por Leonardo Tissot
Um jardineiro que quer deixar sua marca no mundo ao “inovar” no campo das artes. Uma estudante que é confundida com uma estrela pornô da internet. Um traficante em um relacionamento abusivo com uma mulher mais jovem. Uma mãe e um filho em um voo do Japão para os Estados Unidos. A relação entre uma jovem que deseja se tornar uma comediante, a mãe incentivadora e o pai que não quer passar vergonha com o novo interesse da filha. Um homem que busca resgatar seu passado invadindo o apartamento onde viveu anos antes.
Esta é uma das formas de enxergar os protagonistas das histórias contadas em “Intrusos” (“Killing and Dying” no original), coleção de narrativas em quadrinhos escrita e desenhada pelo nipo-americano Adrian Tomine. A obra, que é uma das mais recentes lançadas pelo premiado quadrinista, é a primeira de sua autoria a chegar ao mercado brasileiro, via Editora Nemo, com 128 páginas e tradução de Érico de Assis.
Outra forma de ler “Intrusos” seria percebendo as personagens femininas como as principais de cada um dos seis contos do livro, mesmo aqueles em que os homens lideram as narrativas. Afinal, são eles os elementos causadores de conflitos e promotores das neuroses, inseguranças e violências mostradas quadro a quadro — nos variados estilos de ilustração, colorização e narrativa apresentados por Tomine —, e elas, as “heroínas” que os suportam ou dizem o que eles precisam ouvir.
Embora o livro em momento algum soe declaradamente como um manifesto feminista, as relações entre homens e mulheres mostradas a cada conto deixam evidente que as personagens masculinas são o verdadeiro “sexo frágil” na visão do autor — apesar de o termo não ser usado em nenhum momento.
No primeiro conto, “Breve histórico da arte conhecida como ‘Hortescultura’”, por exemplo, o jardineiro Harold decide investir em um novo tipo de escultura, dentro da qual uma planta cresce — “a síntese entre natureza e arte” ou “uma expressão artística inovadora e vital”, como ele gosta de vender sua ideia a amigos e empresários com os quais conversa ao longo da história.
Sua esposa, no entanto, surge como a força que o motiva a seguir tentando tornar a ideia um sucesso, apesar das constantes negativas que recebe. Entre a insistência em conseguir o que parece impossível e a percepção do ridículo das situações em que se mete, Harold promove momentos hilários e, ao mesmo tempo, deprimentes, enquanto a mulher segura as pontas em casa, seja pagando as contas ou cuidando da filha do casal.
O mesmo vale para a personagem masculina do conto “Triunfo e Tragédia”, o pai de Jesse — uma garota de 14 anos que se interessa por comédia. Incentivada pela mãe, a garota decide fazer um curso para aprender as técnicas do humor. O pai, no entanto, é cético tanto em relação aos talentos da filha quanto à idoneidade do curso.
Quando a jovem vai sozinha a uma apresentação, o pai fica apavorado — sai às escondidas, para bisbilhotar o set de Jesse. Seu medo em vê-la passar vergonha (que seria um vexame também para ele, de acordo com seu modus pensandi) supera qualquer traço de amor e empatia que possa ter pela filha.
O livro ainda passeia pelo delicado e agridoce conto “Tradução do Japonês”, que narra o retorno de uma mulher e seu filho aos Estados Unidos, onde ela vai tentar a reconciliação com o marido (uma história que, aparentemente, remete à própria infância do autor), e pelo humor de “Vamos, Owls”. Na história, um patético traficante de meia-idade que só quer “viver na moita” se divide entre o relacionamento com uma jovem torcedora do seu time favorito de baseball e as tentativas frustradas de conquistar a confiança de adolescentes incautos, que poderiam ajudá-lo a vender drogas dentro das escolas.
“Intrusos” traz, ainda, a bizarra coincidência vivida por uma jovem universitária no conto “Amber Sweet” — confundida com uma webcaster sexual idêntica a ela, uma estudante passa por maus bocados, frutos do machismo e misoginia de colegas de faculdade — e, finalmente, a história que dá título ao livro, na qual um homem passa a frequentar o apartamento onde morou anteriormente enquanto o locatário atual está no trabalho, até se deparar com um invasor.
A tradução do título, aliás, segue o padrão utilizado em países como Espanha, França e Alemanha, em função da dificuldade de transpor para o português o sentido de “Killing and Dying”, a partir de todas as interpretações e duplos sentidos que a expressão permite em inglês, conforme explica o próprio tradutor Érico Assis. “Killing and Dying” é, também, o título do conto que traz a história da aspirante a comediante Jesse. A troca foi, naturalmente, autorizada pela editora americana Drawn and Quarterly.
Apesar de lançado originalmente em 2015, “Intrusos” arrebatou a crítica especializada e já é considerado quase como um clássico dos quadrinhos e da literatura americana do século XXI. Figurinha fácil como ilustrador das capas da New Yorker há 20 anos, Tomine — que lança quadrinhos autorais desde 1991 — vem se firmando também como uma das vozes mais representativas da literatura ao longo dos anos.
Para quem não é familiarizado com a obra do autor — que há quase três décadas publica a série em quadrinhos Optic Nerve —, é seguro dizer que a coleção de contos tem tudo para agradar aos fãs de quadrinistas como Daniel Clowes e Dash Shaw e de cineastas como Wes Anderson e Sofia Coppola, e também aos apreciadores de rock alternativo (Tomine desenhou a capa do disco “Murder in the Second Degree”, do Yo La Tengo, e pôsteres de shows do Weezer).
A edição brasileira de “Intrusos” chegou às lojas especializadas em março. A editora Nemo disponibiliza uma amostra do livro em seu site oficial.
– Leonardo Tissot (www.leonardotissot.com) é jornalista especializado em comunicação corporativa e produção de conteúdo.