entrevista por Pedro Salgado, de Lisboa
“Ainda não acredito no que está acontecendo”, começa por me dizer Surma (o alter-ego da artista leiriense Débora Umbelino), em face do impacto positivo que o seu projeto one woman band e o correspondente álbum de estreia, “Antwerpen”, suscitaram na mídia e no público português. Durante a conversa, marcada pela sua alegria e naturalidade, Débora recorda diversos aspetos do percurso musical, iniciado aos 14 anos tocando covers em bares da cidade de Leiria (centro de Portugal), tal como a passagem pelo grupo local Blackwater and the Screaming Fantasy. “Decidi saír da banda porque me sentia bloqueada e era complicado conciliar os ensaios em Leiria com a minha residência em Lisboa. Achei que seria interessante seguir uma via própria, mais personalizada e apostando na liberdade criativa”, conta.
Depois de assistir a um documentário sobre tribos indígenas, retirando de uma delas o nome para o seu projeto, Surma começou a criar melodias, juntou alguns riffs de sintetizador, guitarra, baixo e desenvolveu várias ideias musicais. O single “Maasai”, editado meses depois, tal como o respectivo clipe, despertou a atenção dos internautas e aumentou a expctativa relativamente aos desenvolvimentos posteriores. Gravado entre Outubro de 2016 e Julho de 2017 num armazém desocupado a uma dezena de quilômetros de Leiria e composto por Surma em parceria com o Casota Collective (formado por Rui Gaspar, Telmo Soares e Pedro Marques do grupo First Breath After Coma), “Antwerpen” evoca sonoridades como o jazz, eletrônica, post-rock e noise, apostando numa abordagem experimentalista e criando ambientes sugestivos onde se evidencia a voz delicada de Surma.
Embora reconheça as influências das cantoras americanas Annie Clark (St. Vincent) e Angel Deradoorian no seu trabalho, Surma concorda que o pop glacial dos islandeses Múm está mais presente no disco. “A música da Islândia limpa o meu sistema, adoro escutá-la e aquele ambiente influencia muito a minha composição. O fato de colocarem o dia a dia nas canções agrada-me bastante. Gostaria de viver lá”, diz. Após uma pausa para pedir bebidas e desfrutar o sol que invade o bar onde nos encontramos, destaco a faixa “Voyager” pelo seu caráter sedutor. “Eu criei uma base sonora e trabalhamos o tema, mas empacámos no final. Dois meses depois, o Rui Gaspar colocou um sample do Ladysmith Black Mambazo e sentimos que era esse elemento que faltava na música. É a nossa preferida do álbum, porque reflete a ideia de juntar mundos distintos como a Islândia e a África”, explica.
No momento, a multi-instrumentista realiza o tour de “Antwerpen” que contempla várias cidades portuguesas, tendo passado por Sevilha, entre outras localidades espanholas, para além de incluir uma apresentação em Paris. Relativamente à possibilidade de internacionalização da sua música, Surma revela sentimentos difusos: ”Isso é cativante, mas também me assusta. Sinto uma pressão enorme em agradar às pessoas de fora e não sei o que esperar ou se vão achar a minha música estranha, assim como é gratificante ver o público curtir os meus shows”. Sobre o seu futuro, opta por uma perspetiva realista. “Gostaria que as pessoas se conectem com este disco, escutem-no, sintam-se bem e continuem me apoiando. Prefiro seguir o fluxo das coisas, tenho os pés bem assentes no chão e o que vier virá”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Surma conversou com o Scream & Yell. Confira:
O single “Maasai”, que antecedeu o álbum de estreia, realçou a sua originalidade e tornou-a conhecida de um público maior. Esperava uma reação tão positiva à sua música?
De modo nenhum. Na realidade, tinha muito medo e pensava que iriam falar mal do projeto. Mas, tem acontecido o oposto e não esperava uma reação tão positiva à minha música. O apoio das pessoas e a preparação dos shows tem sido incrível. É um sonho constante. Quando lancei a página de Facebook da Surma, todo mundo perguntava: “Onde estão as músicas?”. Eu pensei que seria melhor encarar as coisas de forma mais séria e a partir daí as coisas têm evoluído bastante. Sinto que esse apoio se deve ao fato da palavra passar muito bem.
“Antwerpen” é um trabalho onírico, mas revela vários momentos diversificados e um bom sentido exploratório. Quando compôs as faixas inspirou-se espontaneamente ou procurou desenvolver ideias concretas?
Acho que o processo foi mais espontâneo, porque criei as músicas no momento. Imaginamos um barulho de flores e pegávamos as plantas, simulámos a percussão batendo o isqueiro contra o maço de cigarros, mas também utilizamos papel embrulhado ou sons de castanholas caindo no chão. O método foi muito genuíno. Eu compus o disco em parceria com o Casota Collective, bem como o Miguel Ferraz. Trabalhamos em equipe, colocando ou tirando diversos elementos, temos sons de todo o mundo (até temos um cachorro latindo) e quisemos explorar a vertente da voz. Nesse ponto, gravamo-la com uma qualidade muito boa, mas eu queria que tivesse ruído para dar um pendor lo-fi ao álbum. Escutamos o disco com os fones e sentimos esse som de fundo. Por isso, desenvolvemos o trabalho ao sabor do momento.
Assisti ao showcase na Musicbox e impressionou-me a forma intimista com que você conduziu o público ao seu universo particular…
Obrigado. O projeto Surma é das pessoas e eu não quis apenas lançar um disco, mas sim acrescentar-lhe um toque pessoal e intimista. Como era um show para a imprensa dei um pouco de mimo ao público. Fico contente por sentirem isso, porque é esse sentimento que eu quero passar às pessoas, ou seja, taparem a cabeça e entrarem nesse mundo comigo. Pretendia também dar um pouco de mim ao público que estava sentindo o momento em si próprio.
O disco é igualmente definido pela adesão à música eletrônica, mas “Nyika” tem uma pegada dançante mais vincada do que os outros temas, porquê?
Nessa canção parti com uma base sonora muito calma e o Rui Gaspar sugeriu que fizéssemos isso no triplo do tempo e gerou uma batida brutal. Como existiam uns sintetizadores de baixo suportando a faixa, resultou numa cadência dançante que nos agradou. Decidimos arriscar, não demos gênero nenhum ao disco nem procuramos seguir um roteiro e acho legal a Surma ser agitada para não ficar chata (risos).
Existe algum músico brasileiro que admire e gostasse de fazer uma parceria?
Sim, com a LaBaq (Larissa Baq). Ela esteve em Portugal há dois meses atrás, fazendo um tour e eu abri o show. É uma compositora muito boa que trabalha com loops, guitarra, voz e estudou percussão. Admiro-a muito e a nossa colaboração está seguindo, mas tem faltado tempo para concretizar a parceria. Revejo-me bastante nela, por ser autodidata, fazer tudo sozinha e não ter editora. Marcou shows na Rússia, França, tocou em vários países e é uma mulher de armas. Existe um festival no Brasil, o Sonora, ao qual ela esteve ligada e é imparável. Influencia-me artisticamente, mas também como pessoa. No fundo, essa associação também resulta do fato de fazermos uma música relaxante e agrada-me que na guitarra ela tenha influências brasileiras como Chico Buarque ou Caetano Veloso.
Você faz parte da nova cena musical de Leiria ligada ao selo independente Omnichord Records. Até que ponto este movimento se poderá impor em Portugal e no estrangeiro?
Nós vemos o selo como uma família e somos muito unidos. Isso é um passo importante para tentar uma aventura no exterior. Se tivéssemos competição ou invejas não saímos do mesmo lugar. Importa dizer que o First Breath After Coma já tocou na Alemanha e várias pessoas fizeram 300 quilômetros para ver o show. Julgo que com calma poderemos criar um nicho bom. O Hugo Ferreira (dono da Omnichord Records) trabalha de forma responsável, tem tudo bem definido com vista à internacionalização da Omnichord, dos músicos portugueses e também preside a plataforma Why Portugal, que opera nesse sentido. É mais importante criar a semente e plantá-la gradualmente do que dar um impulso grande, caindo no esquecimento pouco depois.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Hugo Domingues / Divulgação