Texto por Caio Bosco
Isso mesmo, James Benning é o João Gilberto dos filmmakers! Ainda que este norte-americano de Milwaukee tenha um estilo muito mais próximo ao pré grunge de Neil Young & Crazy Horse do que do nosso baobá baiano, sempre elegante em suas aparições públicas, com seus ternos, gravatas e sapatos italianos, é na estética e na sensibilidade artística que o trabalho de ambos se viram um de frente para o outro. Assim como João, o que Benning faz é retirar toda a superficialidade e as camadas das convenções artísticas, para revelar uma elegância complexamente simples, tecnicamente avançada, utilizando tecnologias populares.
Benning filmou seus principais títulos com uma simples e única câmera 16mm; para a captação do áudio ele usou o mítico Nagra e, a partir de 2009, o diretor começa a utilizar equipamentos digitais enquanto João Gilberto usa somente seu violão Di Giorgio modelo Tarrega e a sua voz restando uma integral contemplação da natureza. Não à toa, Baby Consuelo, uma João Gilbertiana convicta, ficou conhecida no meio dos músicos por pedir acordes com sons de “coqueiros balançando”. A natureza é a imagem da música do bruxo de Juazeiro, o rio São Francisco, os tais coqueiros balançando, o mar, o sol, o céu azul, o pato e as lagoas, as montanhas e morros, enfim, uma imagem em que nós, humanos, somos retirados de cena, assumindo o papel de mero admirador de uma paisagem nada inútil.
Benning nasceu em 1942, o ano dos ovos de ouro, que marca o nascimento de patrimônios como Jimi Hendrix, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Curtis Mayfield, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Paul McCartney, Brian Jones e Brian Wilson, entre muitos outros, e começou a estudar cinema apenas aos 33 anos pela universidade de Wisconsin após se formar em matemática, de envolver-se profundamente na luta pelos direitos civis e pelo fim do racismo na segregada Milwaukee. Antes disso, Benning foi na sua infância e adolescência jogador de basebol, o que é tema de um documentário de 2013 chamado “Double Play”. Dirigido pelo brasileiro Gabe Klinger, “Double Play” mostra as similaridades e diferenças nas trajetórias e na vida do filmmaker e de Richard Linklater (ele também fora jogador de basebol), seu amigo há mais de 30 anos (e responsável por, entre outras obras, “Boyhood” e a trilogia “Antes do Amanhecer”, “Antes do Pôr-do-sol” e “Antes da Meia-Noite”).
Uma das maneiras de definir a obra de Benning é a observação da paisagem como “passagem do tempo”, uma câmera mostrando a natureza e sua erosão humana, algo que parece estático, que nunca muda, mas que muda o tempo todo, quase que uma meditação Zen, uma prática de Yogui e Yoguines, a arte de transcender através da disciplina de se fazer a mesma coisa. Opa, mas pera lá: estamos falando de Benning ou de João interpretando “Chega de Saudade”, “Estate”, “Pra Que Discutir Com Madame?”, “Aos Pés da Santa Cruz”, “Desafinado” ou “Adeus América?” É possível perceber essa analogia? Essa inquietação?
James Benning fez seu primeiro filme em 1971, mas de sua obra recente destacam-se “Deseret” (1995), a trilogia sobre a Califórnia com “El Valley Centro” (2000), “Los” e “Sogobi” (2001), e seus últimos filmes em 16mm, “Casting a Glance” e “RR”, ambos de 2007. “Deseret” está presente no compêndio “1001 Filmes Para Ver Antes de Morrer” (editado no Brasil pela Sextante), livro que é uma assertiva porta de entrada para um cinéfilo iniciante. No final da década passada era possível encontrar filmes raros como “Deseret” (e também “O Salmo Vermelho”, de Miklós Jancsó; “Killer of Sheeps”, de Charles Burnett; “A Cor da Romã”, de Sergei Parajanov, entre outros) em excelentes blogs de cinéfilos, mas o projeto de lei Sopa/Pipa, de 2012, um atentado à liberdade da internet, passou a combater a pirataria em rede atingindo sobretudo blogs e sites de armazenamento gratuitos, arruinando um período dourado da grande rede e fortalecendo ainda mais o Facebook como ferramenta de compartilhamento de arquivos a partir de então, impossibilitando que obras artísticas difíceis de serem encontradas circulassem com maior facilidade. Para sua sorte, caro leitor, o selo alemão Filmmuseum lançou (em 2014) 11 filmes de James Benning divididos em seis DVDs, incluindo “Deseret” – há uma versão no Youtube, porém, sem som.
Pois bem, “Deseret” mudou minha maneira de enxergar o cinema. Lançado em 1995, o filme faz parte da série “Filme-Texto”, mostrando as paisagens de Utah com a locução de Fred Gardner narrando 93 trechos de matérias publicadas no New York Times entre 1852 até 1991, cobrindo desde as remotas chegadas dos mórmons, que, expulsos de Illinois chegam a Salt Lake City liderados por Brigham Young (O Moisés mórmon); a dificuldade da adaptação no deserto; o fim do estado provisório de “Deseret” proposto pelos religiosos em 1949 para uma parte das terras conquistadas do México; a formação do estado de Utah; o embate entre o governo norte-americano e os habitantes que ainda praticavam a poligamia; o confronto com os nativos; o confronto dos mórmons e nativos contra as forças armadas estadunidenses; o terrível e criminoso massacre da montanha Meadow cometido pela milícia mórmon em que foram mortas 120 pessoas não mórmons, entre elas, mulheres e adolescentes; as várias tentativas de mudar o nome do estado de Utah para Deseret (uma maneira de dizer mel de abelha no livro dos mórmons, ou seja, a terra prometida); a construção da estrada de ferro que cruza todo o país; as tentativas desastrosas de tornar uma parte do estado local para testes nucleares, desenvolvimento de armas biológicas e despejo de lixo tóxico; as emissões de gases venenosos e poluentes que mataram milhares de ovelhas e uma parte do ecossistema; golpistas, fraldários e assassinos cults como Melvin Dummar, Gary Gilmore e Mark Hofmann são mencionados nas partes finais da película; tudo parece ser negativo em Utah, uma das poucas exceções é o maravilhoso Spiral Jetty de Robert Smithson (tema do filme “Casting a Glance”, de 2007).
O aspecto visual do filme merece um parágrafo a parte: acompanhando tomadas que mudam a cada sentença do texto, as imagens são belas, grandiosas e evocativas, uma herança direta da arte naïf americana de Bill Traylor, Martín Ramirez e Henry Darger, um equivalente imagético aos clássicos álbuns de John Fahey, a primeira encarnação de Bob Dylan e a poesia de Gary Snyder. O filme tem toda a sua primeira parte em preto e branco, e, cronologicamente, quando vira o século, passa para um colorido igualmente magistral. Talvez por manter uma distância dos textos escritos de maneira parcial pelo New York Times, Benning tem a sabedoria de descolar a imagem da cronologia do texto, dando ênfase ao início e ao final, deixando as lacunas livres para as próprias interpretações do espectador, nos mostrando usinas, trens, cidades, florestas, campos de agricultura pesada, rios, canyons, placas, petróglifos dos povos Anasazis, cemitérios, igrejas, fast foods, lojas de conveniências, estradas de terra e pavimentadas, embaralhadas dentro da cronologia textual. “Deseret” registra um pico artístico que faz brilhar os filmes passados do diretor e sua matemática estruturalista complexa de montagem tanto quanto ilumina os que irão por vir, com suas tomadas monumentais sobre a paisagem e a natureza, resgatando a cultura folk e arremessando ao contemporâneo num processo meticuloso e solitário, assim como o mestre João, que resgata os compositores populares brasileiros, dando as suas canções matemáticas e complexas estruturas harmônicas, também arremessando e iluminando, de maneira solitária e perfeccionista, o passado direto ao futuro.
Entre 2000 e 2001, Benning realizou a trilogia sobre a Califórnia (também lançada em DVD pela Filmmuseum) solidificando seu nome no que alguns teóricos chamam de “Eco Cinema”. Logo na virada do século, o público é presenteado com “El Valley Centro” (2000), película dedicada totalmente ao papel do vale central e da Califórnia para os Estados Unidos: a agricultura. O primeiro plano começa com um shot maravilhoso sobre a paisagem do desaguadouro do reservatório de Monticello Dam, no condado de Napa, mostrando a monstruosidade da monumental queda d’agua em um grande círculo vazado, em imagem e som, já que a partir daqui o som ambiente assume papel de protagonismo em seus filmes. Os mais de 60% de vegetais, frutas e castanhas consumidos no país são retratados nessa película que exibe amendoeiras; o cultivo do arroz; os sofisticados sistemas de irrigação; caminhões e tratores poderosos arando, ceifando o trigo e transportando entulhos; agricultores (pelo diálogo e pela música distante percebe-se que são latinos) e suas enxadas; pântano; vidas selvagens; gado. “El Valley Centro” termina mostrando os aquedutos de Wheeler Ridge, ou seja, o filme começa e finda com os poderosos engenhos de captação e distribuição de água, sua importância e sua ameaça, com as chocantes imagens de um poço de petróleo em chamas; uma usina nuclear desativada; petrolíferas com suas torneiras abertas de manchas de óleo e queimadas na mata.
No ano seguinte, 2001, é a vez de “Los”, uma epopeia sobre o condado de Los Angeles, do qual o livro “Cidade de Quartzo”, de Mike Davis, é um acompanhamento indispensável para esse quebra cabeça urbanístico e cultural chamado L.A.. Esqueça o sonho ensolarado dos Mamas & The Papas (a versão é adorável, mas você ouviu “California Dreamin’” com José Feliciano?); as mansões das estrelas; a Topanga Canyon de Crosby, Stills and Nash e os letreiros de Hollywood eternizados por Ed Ruscha. O que Benning mostra da cidade glamour é uma região metropolitana desmistificada e sem maquiagem com sem-tetos; o porto de San Pedro; homens de negócios; o bairro coreano; engarrafamento; trabalhadores; o rio seco de Los Angeles (locação utilizada nos épicos “Point Blank”, de John Boorman; e “Chinatown”, de Roman Polanski) e, somente na última cena, o oceano pacífico de Malibu. A sabedoria do diretor é eliminar os dois extremos mais mitificados, Berverly Hills de um lado e Compton do outro, deixando ao espectador uma Los Angeles mais neutra e humana.
No mesmo ano vem “Sogobi” (que significa “Terra” na língua nativa americana da tribo shoshone) e aqui a rainha soberana é a natureza, por ela mesma. Os primeiros 20 minutos são paisagens totalmente desertas e esplendorosas como praias, florestas de carvalhos, montanhas nevadas do norte, as torres de Tufa, colinas, chaparral e sequoias-gigantes. Nos raros casos em que acontecem ações humanas, elas se dão na forma de meios de transportes invadindo a paisagem com helicópteros, carros, guindastes moveis ou um outdoor em branco no meio do nada. A última cena do filme e da trilogia é o mesmo local do começo de “El Valley Centro”, o reservatório de Monticello Dam, mas aqui vazio e desativado, nos deixando uma imagem clara: estamos destruindo a natureza, mas, com certeza, ela nos destruirá antes e se regenerará, ao contrário de nós. Benning adota uma maneira estrutural e simétrica de montagem: cada filme tem 36 tomadas (incluindo os créditos finais) de 150 segundos cada, fazendo com que cada película some exatos 90 minutos e a trilogia, no total, 270 minutos de contemplação hipnótica. Outro ponto interessante é o uso das trilhas: em “El Valley Centro”, o filme termina com uma canção mexicana; em “Los”, com uma canção country & western e em “Sogobi”, um canto indígena, totalizando em som e imagem um retrato profundo sobre a Califórnia.
Seus dois últimos filmes feitos em 16mm foram produzidos simultaneamente entre 2005 e 2007 e ambos focam em paisagens naturais alteradas pela criação humana (eles também estão disponíveis em DVD pelo selo Filmmuseum). O primeiro, “RR” (2007), é uma ode as linhas ferroviárias (RR vem de “railroads”) e consiste somente em tomadas de trens passando pelos campos de Iowa, Alabama, Illinois, Kentucky, Louisiana, Minnesota, Mississippi, Nebraska, Ohio, Pennsylvania, Wisconsin e Wyoming. As tomadas variam de tempo, dependendo da velocidade da máquina e da quantidade de vagões, as cenas duram desde a chegada do trem, vindo de maneiras e lugares inesperados, se misturando com a paisagem até sumir da tela. O que se mostra presente é a importância desse engenho altamente tecnológico para o desenvolvimento urbano durante o século 19 e para a logística infraestrutural de distribuição transcontinental atual, nesse sentido, algo misterioso e fantasmagórico nos aparece constantemente nas 43 tomadas do filme, pois podemos sentir a presença dos milhares e milhares de imigrantes chineses, mexicanos, trabalhadores em condições miseráveis, prisioneiros e negros escravos que construíram essas estradas desde o século 18, tendo o seu período mais pulsante entre 1850 a 1900 (só em 1850 foram construídos mais de 14 mil km de estradas de ferro nos Estados Unidos). O design sonoro do filme é deslumbrante, misturando sons da natureza e, por vezes, o silencio, com apitos e engrenagens, e, em alguns momentos Benning adiciona elementos históricos como uma emissão radiofônica de uma final de um campeonato de basebol em 1991; o discurso do presidente Eisenhower em 1961 contra o poder do complexo industrial militar estadunidense e trechos do Apocalipse de João. Mais uma vez temos um “sound and vision” profundamente reflexivo entre o selvagem e o perpetuamente modificado; a observação estática e meditativa da natureza contra o desiderato humano de locomoção.
O segundo filme lançado em 2007 por Benning foi “Casting a Glance” e aqui vemos uma linda homenagem à arte, ou melhor, ao marco inaugural da land-art, o “Spiral Jetty” do grande Robert Smithson. Trata-se de uma obra de arte de 1970 em forma de espiral construída com lama, pedras basaltos, cristais de sal e água, uma instalação com 460 metros de comprimento e 4,6 metros de largura no grande lago salgado de Utah. Filmado entre 16 viagens que Benning fez ao “ciclone imóvel” de 16 de abril de 1970 até 15 de maio de 2007, estruturado em 16 sequências e 78 planos, o filme se divide em um hiato até sua conclusão. De 1970 até 1971, Benning cobre a transformação da paisagem em cada estação, desde a primeira primavera da obra; a seca do começo do outono e o sal que resta sobre a pedra preta deixando tudo branco; o inverno que deixa tudo branco de novo, mas agora com a neve e as altas do lago com o derretimento do gelo nas primaveras de 1971 e 1973, a partir dessa data, “Spiral Jetty” será coberta pelas cheias por 30 anos. O diretor ainda iria duas vezes, em 1984 e 1988, mas filma somente água até retomar os trabalhos em 2002, quando o lago começa a baixar e a instalação a céu aberto mais legendária da América mostra sua bela silhueta escura. Momentos felizes aparecem com crianças brincando na espiral, mas até o fim da nossa jornada, a natureza com seu tempo e movimento próprios nos mostrará a repetição das estações, mas com luzes e enfoques diferentes sobre as pedras que estão por vezes escuras e por vezes brancas como a neve. Com uma metodologia parecida com “RR” para o design sonoro, ouvimos o som destacado das águas e dos pássaros entrecortados por conversas de visitantes; som de aviões; as crianças ao fundo e a linda “Love Hurts”, de Gram Parsons e Emmylou Harris, uma canção de 1973, ano da morte de Robert Smithson em um acidente de avião, que cai como uma linda homenagem de Benning, assim como João Gilberto cantando “Corcovado”, “Águas de Março”, “Bahia com H” e “Samba da Minha Terra”, ou, como dizem os jovens: muito amor envolvido!
A partir de 2012 Benning passou a se isolar (outra semelhança com nosso João) nas montanhas da Califórnia, construiu para si uma casa e duas cabanas de madeiras (uma é a réplica de Walden, de Henry David Thoreau, a outra, uma réplica da cabana feita pelo Unabomber Ted Kaczynski), curtindo o isolamento e se dividindo entre a pintura e seus filmes. Ele diz não estar mais interessado em fazer bons filmes e sim em desenvolver uma nova linguagem, o que permite um paralelo com Godard nesse sentido, mas a grande analogia ainda permanece: James Benning é o João Gilberto dos filmmakers! Descubra este grande cineasta!
– Caio Bosco (fb/caioboscocerebral) é cantor, compositor e músico (https://caiobosco.com), já lançou diversos trabalhos, tanto solo, quanto com o Radiola Santa Rosa. Cinéfilo e pesquisador amador, já compôs trilhas para curta-metragens internacionalmente premiados, planeja escrever sobre cinema avant-garde, experimental e alternativo, visando contribuir com pesquisas sobre realizadores que são pouco conhecidos no Brasil.