texto por Marcelo Costa
fotos por Fabricio Vianna e Oswaldo Corneti (confira galeria)
Começo de noite de horário de verão numa quarta-feira de feriado na cidade de São Paulo. O relógio está passando das 18h30 e o sol segue intenso pintando o horizonte de dourado, belo, após ter transformado uma das obras mais questionáveis do repertório do arquiteto Oscar Niemeyer, o oceano de asfalto do Memorial da América Latina, em uma imensa frigideira que cozinhou fãs de música que bateram ponto na edição 2017 do Popload Festival para conferir nomes como Neon Indian, Ventre, Carne Doce e Daughter. Agora é a vez de Polly Jean Harvey e a expectativa da maioria dos presentes (que não havia visto o show do dia anterior no Teatro Bradesco), 13 anos após sua primeira vinda ao Brasil, é enorme.
No modelo fanfarra fúnebre, os 10 integrantes da banda adentram o palco marchando em fila indiana sobre escombros do mundo, todos de luto, todos sérios. Neste teatro trágico, Polly Jean interpreta a repórter que viajou para Kosovo, Afeganistão e Washington DC, e volta para nos contar o que viu com o amparo de Alain Johannes, Alessandro Stefana, Enrico Gabrielli, James Johnston, Jean-Marc Butty, Kenrick Rowe, Terry Edwards, Mick Harvey e John Parish. Ela surge no meio do grupo, sem destaque, como uma simples integrante de uma banda que pelos próximos 90 minutos irá entreter a audiência enquanto o navio afunda no meio do oceano.
“Chain of Keys” é o primeiro polaroide. No arranjo fanfarra se unem três saxofones (um deles tocado pela própria PJ), duas guitarras e violino, mas a música que sai das caixas é diminuta, abafada, dolorida, pois no cenário de uma Kosovo devastada, uma mulher guarda as chaves das casas dos vizinhos que partiram, caso eles voltem (mas “Os vizinhos não vão voltar”, canta PJ). “The Ministry Of Defense”, a melhor e mais terrível canção do álbum “The Hope Six Demolition Project” (2016), vem na sequência com três guitarras encorpando um riffzinho metalizado enquanto PJ lista tudo que vê em um prédio bombardeado: “grafites em árabe, merda humana, seringas, laminas de barbear, uma mandíbula, um fantasma de uma menina que corre e se esconde”.
Como não poderia deixar de ser (e vem acontecendo em qualquer canto do mundo desde a emblemática turnê do grande disco “Let England Shake”, em 2011, que narrava histórias da Primeira Guerra Mundial), o público urra feliz a cada final de número, dançando inebriado sobre os escombros de uma sociedade que, todos sabem, não deu certo. E o navio segue afundando. “The Community of Hope” surge na sequencia muito mais pálida que na versão do álbum mostrando o lado abandonado de Washington DC que todos fingem não ver, mas está lá. Poderia ser São Paulo, Porto Alegre, Buenos Aires, Londres ou Barcelona. Não só poderia: é. A canção termina, o público aplaude e Polly Jean não consegue conter o sorriso, que escapa.
Aos 48 anos, PJ segue extremamente magra e com uma pele branca que contrasta com o modelito todo preto adaptado para o “veranico” paulistano – a microssaia remete aos anos de “Stories from the City, Stories from the Sea” (2000) e “Uh Huh Her” (2003), que cede a próxima canção para o set list, “Shame”, que é recebida com urros pela plateia. Segue então um bloco de canções do premiado “Let England Shake”, que rendeu a PJ seu segundo Mercury Prize (até hoje ela é a única artista a ganhar duas vezes o importante prêmio britânico) com o ponto alto sendo “The Words That Maketh Murder”, que exibe metade da banda conduzindo a canção nas palmas e John Parish tocando algo próximo a uma viola caipira enquanto o personagem da letra de PJ diz que “fez e viu coisas que gostaria de esquecer” na Primeira Guerra Mundial.
A apresentação então sai de 1918 e retorna para 1861, ano em que o pintor James Abbott McNeill Whistler desenhou o quadro “The White Girl”, inspiração da capa do álbum “White Chalk”, que Polly Jean lançou em 2007, e que cede para o show a faixa título e a emblemática (ainda mais neste dia de um aparentemente intermivável horário de verão) “Dear Darkness”, com PJ cantando: “Querida escuridão, você não vai me cobrir novamente? Fui sua amiga durante anos, você não vai fazer isso para mim, caríssima escuridão, proteger-me do sol?”. A escuridão a ouve, e começa a vencer o sol. As luzes do palco são acesas, mas não há nenhuma cor neste velório: são luzes brancas sobre 10 pessoas em luto.
Um dia antes, PJ Harvey e seu exército em luto haviam levado este repertório para uma sala de teatro em São Paulo numa ação elogiável chamada Popload Social, em que fãs trocaram atos sociais (doação de sangue, metade de um turno em ONGs, entre outras ações) por ingressos. Inevitavelmente, este é um show teatral para ser visto preferencialmente numa caixa fechada em que o público não tem como escapar da temática barra pesada das letras e a aridez melódica dos arranjos, uma imersão necessária em um mundo terrível, mas tudo funcionou bem no Memorial da América Latina, com inevitáveis momentos de dispersão do público e uma ou outra conversa (principalmente no fundo da arena) enquanto a água invadia o convés e o drama seguia seu rumo inevitável.
Mais da metade do navio já está submerso, e a banda continua tocando. “The Wheel”, outra de “The Hope Six Demolition Project”, flagra quatro crianças num balanço em um parquinho abandonado em Kosovo antes da chegada de 28 mil soldados sérvios. “Ei, crianças, não desapareçam”, ela clama para logo em seguida avisar: “Agora você as vê, agora não mais”. O bluezaço “That’s What They Want”, do gaitista Jerry “Boogie” McCain, ecoa no Memorial da América Latina funcionando como base para “The Ministry of Social Affairs”, uma canção pesada que se utiliza do episódio em que Jesus expulsa com chicote cambistas do Templo para dizer que o mesmo precisa ser feito com alguns políticos que não estão cuidando das pessoas como deveriam.
A apresentação está chegando ao final, e os fãs antigos de PJ Harvey que permaneceram durante o show todo admirando este velório como forma de arte são presenteados com “50ft Queenie”, “Down by the Water” e “To Bring You My Love”, três canções do século passado que abrem um universo paralelo no show, com Polly Jean Harvey cantando e dançando enquanto o público se belisca tentando acreditar no que está acontecendo. É neste bloco de canções em que ela também apresenta a “minha banda” (em português mesmo), um grupo incrível de músicos da qual fazem parte dois Bad Seeds (Mick Harvey e James Johnston, este também Gallon Drunk, que cedeu a banda também Terry Edwards), um QOTSA (Alain Johannes) e, claro, o parceiro de longa data John Parish.
O show se encerra de forma lenta com os olhos em Washington DC no lamento spiritual “River Anacostia”, uma canção sobre o “rio esquecido”, como é apelidado o Rio Tietê deles. Aos poucos, todos os músicos vão deixando seus instrumentos e começam a bater palmas e cantar (como os escravos da letra) o refrão salvador: “Wade in the water / God’s gonna trouble the water”. A água usada para purificar e também para despistar os cães farejadores na busca por escravos que fugiram agora não pode ser mais usada devido à poluição. O navio está todo encoberto, a banda parou de tocar e os 90 minutos do velório chegam ao fim como um dos grandes shows do ano no Brasil, uma apresentação teatral que exibe as cicatrizes do mundo em carne viva. Banda e público sorriem. É o fim do mundo como nós o conhecemos, e todos nós no Popload Festival nos sentimos bem. Obrigado, PJ.
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
– Fabricio Vianna (fb.fabricio.vianna) é o fotógrafa oficial da Popload
Comentário perfeito! Deixando implícito o que separa a arte do entretenimento e lembrando (coisa meio esquecida atualmente) que o artista é antes de tudo a antena de seu tempo.
única ressalva sobre o texto: nem todos fãs de música, alguns veem o festival ( e outros por aí) apenas como um evento para aparecer em redes sociais, encontrar com os amigos, bater papo. Nada diferente de um churrasco ou um barzinho no fim do expediente.