonde o discurso de ódio vem numa temerária crescente, amar torna-se um ato de resistência?
Eu penso que sim. Para mim o amor é o pilar mais forte e seguro que o ser humano é capaz de produzir, e talvez a resposta mais afrontosa ao ódio, então foi onde eu pude me segurar para fazer esse disco-manifesto, disco-grito.
Assisti a apresentação desta nova turnê em BH (o Scream & Yell também já havia visto em São Paulo). Foi uma noite especial não só pela receptividade do público, mas por poder ver e ouvir o repertório do novo disco em ação. Mas por outro lado senti falta no setlist de mais canções dos três primeiros discos. Por que você optou por este formato?
Essa é uma questão que sempre vai existir. Tem gente que gosta de ouvir mais inteiramente o trabalho novo, e tem gente que gosta de ouvir coisas mais antigas. Acho que é uma culpa minha mesmo de querer colocar mais coisas novas e a animação com o trabalho novo, mas a gente tendo tempo, a gente faz um show mais longo e com músicas de todos os discos.
Li numa entrevista recente que você relatou um pouco da experiência de ser mãe novamente, dizendo o quão positiva e natural ela foi. E isto me fez lembrar do documentário “O Renascimento do Parto“, que aborda o fato de que o número de cesárias é absurdamente maior do que os partos normais. Como você vê esta situação e de que maneira a maternidade contribui no seu fazer musical?
Eu acho extremamente importante a gente poder falar sobre isso. É uma coisa que tem muito tabu no Brasil, a questão do parto. O Brasil é um dos países mais cesaristas do mundo, e vivenciar o que eu vivenciei foi muito forte, porque parecia realmente toda uma máquina, um rolo compressor querendo passar por cima de uma força natural que nos é dada. Claro que existe uma série de coisas que precisam estar acontecendo para a gente vivenciar um parto normal, um parto natural, mas também não é para a gente ter um rolo compressor querendo ir contra as forças naturais, as forças da natureza que a mulher carrega dentro de si. Então sim, esse documentário, “O Renascimento do Parto”, eu vi, não só uma vez, vi várias vezes, e li muitos livros, e acho muito importante a mulher saber que o parto no Brasil virou uma grande indústria a partir dos anos 80, e que colocaram a mulher deitada numa maca, como se ela estivesse doente, para parir, posição essa que é a pior para poder expelir uma pessoa para o mundo. Não precisa ser nenhum gênio para saber que deitado você tem muito menos a força natural da posição, enquanto se você está sentada. Enfim, tem uma série de coisas a serem faladas que eu achei muito interessante poder ser uma das primeiras pessoas no meio de música podendo falar ativamente sobre a força e a potência que uma mulher pode ficar quando ela toma conta dessa força que ela tem. Mais uma vez eu reitero: as cesarianas são muito importantes, necessárias, eu mesma vivenciei uma, e agradeço muito. Minha filha estava sentada no meu primeiro parto, mas eu acho extremamente importante a gente ter mais noção de onde a gente está indo quando a gente vai ter um nenê, e se for o caso, se a mulher preferir ter, ok, também não tem problema, mas acho interessante a gente tomar conta, e não ser tomada por esse rolo compressor.
É comum nos seus discos a presença de canções em inglês e recentemente você lançou em EP com algumas faixas do “Tropix” em espanhol. A escolha por estas línguas se dá por um busca de maior diálogo com o mercado estrangeiro e/ou uma busca de universalizar (ainda mais) o seu trabalho?
Desde que lancei meu primeiro disco eu viajo mundo afora e acho muito interessante poder cantar em outras línguas, não só pela comunicação mas também pela sonoridade. Acho que é mais uma maneira de estudar e de se fazer ser entendida, de outro som. Eu gosto desses estudos, eu gosto de cantar em espanhol, eu gosto de cantar em inglês, e gosto de respeitar o público que vai ao meu show, então o que eu puder me tornar mais acessível eu vou fazer sim.
Em “Forçar o Verão” você novamente traz à tona o seu lado político ao falar sobre o Brasil de hoje e o momento caótico que estamos inseridos, onde se cria a falsa impressão de estar tudo bem mesmo ante a tantos retrocessos. Como você enxerga esse momento e qual a abordagem devemos adotar para sairmos dessa situação?
É uma canção que aponta a corrupção no Brasil como um pilar da nossa cultura. A corrupção é praticamente algo estrutural da nossa cultura, está inserida como se fosse parte do nosso DNA, e a gente se acostumou com isso, então eu quis tratar dessa questão com o olhar realmente crítico de a gente rever, não só apontando o dedo para os políticos, mas também para os nossos próprios comportamentos.
Caetano Veloso (“Pardo”) e Dinho Almeida, do Boogarins (“Make Sure Your Head is Above”) comporam faixas para o novo disco. Como se deu a aproximação de ambos?
Eu tive esse ímpeto de pedir ao Caetano uma canção inédita. Eu sou muito fã do Caetano, conheço bastante a obra dele e o acho, talvez, um dos compositores mais importantes da nossa música, do nosso cancioneiro, então tive essa coragem e ele muito gentilmente me concedeu uma música nova, em que eu empresto a minha voz para cantar uma relação homoafetiva masculina. O Caetano tem essa inteligência de saber as coisas que precisam ser faladas e acho que é um momento interessante de a gente se colocar no lugar de outros e vivenciar outras coisas, uma voz feminina cantando uma relação masculina, também tem a questão racial, essa questão tão latente que tem sido falada, que a canção se chama “Pardo”, enfim. Acho que o Caetano tem esse brilhantismo mesmo de botar poesia em assuntos emergentes. O Dinho é um cara que eu acho muito talentoso, é um amigo, e desde que a gente fez shows juntos a gente se aproximou e também tivemos essa parceria no “Tropix” que funcionou muito bem, e ele topou fazer uma canção em inglês, foi um desafio para ele também. Eu acho muito legal quando eu me identifico na canção de outros compositores, compositoras, então é um exercício muito bom de ser feito. Eles me mandaram as canções, eu me apaixonei e quis gravar, foi assim.
Seu Jorge, Marc Ribot e o Tropkillaz são alguns dos convidados que participam de “Apká!”. Quais as contribuições eles trouxeram para o resultado final?
Cada convidado agrega muito ao som, são coisas que vão sendo feitas de maneira orgânica para mim, eu vou montando o som e vou sentindo os amigos e amigas por perto que me fazem sentido para aquele som. Claro que tem gente que não dá, que naquele momento não funciona, não pode, e tem gente que felizmente dá certo – no caso, esses três maravilhosos: Seu Jorge, Ribot e Tropkillaz. Seu Jorge é muito amigo do Pupillo e docemente me concedeu o apoio dessa voz fantástica, dessa estrela incrível que ele tem. Marc Ribot estava tocando pelo Brasil e eu sou muito fã da obra toda dele, e Tropkillaz são comparsas, a gente está fazendo alguns projetos juntos, e eu curto, quem me conhece sabe que eu adoro dançar, que eu curto batida, beat, e achei muito legal poder ter eles produzindo uma faixa, então muita contribuição que eles trouxeram.
É perceptível na sua discografia que você gosta de apostar em novas texturas para cada disco lançado. Enquanto muito artistas optam por se manter numa certa zona de conforto, para você, aparentemente, a “mesmice” incomoda. Procede?
Para mim existe uma importância enorme de a gente tirar o nosso tapete porque isso nos proporciona novas descobertas, e eu enquanto ser humano estou tentando descobrir muita coisa, tô tentando melhorar, me aprimorar. Claro que eu mantenho a minha linha, mas existe sim um desejo de busca e de novidade, acho que isso é da minha natureza inquieta. Eu sou muito inquieta com o mundo, tédio é uma coisa que eu não sofro, eu tenho muita coisa dentro de mim que me faz movimentar, raiva da injustiça, desejo de mudança, desejo de compreensão do mundo emocional, que é tão profundo, então acho que é o meu compromisso como artista me reinventar.
Você acabou por se consolidar como cantora e compositora num país onde o machismo se faz presente em várias esferas. Você considera que o seu sucesso abriu um precedente para que houvesse uma maior presença feminina no cenário musical como vemos hoje?
Eu considero que eu ajudei bastante na questão de meninas comporem, escreverem, terem coragem de quebrar esse tabu, acho que eu faço parte dessa primeira turma e me deixa muito feliz. Me deixa muito feliz na verdade, mais do que tudo, olhar em volta e ver um monte de mulher compondo, isso me deixa muito feliz mesmo.
“Apká!” foi lançado de surpresa, sem aviso prévio em lugar algum. Por que você escolheu faze-lo assim? Aliás, o disco ganhará alguma versão física?
O disco vai ganhar versão física muito em breve, sim, e a gente escolheu fazer dessa maneira para priorizar o fã mesmo, para o fã acordar e ter um disco novo na mão sem todas aquelas esperas que normalmente acontecem, priorizando jornalistas e tal (nota do editor: “Caravana Sereia Bloom”, por exemplo, havia vazado antes do lançamento). Achei que seria interessante o público mesmo receber esse presente antes de todo mundo e foi uma forma um pouco inovadora – não é nem inovadora, na verdade isso já foi feito muitas vezes –, mas, para mim, dentro da minha carreira, foi novidade e eu gostei muito do resultado, achei muito legal. (Nota: o disco foi lançado em vinil numa edição limitado pela Noize)
Quais são os planos futuros?
Trabalhar, em todos os aspectos. Tocar, fazer som, trabalhar para ser uma mãe legal, criar uns filhos legais, uns seres humanos melhores. Tem muito trabalho.
– Bruno Lisboa é redator/colunista do O Poder do Resumão. Escreve no Scream & Yell desde 2014.