por Daniel Tavares
“Quero dizer, eles não vão te matar, então se você der uma pancada forte e rápida, eles não vão fazer isso de novo. Entendeu? Quero dizer, ele cai de uma vez, porque eu teria lhe dado uma surra – mas só o acertei uma vez! Foi apenas uma diferença de opinião, mas realmente… quero dizer que as boas maneiras não custam nada, hein?”, respondeu Roger “The Hat” Manifold, roadie do Pink Floyd ao ser questionado sobre a última vez que batera em alguém.
Roger Waters, então vocalista e baixista do Pink Floyd, tinha distribuído aleatoriamente fichas com perguntas a diversas pessoas no estúdio durante as gravações de “The Dark Side of The Moon” (1973), um dos álbuns mais importantes do século 20. A resposta apressada e cheia de advérbios (desnecessários do ponto de vista gramatical) mostra uma pessoa explicando, com contradições, porque tinha agredido outra. Traduzindo melhor: “o sujeito tinha uma opinião diferente da minha e resolvi acabar logo com a conversa dando-lhe uma porrada forte, rápida e segura e encerrando o assunto”. E conclui: “Afinal, boas maneiras não custam nada a ninguém”. (!)
Na verdade, na mente do sujeito, uma amostra do sujeito comum, do cidadão de bem, trabalhador, não culpado, não corrupto, que usa grande parte do seu dia para levar comida para casa (onde fará pouco mais que dormir entre um e outro dia de trabalho duro), não há diálogo. Não precisa haver. Somos “nós” ou “eles”. Não, “nós e eles”. Não há “e”. Não é necessário. Para que? É um conflito de opinião e funciona assim: “você concorda comigo. Se não concordar, eu resolvo isso muito apropriadamente com uma pancada forte, rápida, segura. E aprenda a ter educação”. No próprio nome da nova turnê de Roger Waters não há “e”, embora o símbolo “+”, na teoria booleana também valha como a conjunção.
É a turnê “Us+Them” que passará por sete capitais brasileiras entre 09 e 30 de outubro (confira datas e locais). O repertório dos shows inclui músicas de álbuns clássicos do Pink Floyd como “The Dark Side Of The Moon” (1973), “Wish You Were Here” (1975), “Animals” (1977) e “The Wall” (1979) além de várias músicas da sua bem sucedia carteira solo. Essa tour será mais uma oportunidade para fãs floydmaniacos do Brasil inteiro de reencontrar um dos principais motores da banda, como também pode nos levar a algumas considerações. Afinal, o pensamento, perpetuado na cultura pop pelas palavras de Manifold, especialmente na aliteração “short, sharp shock”, está presente hoje tanto no mundo real quanto no virtual. E exemplos aparecem regularmente tanto em canções do próprio Pink Floyd quanto em outras manifestações artísticas.
Em “Smell The Roses”, canção presente no último álbum de Roger Waters, “Is This The Life We Really Want?” (e também nos setlists dos shows que o inglês fará no Brasil), Waters, em mais um jogo de palavras, diz:
“Esta é a sala onde eles fazem os explosivos
Onde eles colocam o seu nome na bomba
Aqui é onde eles enterram os “poréns” e os “ses”
e rabiscam palavras como “certo” e “errado”.
A separação entre “nós” e “eles” tornando fácil atacar o que chamamos de “eles” também está explícita em “Engenharia Reversa”, da terceira temporada da série de TV “Black Mirror”. No episódio, soldados tem implantado um chip (supostamente para melhorar a comunicação entre si e o comando) e, a partir daí, não veem problemas em atacar brutalmente grupos de refugiados por não enxergarem estes como humanos. No desenrolar dos acontecimentos, é revelado que os inimigos, vistos pelos militares como zumbis infectados e chamados de “baratas”, nada mais eram que pessoas comuns. Não vendo o inimigo como semelhante, cortando a possibilidade de empatia, fica fácil atirar e acabar com suas vidas, inclusive de famílias com crianças.
Roger Waters sempre se posicionou politicamente e em suas canções já atacou da primeira ministra britânica Margareth Thatcher ao líder soviético Leonid Brejnev durante a Guerra das Malvinas. Hoje seu principal alvo é o Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Projeções a respeito de Trump caracterizando-o como um porco tem sido frequentes nos shows. Um dos maiores pontos de discordância entre Waters e o Governo Trump é o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, com consequente mudança da embaixada estadunidense no país de Tel Aviv para a cidade dividida, o que favoreceria israelenses e prejudicaria palestinos, acirrando o clima de desavença entre ambos os povos. Com uma disputa que tem se estendido por décadas e remonta a tempos bíblicos, o ato de Trump foi visto por Waters como uma péssima decisão.
O comando da mais poderosa nação do mundo, os Estados Unidos, por Donald Trump também pode ser encarada como responsável pela bipartição em que se dividiu o mundo. Suas posições radicais chocariam o mundo inteiro há algum tempo atrás, mas hoje até são vistas como necessárias e com certa simpatia por alguns. Mesmo em tempos de Guerra Fria, seria inimaginável que pessoas comuns, tanto nos EUA como aqui mesmo no Brasil, pudessem ter certo grau de tolerância a, por exemplo, a separação de crianças imigrantes de seus pais. Mas é o que está acontecendo.
Waters ressente-se de ser, por vezes, chamado de antissemita e até de nazista. Em entrevista ao jornal The Independent, ele acrescenta que, embora muitos outros artistas concordem com suas posições, especialmente nos Estados Unidos, eles temem fazer qualquer manifestação a favor dos palestinos. “Se eles disserem algo em público, não terão mais uma carreira. Eles serão destruídos. Espero encorajar alguns deles a pararem de ter medo e se levantarem e serem contados, porque precisamos deles. Precisamos deles desesperadamente nessa conversa da mesma forma que precisávamos de músicos para participar de manifestações contra a Guerra do Vietnã”, disse. Em outra entrevista, ao podcast WTF with Marc Maron, ainda antes da confirmação da eleição de Trump, Waters comparou o então candidato a Hitler. “Ele é ‘tão perigoso’ quanto Adolf Hitler. É arrogante, mentiroso, racista, sexista. É um passo curto para o fascismo total e um estado policial completo. É sempre uma coisa traiçoeira se arrastando. Foi traiçoeiro na Alemanha nos anos 30. O ‘Trumpismo Nacional’ parece um pouco menos insidioso, mas é tão perigoso quanto”.
Entrando ainda mais na disputa, outro ataque de Waters a Trump é sua colaboração em uma canção palestina. “Depois que as relíquias se foram, para onde, oh mestre branco, estás levando o meu povo… e o seu?”, indaga Waters, nos versos de “Supremacy”, canção em que colabora com os palestinos do Trio Joubran. Na colaboração com os irmãos nazarenos tocadores de alaúde, a letra não é de Waters, mas parte do poema “The Penultimate Speech of the ‘Red Indian’ to the White Man”, do poeta palestino Mahmoud Darwish. No poema, Darwish incorpora o índio nativo da América do Norte em um suposto diálogo com o colonizador do Velho Mundo, mas nas entrelinhas da canção também é possível ler e ver a reação de Waters ao reconhecimento de Jerusalém como capital do Estado de Israel por Trump.
Em Israel, o recado dado é que esquerdistas e simpatizantes da causa palestina não são bem-vindos, o que é até um tanto óbvio. Assim foi a repercussão da negação do visto à ativista judia norte-americana Julie Shayna Weinberg-Connors. O jornal israelense Haaretz, no entanto, parece concordar com Waters, colocando Trump (e também Netanyahu, primeiro ministro israelense), em um artigo de opinião, como dois líderes que estão montando a crescente onda do neofascismo. Ambos exploram o hiper-nacionalismo e a adulação de líderes fortes que levaram o mundo à tristeza em um passado não muito distante, diz o editorial.
Na nova turnê, em “Another Brick In The Wall pt.2”, o coro de crianças, outrora bradando contra o sistema escolar inglês, agora tem outro alvo, através de seus uniformes. Com o laranja dos prisioneiros de Guantánamo, as crianças declaram não precisar de “controle de pensamento”, nem “sarcasmo negro”. Em outros lugares do mundo, em determinado momento, viu-se nos telões nomes de alguns políticos, elencados por Waters como os principais nomes do neofascismo. Já no primeiro show do Brasil, em São Paulo, Waters atualizou a lista que começa com Donald Trump (Estados Unidos) e segue com Viktor Orbán (Hungria), Marine Le Pen (França), Sebastian Kurz (Áustria), Nigel Farage (Reino Unido), Jaros?aw Kaczy?ski (Polônia), Wladimir Putin (Rússia) e, especialmente no Brasil, encerra com o nome de Jair Bolsonaro, que ainda foi “lembrado” carinhosamente no final do show com esta imagem abaixo (as duas cortesia de @ceosoares). #EleNão.
Waters, entretanto, não é o único a caracterizar Trump como um porco. A capa da New York Magazine fez o mesmo em sua capa de 1 de abril. Outro que se posiciona abertamente contra Trump é o músico Juan Brujo, da banda norte-americana/mexicana de grind core Brujeria: “Parece que as pessoas estão voltando a odiar novamente. Quando eu nasci, as pessoas odiavam você. Se você é negro você é odiado. Se você é mexicano, você odiado. Todo mundo odiava todo mundo. E isso passou. E agora o Donald Trump está tentando trazer isso de volta fazendo todo mundo odiar novamente. Não sei se no Brasil isso é baseado no dinheiro ou se é baseado nas pessoas odiarem. Nos Estados Unidos é baseado no ódio. É a pior coisa que pode acontecer. Todo mundo contra todo mundo. Agora eu acho que os Estados Unidos têm o maior problema que qualquer um no mundo inteiro com esse cara chegando perto. Essa coisa do ódio é errada. Ficar com essa coisa de odiar mexicanos, levantar um muro, começar guerras contra outros países é loucura. Você não faz coisas como essa. O que eu sinto que ele está fazendo é levar os Estados Unidos de volta 50 anos. Ele está indo para trás ao invés de para a frente”, disse em entrevista ao site Whiplash.
Anthony Green, do Circa Survive, em entrevista ao Scream & Yell, faz coro: “Eu me sinto envergonhado de ser associado ao Trump de qualquer forma. Vivemos tempos difíceis, mas é preciso transparência para com nossos filhos, afinal nós cometemos erros no passado que não podem se repetir. Em tempos onde o ódio prevalece procuro ensinar a eles que devemos tratar bem uns aos outros”. Riley Breckenridge, do Thrice, também em entrevista ao Scream & Yell, se junta ao grupo que critica Trump: “É constrangedor, nojento, trágico, enfurecedor e frustrante. Espero que possamos nos livrar dele em 2020 ou antes e sinceramente esperamos que todos possamos nos recuperar dos danos que ele está causando nos EUA e no mundo diariamente”.
Ao fim dos shows da turnê “Us+Them” há também o chamado a resistir a algo. Na Polônia, por exemplo, houve a conclamação a resistir à pecaminosa aliança entre igreja e estado, algo que assombra também por aqui com a ascensão de candidatos ligados às neopentecostais a cargos no legislativo e até no executivo de uma de nossas maiores cidades, mas que ainda não parece tão perturbadora (não que não o seja, mas por enfrentar concorrentes abjetos de mais danoso potencial). Ao fim dos shows, particularmente em São Paulo, quando estivermos saindo do Allianz Parque, nos dirigindo à Estação Barra Funda do Metrô e o solo de guitarra de “Confortably Numb” estiver dando reviravoltas em nossa cabeça, qual será a mensagem que teremos visto? “É uma jornada pesada”, comentou a jornalista Fernanda Ezabela quando escreveu para o Scream & Yell sobre o show “The Wall” que ela viu em Los Angeles, oito anos atrás. E continua sendo.
Num país hoje dividido entre o “#eleNão” e o “#eleSim”, também um reflexo do mundo atual, estamos entrando em um perigoso terreno que pode ter consequências catastróficas. Amizades feitas no mundo real são desfeitas tanto no mundo virtual quanto no próprio mundo real, com o clique de um botão. E muitas vezes “pelo preço de uma fatia de bolo e um chá”. É fácil enfiar uma faca em um candidato por não concordar com suas ideias tanto quanto é fácil duvidar da honestidade de quem conviveu conosco por vários anos e, até então, só nos tinha dado provas de idoneidade e merecimento de confiança. Rotula-se “esquerda” e “direita” esbravejando contra o vizinho sem sequer saber o mínimo das teorias que estão por trás de cada uma dessas “frentes”. Não se trata mais apenas de economia, estado mínimo e liberalismo ou um estado super abrangente, com proteção aos menos favorecidos. Exageros acabam tornando-se comuns num cenário como esse, fazendo parecer como se seja preciso escolher exclusivamente entre o combate à corrupção ou o cuidado com as pessoas. Acaba a humanidade, a empatia pelo próximo, que, a exemplo do citado episódio de série, deixa de ser visto como um ser humano. E quem acaso opta por posições mais centristas acaba ficando no fogo cruzado entre os dois lados. Ora, afinal, para quem levanta a bandeira da extrema direita, quem está ao centro sempre estará, naturalmente, à esquerda. É inimigo, portanto. O mesmo ocorre na outra extremidade do conflito.
O próprio Roger Waters também já foi alvo em uma canção do Pink Floyd. Em “Lost for Words”, do último álbum de estúdio propriamente dito da banda, “The Division Bell” (1994), lançado anos depois que ele já havia deixado a banda. David Gilmour e sua esposa, Polly Samson, acusaram na letra Waters de responder com um “Vá se foder” a uma tentativa de reaproximação com o grupo após versos como:
“Enquanto você perde tempo com seus inimigos
Mergulhado em uma febre de rancor
Além de sua estreita visão, a realidade desaparece
Como sombras na noite”
Em tempo, a canção “Us and Them”, que conquistou o mundo em 1973, no icônico álbum do prisma, seria parte da trilha sonora de “Zabriskie Point” (1970), mas foi rejeitada por Michellangelo Antonioni por ser “muito triste”. Seu nome, à época, era “The Violent Sequence”. Sorte nossa. Ela apareceu muito mais amalgamada com suas “irmãs” anos depois, ajudando a descrever as nuances escuras da alma humana. E se todos nós temos este ou aquele lado escuro em nossas almas, como chegamos ao ponto de vermos aqueles de quem discordamos como seres completamente obscuros?
– Daniel Tavares (Facebook) é jornalista e mora em Fortaleza. Colabora com o Scream & Yell desde 2014.
A resenha varreu a minha cabeça com um vento forte de reflexão soprando. Dia 17 verei o espetáculo ao vivo em Salvador. Aguardo até lá pensando ao som de Us and (+?) Them…
Voltando depois de alguns dias apenas para confirmar: O show foi visceral. Waters se mostra antenado a cada lugar que passa, e aqui em Salvador não deixou passar batido o crime que vitimou Mestre Moa – por causa de uma discordância política – mostrando uma foto dele no telão e dedicando palavras de conforto e resistência. Foi muito emocionante, e Waters estava visivelmente empolgado por se deparar com uma plateia muito mais calorosa e receptiva as suas manifestações políticas.
Eu estive presente em Brasília. Felizmente tive a percepção de que a maioria aplaudiu o grande Waters. Foi uma experiência intensa, ainda mais levando o contexto que o país atravessa. Roger Waters é um dos maiores artistas vivos!
Também fui ao show em Brasília e senti a platéia mais respeitosa. Felizmente não senti aquele clima de hostilidade que muitos temiam. Show incrível, memorável. Independente de posicionamentos políticos, sejamos humanos!! Valeu, Roger Waters!!