por João Paulo Barreto
Em “Abaixo a Gravidade” (2018), o cineasta baiano Edgard Navarro oferece uma discussão centrada na dicotomia razão vs fé. Mais do que isso, ele revisita um tema que lhe é recorrente em sua filmografia: a transgressão como forma de sobrevivência. Desde “SuperOutro” (1989), quando Bertrand Duarte gritou a frase que batiza esse novo filme, passando por “O Homem que Não Dormia” (2011), quando a mesma frase ele proferiu em um momento de entrega à lucidez (e à morte), Navarro aborda essa ideia de saída de um lugar comum a partir da racionalidade não como um norte estanque, mas, sim, como uma opção. Nessa entrevista, concedida durante a Mostra CineBH 2018, ele aprofundou essa proposta de cinema que, apesar de galgado em temas fantásticos, tem seu direcionamento em temas bem reais e que atormentam muitos dos seus espectadores.
O tema gravidade está presente em diversos dos seus filmes. Mas, percebe-se ser algo que vai além de qualquer conceito físico. Há um aprofundamento perceptível nesse aspecto em “Abaixo a Gravidade”. Como você buscou desenvolver esse conceito aqui, dentro de uma ideia mais psicológica nos seus personagens?
A minha vida foi uma luta mais ou menos constante contra os fantasmas da opressão, das coisas que atraem a gente para baixo. As coisas do peso que vemos na fala de Nietzsche, por exemplo. Eu exponho isso claramente no filme. Algo com a coisa do espírito da gravidade, que atrai tudo para baixo. Essa ideia inicial que já começa lá com “SuperOutro”. Essa ideia bebe ali no capítulo do “Assim Falou Zaratustra”, quando Nietzsche menciona isso sobre o espírito da gravidade. Aquilo que puxa tudo para baixo. Essa burocracia, essa coisa de uma seriedade empostada da sociedade, da hipocrisia, das relações de poder. Eu acho que tudo isso está mascarado com uma co-penetração, aquele cenho franzido, aquela suposta seriedade. Essa gravidade, falando de gravidade como uma coisa séria, um estado de gravidade. Um estado de saúde que é grave. E grave tem a ver com peso. A palavra gravitar, gravidade, tudo isso tem a ver com peso, com empoderamento, tem uma coisa assim como uma conspiração dos conceitos que estão lidando com esse assunto, esse campo gravitacional que ajuda a formular esse feeling do filme desde sempre. Ele se repete e ele continua atual para mim, porque eu vejo que o mundo gravita em torno de coisas que são polos de atração falsos. Que são coisas que são colocadas de fora para dentro. Que, na verdade, o grande potencial da gravitação em nós, seres humanos, a nossa arquitetura lida com uma gravidade que está aqui, no centro, digamos, no plexo solar do ser humano (apontando para o próprio peito). E não na inteligência. A inteligência é um satélite. E isso daqui (o centro do peito) seria um centro de gravidade do ser humano. Eu faço elucubrações em torno desse assunto. Variações, mesmo.
Seu filme anterior, “O Homem que Não Dormia”, já trabalhava esse contexto de fé vs racionalidade. Agora, você desenvolve isso com ainda mais aprofundamento, inserindo personagens niilistas, vaidosos, em contraposição àqueles mais ligados a uma ideia de fé. É um contraponto curioso observar, por exemplo, o embate entre Galego e Bené. Além disso, há o espelho temático entre Maselfe e o mesmo Bené. Qual o equilíbrio que você colocou como meta nesse equiparar de elementos?
Galego, com seu niilismo, representa esse mundo de três dimensões. Um mundo de onde você não pode escapar. Eu, desde sempre, visto a camisa da fé. Eu tomo a fé como aquilo que vai me defender. Não a fé religiosa, que lida com uma mitologia. Eu lido com várias mitologias, porque todas elas, qualquer uma delas, pode servir. Por exemplo, a camisa que Bené está usando fala assim: “quem tem fé tem tudo”. Não é fé em alguma coisa. É fé como potência de vida. De desejo. Uma coisa que tem a ver com vontade de poder. Uma coisa que está para além da razão. Não é uma coisa racional. Você usa a razão. O filme de alguma forma quer colocar esse axioma aí, que é colocado por (Carlos) Castaneda (escritor peruano), e é dito no filme. Mas o centro do ser humano não está no raciocínio lógico. Esse raciocínio lógico levou a gente para o niilismo. Levou a gente para uma coisa de buscar. O Galego apenas encarna de uma forma meio instintiva, intuitiva, essa força da natureza. Mas, para mim, a coisa mais forte está no Maselfe. Porque ele está numa influência direta desse raciocínio que traz a gente para tentar. E ele desmascara isso. Ele é o enviado do filme para desmascarar isso. Quando ele tira a peruca, quando ele diz que existe nele um deus. Nesse momento, ele denuncia o racionalismo da filosofia ocidental como o grande vilão do espírito antigravidade. Ele é O Pensador. É aquele que tenta resolver o problema através do intelecto. E ele sonha com o momento em que O Pensador vai desfazer essa postura e vai se libertar, e vai dançar e vai poder até voar, possuído pelo Exu. E eu trabalho aí com essas duas mitologias que são a filosofia ocidental, encarnada no Pensador de Rodin, como sendo o pensamento ocidental. Ali está a lógica, todos os filósofos, todo o racionalismo que o ser humano conquistou e do qual se fez presa. Então, eu coloco, confrontando com essa coisa, uma mitologia africana, onde o Exu, que é para além da razão, para além do cognoscível. Ele, literalmente, enraba o pensador. É uma espécie de vingança minha também, de dizer que o destino do pensador, e ali o pensador é Mierre, que tá tentando tirar alguma grana com aquela coisa de postura de homem estátua. Ele tem um Exu que o acomete de vez em quando. Tem aqueles acessos que não sabe direito o que é. Ele teve uma coisa na infância que é um trauma de que ele foi violentado por uma turma de garotos maiores. É um trauma e ele leva e inventa uma fantasia de que foi o ET quem fez isso com ele. O ET remete para uma coisa do cosmos, remete para esse asteroide vadio, vagabundo, brincalhão que vem dar um rolê ali na Baía de Todos os Santos. Então, tudo isso favorece a metáfora e a fantasia do filme. A criação dessa coisa que está no plano do sonho. Inclusive é colocado no filme como um sonho coletivo dos dois, de Bené e do Maselfe. Desse asteroide que vem. E a gente não sabe direito se vem ou não. Se aquilo também não é uma ilusão. Porque ele tomou uma pastilha que a menina lhe deu dizendo que era jujuba. O que é aquilo? De repente, ele está em um lugar e está em outro. Ele vira uma coisa ubíqua. O corpo dele, quando ele acorda, ele está na cama do lugar onde ele mora. Ele nunca esteve voando em lugar nenhum, mas ele voa no filme. E o que voa nele é a imaginação, é a fantasia, entendeu? É uma libertação que vem de um deus exu africano que o liberta desse racionalismo. Dessa coisa das três dimensões. Eu quis trabalhar com todo esse universo de coisas racionais e não, mas com a coisa principalmente de duas potências de, como se fala, cosmogonias. É a cosmogonia branca, europeia, fundada na Grécia e nos filósofos que vêm de lá, com esse pensamento positivo e fundado na ciência, e outro que vem de um exu que é uma coisa, um semideus, africano, que vem do umbigo, e não daqui desse centro do cérebro. Eu estou deslocando, tentando empurrar isso, eu estou estuprando esse pensador. Que eu tenho sido acometido por ele, também. Ser pensador me levou para o lugar da não saída, do labirinto mental. Que eu denuncio. Eu grito isso no filme através do Maselfe. Tá tudo misturado, (risos).
Há uma rima temática em seu filme que é impossível não perceber, que é a referência a Fellini com a imagem do Cristo sendo levado pelo helicóptero. Aqui, é o pensador que assume esse lugar.
Sim. Exato. O Cristo é o Teocentrismo. E O Pensador é o antropocentrismo. Na mesma condição. Só que, agora, prevalece na contingência do filme essa libertação através da cosmogonia africana. E da coisa do teocentrismo. E não do antropocentrismo.
A cobertura do CineBH 2018 continua nos próximos dias. Acompanhe na tag #CineBH2018
– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde e assina o blog Película Virtual.