por Marcelo Costa
“Maria Madalena”, de Garth Davis (2018)
Se você parar em uma grande avenida de sua cidade e gravar aleatoriamente respostas para a pergunta “quem foi Maria Madalena?”, muito provavelmente você terá um número largo de pessoas que acreditam que a moça presente na Bíblia foi uma prostituta. A culpa desse veredito equivocado recai sobre um Papa, Gregório I, que a identificou com pecadora num período de caça as bruxas que desejava afastar as mulheres do clero. Da descoberta do Evangelho de Maria Madalena em 1945 (conhecido como “Os Manuscritos do Mar Morto”) passando por 1969, quando os termos “penitente” e “pecadora” foram excluídos da seção dedicada a ela no “Breviário Romano”, até a recente defesa de Papa Francisco, em 2016, que a colocou como uma das seguidoras mais fieis de Cristo (numa tentativa tanto de corrigir erros da Igreja quanto revalorizar a posição da mulher na sociedade, no geral, e na Igreja, em particular, num momento mundial de levantes feministas), Maria (natural de Magdala, cidade localizada na costa ocidental do Mar da Galileia) segue sendo uma personagem controversa. Neste filme soporífero de Garth Davis (do também sonolento “Lion”), Rooney Mara foi a escolhida para o papel de Maria enquanto o personagem de Jesus surge recriado tortamente por Joaquin Phoenix. A história, porém, é muito mais forte do que as imagens fracas e tolas que povoam a tela sob o som de uma trilha grandiloquente. Ou seja, há uma sequencia interessantíssima de fatos narrados (com direito a diversas provocações controversas) que se sobrepõe ao conjunto de imagens criado por fotografia, edição e direção. Em outros tempos, “Maria Madalena” seria considerado um filme blasfemo. Hoje em dia é apenas um filme ruim. Maria Madalena (e as mulheres) merece(m) muito mais.
Nota: 1
“Happy End”, de Michael Haneke (2017)
Outro texto, de sete anos atrás, de certa forma definia: “Em um mundo perfeito, cineastas como o austríaco Michael Haneke não existiriam. Ou, olhando por outro lado: o cinema de Haneke só existe porque vivemos em um mundo corroído por imperfeições. E ele mostra essas rachaduras de forma direta, sem muita alegoria”. Partindo dessa premissa, um filme de Michael Haneke com o título “Final Feliz” só pode soar uma divertida pegadinha. E, claro, é (uma pegadinha). Em mais um retrato de família branca rica, burguesa e apaixonadamente infeliz, Haneke postula sobre internet, redes sociais e alienação enquanto observa uma voyeur de apenas 13 anos filmar a rotina besta da própria mãe através de vídeos no celular usando essas imagens como justificativa para assassina-la. Eve (Fantine Harduin) é a segunda pessoa mais jovem da casta Laurent, uma família riquíssima que está tendo problemas em uma obra (assim como em “Elle”, Isabelle Huppert tem outro filho idiota aqui) ao mesmo tempo em que tem que lidar com a perda de memória do patriarca (Jean-Louis Trintignant, excelente) e com a chegada de um novo rebento, irmão de Eve, filho do segundo casamento de seu pai. Como uma boa família burguesa, os Laurents vivem todos juntos em uma imensa mansão em Callais, e a rotina da família (tanto quanto a invasão da internet em suas vidas) é observada com diversão por Haneke, que ainda que tenha transformado o sadismo de outrora em sarcasmo, consegue alguns bons momentos num filme que está bastante distante de suas grandes obras (“Funny Games”, “Caché”, “A Fita Branca”, “Amour”), mas ainda soa um passatempo interessante (ainda que menor) para pessimistas.
Nota: 7
“O Sacrifício do Cervo Sagrado”, de Yorgos Lanthimos (2017)
Após matar um cervo sagrado, Agamemnon é punido por Ártemisia, a deusa da caça, da lua e da magia, que exige que ele sacrifique sua filha Ifigênia para que bons ventos soprem sobre o exército grego em direção a Troia. Tragédia escrita há 2400 anos pelo poeta Eurípedes, que morreu sem conclui-la, “Ifigênia” é a base deste incrivelmente aterrorizante filme de Yorgos Lanthimos, pouco mais de um ano após receber destaque pelo surrealisticamente brilhante “O Lagosta”. Nesta atualização da tragédia grega, Steven (Colin Farrel) é um cirurgião que tenta vencer o alcoolismo enquanto tem, em suas mãos, as vidas de dezenas de pacientes (na forte primeira cena, um coração pulsa em um peito aberto numa mesa de cirurgia). Sua esposa, Anna (Nicole Kidman), também é médica, e o casal tem dois filhos: o garoto Bob e a menina Kim (que, aliás, acabou de ter a primeira menstruação). A rotina da família é alterada quanto Steven leva Martin (Barry Keoghan) para um jantar em sua casa, um jovem garoto que o tem visitado constantemente no hospital, e que Steven meio que adotou dando-lhe atenção sem saber o motivo – que, quando revelado, será cruel e fatal. Novamente com mão pesada na forma, fato que transformou “O Lagosta” num comportado clássico estranho recente e pode afastar (novamente) desavisados, Yorgos desfila uma tragédia grega sem concessões em “The Killing of a Sacred Deer” (título original), o foda-se que ele envia para aqueles em Hollywood que esperavam que ele fosse amaciar na narrativa após uma badalada indicação ao Oscar (perdeu para “Manchester By The Sea”). Não amaciou. E o resultado é outro belíssimo filme estranho, um daqueles exemplares de terror que deixam o espectador com receio de fechar os olhos (e cometer erros) por semanas.
Nota: 9
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne