texto por Marcelo Costa
fotos por Fabricio Vianna
Via de regra, em 90% dos casos da música pop, um show é, mais do que qualquer outra coisa, uma celebração de nostalgia, aquele momento em que artistas com uma carreira significativa retornam aos seus momentos de maior brilhantismo e sucesso, que eles mesmos nunca mais conseguiram repetir – ainda que muitos deles insistam na tentativa – como se vivessem presos ao lado do personagem de Bill Murray em “O Feitiço do Tempo”, num dia da marmota infinito. Não a toa, nos últimos dias, São Paulo recebeu uma enxurrada de exemplos seja Peter Murphy festejando 40 anos de Bauhaus, Peter Hook coletando moedas com os discos mais sem graça do New Order (“Technique”, de 1989, e “Republic”, de 1993), Roger Waters passeando nos anos 70 sobre um muro no lado escuro da lua e, por que não, o Franz Ferdinand divulgando um mediano quinto álbum enquanto fãs queriam mesmo pular ao som dos hits dos dois primeiros.
Nada contra a nostalgia mover a cultura pop (é apenas diversão, e nós gostamos), mas, felizmente, existem exceções, artistas de carreira longínqua que, apesar de décadas e décadas na estrada, vivem seu auge no agora. PJ Harvey é um deles, uma musicista com uma carreira celebrada em discos dos anos 90 e da virada do século, mas que preenche seu set ao vivo com, majoritariamente, canções novas, frescas, mostrando não só que confia no seu repertório atual, mas principalmente que ele tem potencial de se igualar ao material clássico – e em alguns momentos supera-lo. Nick Cave também integra esse grupo seleto. Seu nome está na mídia desde os anos 80, quando ele trafegou de Melbourne a Londres, de Berlim a São Paulo, carregando um espectro fantasmagórico que conseguiu um espaço no imaginário coletivo da música pop, mas que vive seus melhores momentos nesta década, neste ano, nesta semana.
E foi exatamente isso que o público brasileiro pode conferir ao vivo no Espaço das Américas, em São Paulo, num domingo nublado e entorpecido por guitarradas, preces, sermões e gritos de #EleNão: Nick Cave vivendo o agora tanto quanto nós. Das 21 canções apresentadas no set em São Paulo (incluindo aí a tentativa de tocar “Foi na Cruz”, ainda que ele não lembrasse a letra e poucos no público tenham reconhecido os acordes), sete eram desta década (três de “Push the Sky Away”, o álbum de 2013, e quatro de “Skeleton Tree”, seu disco mais recente, de 2016), e as demais (um passeio caprichado por canções de 1984, 1985, 1988, 1990, 1992, 1993, 1996 e 2003) surgiram rearranjadas, cadenciadas ainda que barulhentas, e abrigadas sob o acompanhamento impecável dos Bad Seeds, que surgiram desfalcados, mas pareciam tocar juntos desde outros tempos.
À frente das Sementes Más, o multi-instrumentista genial Warren Ellis (que entrou na banda oficialmente em 1997) dava às cartas se alternando entre o violino (raramente tocado como violino), guitarra, órgão, piano, efeitos e backing vocals. No baixo, Martyn Casey mantém a pulsação da banda desde 1990. O percussionista Jim Sclavunos faz barulho e assume baquetas eventualmente desde 1994. Já o músico Larry Mullins (que traz no currículo trabalhos com Iggy Pop, Swans, The Residents e Silver Apples) entrou na banda em 2015 para substituir o doente Conway Savage (que veio a falecer recentemente) e recebeu uma tarefa de responsa (que cumpriu com impressionante eficiência) nos shows da América Latina: substituir o baterista Thomas Wydler, que não desceu para a parte debaixo do hemisfério devido a uma gripe. Completando a trupe, os “novatos” George Vjestica (violão, guitarra e teclados) e David Sherman (teclados).
Como de praxe na “Skeleton Tree” Tour, o show começa com “Jesus Alone”, a canção em que Nick fala sobre a morte de seu filho, em 2015. Logo nos primeiros segundos, ele parte para a pequena passarela que o deixa em frente aos fãs, e começa uma rotina de cantar olho no olho, mão na mão. No final da canção, ele reclama com a equipe: “(A passarela) está escorregadia pra caralho”! E roadies colocam fita antiderrapante na área que Nick desbravará apaixonadamente durante quase todos os minutos das próximas duas horas, frente a frente com os fãs (um acerto da Popload que precisa ser elogiado e copiado: o fato da área premium ficar no fundo da casa, e não na frente, merece palmas!). “Magneto”, outra canção monocórdica do último álbum, mantém o clima lúgubre, que é quebrado de maneira singela por Nick: ele recebe um buque de rosas vermelhas, segura por alguns segundos, e o joga desleixadamente no palco. O público ri da cena. Ele faz a mesma coisa com um livro (“O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, de José Saramago, segundo a amiga Marta, que aproveitou e colocou seu poema favorito dentro) que ganha de um rapaz na plateia, mas avisa depois de arremessar o volume ao palco: “Eu já li!”. Mais risos.
Alguns segundos depois, numa versão absolutamente fodaça de “Higgs Boson Blues” (com o silêncio respeitoso das quase 7 mil pessoas presentes impressionando), o próprio Nick ri ao perceber o nome de Miley Cyrus sair de sua boca e preencher o ambiente. Surge, então, o primeiro dos anti-hits antigos, “Do You Love Me?”, cujo clipe original foi gravado num puteiro da Rua Augusta, a menos de quatro quilômetros do Espaço das Américas. As cores do palco remetem à cortina vermelha do bordel no clipe e, possuído, Nick Cave grita fora do microfone, agarra a mão de fãs, salta, vai para o outro lado do palco, não fica parado sequer um segundo. Num salto de 10 anos para trás, “From Her to Eternity” destaca Jim Sclavunos tocando vibrafone, delicado em meio a um arranjo infernal que ainda traz Warren Ellis tirando uma tempestade de microfonia de seu violino.
A voz gutural de Nick está melhor do que nunca, e seu pique (aos 61 anos) impressiona e não fica devendo nada a Mick Jagger ou Alex Kapranos. Por outro lado, olhar a banda no palco detonando é um deleite, mas o telão também é um espetáculo a parte, com as projeções em preto e branco destacando dezenas de mãos soltas no ar esperando o toque do pastor Nick. Seguem-se “Loverman” e “Red Right Hand”, que traz consigo os primeiros gritos de #EleNão na plateia, em referência a “um novo nível de ódio” (segundo palavras do próprio Cave no jornal O Globo) percebido pelo cantor no país, reflexo do discurso do candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro. Os gritos de #EleNão aumentam, e boa parte do público não percebe Nick ao piano conversando com um fã no gargarejo, e explicando que não lembra mais a letra de “Foi na Cruz” (do álbum “The Good Son”), mas que ele a toca no piano se o fã a cantar. Ele dedilha as primeiras notas da canção, e a abandona, emendando “The Ship Song”.
O pique de Nick, da banda e da plateia não diminui, mas a baladaça “Into My Arms” acalma a todos. Antes de começar a toca-la, Nick a apresenta como “uma prece ao Brasil”. Precisamos. Uma feliz surpresa no set list dessa tour, o b-side “Shoot Me Down” (do álbum “Nocturama”) hipnotiza a plateia, que ainda tenta acompanhar “Girl in Amber” nas palmas, e festeja alucinadamente a inclusão de “Tupelo” no set. “Meu português está uma merda”, resmunga Nick em certo momento, que mergulha no grandioso trecho final, não sem antes protagonizar uma cena inusitada: próximo do público, tocando suas mãos, ele vocifera a letra de “Jubilee Street”. No que vai segurar a mão de um fã, este lhe entrega uma caneta e posiciona o vinil do álbum “Tender Prey” para um autógrafo, e é prontamente atendido. Das coisas que eu nunca havia visto: um artista autografar algo para um fã em meio a execução de uma canção no show (risos).
Um desconhecido que chegasse ao Espaço das Américas nesta noite poderia achar que estava presenciando um culto ecumênico, e o trecho final do show apenas reforçaria essa sensação. Começa com “The Weeping Song”, em que Nick incentiva o público a bater palmas e lá pelas tantas desce no meio da galera, atravessa a pista da casa e sobe em uma das plataformas que abrigavam os câmeras oficiais. Ali ele começa uma gincana ouvindo a voz da plateia contra o candidato fascista, e ele mesmo adere ao coro e diz #EleNão. Segundo análises do Instituto de Pesquisa Scream & Yell, 99,9% do público gritou #EleNão enquanto 00,1% defendeu o #EleSim – no Espaço das Américas, domingo, 14 de outubro, a democracia respirava com larga vantagem. Na sequencia, com um grupo de fãs levado ao palco, Nick Cave & The Bad Seeds tocam “Stagger Lee” e “Push the Sky Away”, abençoando não só eles, como todos nós.
O show acaba, a banda sai, e não dá nem tempo para gritar por sua volta, pois eles retornam rapidamente e emendam uma versão forte de “City of Refuge”. Os fãs na primeira fila pedem por “The Mercy Seat”, e Nick Cave atende prontamente, mas faz questão de incluir “Jack the Ripper” no set (tocada ao vivo pela primeira vez nesta turnê de 2018), afinal “essa é uma das canções que escrevi em São Paulo, numa casa pequena na Vila Madalena”, explica (ele morou aqui entre 1990 e 1993). Um dos shows mais fodas da década no Brasil enfim termina, de maneira divertida: Nick pede para que Warren faça o coro vocal de “Rings of Saturn”, algo como o canto de um Uirapuru bêbado, e o público o acompanha. Nick gargalha do amigo, da plateia, de si mesmo e, definitivamente, faz as pazes com São Paulo e com o Brasil, deixando para todos, como prece, a frase: “Eu acredito no amor”. Nós também, Nick, nós também.
SET LIST
“Jesus Alone” – Skeleton Tree (2016)
“Magneto” – Skeleton Tree (2016)
“Higgs Boson Blues” – Push the Sky Away (2013)
“Do You Love Me?” – Let Love In (1994)
“From Her to Eternity” – From Her to Eternity (1984)
“Loverman” – Let Love In (1994)
“Red Right Hand” – Let Love In (1994)
“Foi na Cruz” – The Good Son (1990)
“The Ship Song” – The Good Son (1990)
“Into My Arms” – The Boatman’s Call (1996)
“Shoot Me Down” – B-Sides & Rarities (2005)
“Girl in Amber” – Skeleton Tree (2016)
“Tupelo” – The Firstborn Is Dead (1985)
“Jubilee Street” – Push the Sky Away (2013)
“The Weeping Song” – The Good Son (1990)
“Stagger Lee” – Murder Ballads (1996)
“Push the Sky Away” – Push the Sky Away (2013)
BIS:
“City of Refuge” – Tender Prey (1988)
“The Mercy Seat” – Tender Prey (1988)
“Jack the Ripper” – Henry’s Dream (1992)
“Rings of Saturn” – Skeleton Tree (2016)
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
– Fabricio Vianna (fb.fabricio.vianna) é o fotógrafo oficial da Popload. O vídeo de “Into My Arms” é de Fabrizio Franco (confira outros vídeos no canal dele); os outros vídeos são de Cristiano Souza (há mais no canal dele! Assista aqui)
Baita texto para um baita show. O show do ano, fácil.
a esperança é que role o bootleg deste dia! precisamos relembrar de todas as formas
QUERO! 😀