Texto por Bruno Capelas
Fotos por Fernando Yokota
Para se entender um fenômeno ou característica da natureza, tão importante quanto analisá-lo é compreender seu oposto. Talvez seja por isso – e por ter uma carreira de três décadas dedicadas aos sons – que o uruguaio Jorge Drexler tenha se detido a analisar o silêncio. Na última semana, em São Paulo, ele executou por duas noites o experimento de gerar impacto para 1,4 mil pessoas não só com música, mas também com aquilo que a nega. Não à toa, Silente é o nome da turnê com que viaja pelo Brasil, com passagens também por Curitiba, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Pelotas – nesta última, viveu uma experiência 100% local ao até tomar um achaque da polícia em um bar, após fazer seu show.
Na noite da quinta-feira, 6, o uruguaio chegou a campo com a vantagem do empate. Também, pudera: mesmo tendo visitado São Paulo no ano passado, Drexler viu os ingressos esgotarem semanas antes do show – até por conta disso, a cidade ganhou uma segunda data na turnê. A noite gélida da capital paulista não afastou os presentes no Teatro Bradesco, na Pompeia. Sem se importar com o resultado, o cantor passou longe de fazer um show na retranca. Pelo contrário. Com ares de torcida organizada, a plateia (com visual “tilelê encapotado”) lhe deixou muito à vontade para executar aquilo que mais se espera de um grande artista: surpreender.
É algo que já fica claro logo no início, quando ele leva “Transporte” apenas com um chocalho e é seguido pela plateia em amplo coro. Ou, logo adiante, quando despe o arranjo sensual de “Deseo” e coloca a canção em tons minimalistas. Outro exemplo, mais ao final do show, acontece ao negar o aspecto mais pop daquele que é, provavelmente, seu maior hit no Brasil, graças a Paulinho Moska: “La Edad del Cielo” (regravada também por Vivian Benford no álbum “Somos Todos Latinos“, lançado pelo Selo Scream & Yell).
Em vez da roupagem folk com barulhinhos (à la “The Bends”?) da gravação original, a música é executada por Drexler apenas com guitarra e um curioso vocoder. A princípio, tudo soa anacrônico, mas depois se converte em belo espetáculo – especialmente porque, no palco, há apenas uma lâmpada, que se acende só com a voz do uruguaio. Luzes, inclusive, são parte importante da experiência sensorial que Drexler propõe aos presentes.
Durante todo o show, ele permanece no palco sob apenas um holofote ou à meia luz, com ajuda de rebatedores movimentados por sua equipe de “roadies invisíveis” (um trio que veste roupa toda preta, em um fundo todo escuro, e só se revela no final do show). É um efeito cênico interessante, mas que em alguns momentos prejudicou a visibilidade do público, especialmente para quem estava nas cadeiras mais distantes do teatro na Pompeia. Em espaços menores, é algo que deve funcionar com precisão.
Ao longo do show, Drexler se movimenta bastante entre “ambientes” – no início, toca de pé, privilegiando as canções do disco “Eco”. Das sete primeiras músicas do espetáculo, cinco vêm do álbum lançado em 2004, um de seus trabalhos mais acessíveis, justamente por equilibrar o pop, o experimentalismo e o lado mais tradicional/milongueiro. Em um segundo momento, entra no que chama de “sala de estar” – um espaço menos iluminado, com dois banquinhos. Um é para ele próprio e outro para um pêndulo de Newton – aquele instrumento com várias bolinhas suspensas por um fio, tão popular nas aulas de física.
É justamente aí que Drexler se revela um fã do método científico: primeiro, por puro empirismo, ao usar o pêndulo de Newton como percussão e marcação de tempo em “Abracadabras”. Tal como um professor de cursinho hipster, ele revisa com graça o conceito de conservação de frequência do movimento, tecendo loas a Galileu Galilei e afirmando que a terra é redonda – no que é aplaudidíssimo, claro. (Um dia, espera-se, a gente vai rir disso tudo).
Depois, o uruguaio troca de ciência exata e executa “Todo se Transforma”, lembrando Lavoisier e sendo seguido por um belo coral, formado majoritariamente por vozes femininas. Ali na sala de estar, como se estivesse em um apartamento de Copacabana, há espaço ainda para uma versão milongueira de uma música que mudou os rumos da canção brasileira: “Chega de Saudade”. A releitura soa mais como bonita homenagem àquele que é, como diria Caetano Veloso, melhor que o silêncio – João Gilberto, claro. Caetano, aliás, aparece em outro momento do show, em algo que poderia ser caricato não fosse Drexler um homem de intenções muito honestas.
Em bom português, ele canta “Sampa”, em uma interpretação que ressalta as grandes frases do baiano de Santo Amaro da Purificação – seja “a grana que constrói e destrói coisas belas” ou “o Narciso que acha feio tudo que não é espelho”. Mais que isso: ainda tira onda e troca “novos baianos” por “montevideanos”, uma vez que, sim, São Paulo é para todos. (Fica ainda a nota: foi um raro desvio no repertório fixo da turnê, segundo consulta desta reportagem ao Setlist.fm). Outra citação à música brasileira aparece em “Disneylândia”, uma letra de Arnaldo Antunes que segue muito mais expressiva na boca do uruguaio do que em meio à distorção da gravação original (ah, Titãs dos anos 90…).
Além das aulas de ciências, Drexler tem ainda dois grandes momentos de contador de histórias no palco. No primeiro, conta como fez sua primeira canção, “La Aparecida”, sob a supervisão de seu professor – um homem severo e ébrio, que tinha na parede de sua sala um retrato de Vladimir Ilyich Ulyanov. “É uma canção que vai fazer bastante sucesso na Argentina”, teria dito o mestre ao ouvir a música. Não era um elogio, mas para Drexler foi – afinal, a obra poderia facilmente estar em um disco de Luis Alberto Spinetta, citado pelo uruguaio em São Paulo. (“Se você o conhece, provavelmente é argentino”, brincou ele. Não deveria ser assim).
Depois, fez um longo discurso sobre educação, antes de apresentar “A La Sombra del Ceibal”, música que fez para um plano educacional no Uruguai, que distribuiu um computador a cada criança matriculada na escola pública do país – mais sobre isso no documentário “Na Sombra do Ceibo”. Ao reafirmar a importância do ensino, Drexler é aplaudidíssimo. A plateia irrompe em gritos atuais da esquerda – “Lula Livre”, “Fora Bolsonaro”, “Ele não!”. Ao que o uruguaio, elegantíssimo, responde: “hoje não vamos falar dele, não vamos gritar fora ninguém”. O recado já havia sido dado.
Foi uma grande noite – mas ainda faltava algo para a consagração. Primeiro, no bis “ensaiado”, Drexler deixa a plateia de boca aberta ao demonstrar com categoria o que queria dizer com a busca pelo silêncio. Na canção de mesmo nome, toda vez que ele parou de tocar e cantar, o impacto foi enorme. Até que não houve mais nada e ele disse boa noite – mas o público não aceitou e o trouxe de volta, em um raro bis “de verdade”.
Ovacionado, Drexler tocou “Telefonia”, agradeceu a todas as formas de comunicação (até às silenciosas) e ajoelhou, sem acreditar na recepção que teve em São Paulo. Era merecido – e científico. Afinal, se do som, pode sair o silêncio, em uma noite fria, o melhor a se fazer é buscar (e encontrar) o calor. Quem saiu do Teatro Bradesco naquela quinta-feira pode até ter ficado com as mãos frias, mas o coração estava quente.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista do caderno Link, de O Estado de São Paulo. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Fernando Yokota é fotógrafo de shows e de rua. Conheça seu trabalho: http://fernandoyokota.com.br/