por Marcelo Costa
Assim que a vitória de Donald Trump se confirmou em 2016, Juliana Hatfield pegou guitarra, baixo e teclados, escalou um baterista (Pete Caldes) e um engenheiro de som (Pat DiCenso) e entrou em estúdio para registrar estas 14 canções que nasceram como um jorro catártico de revolta. “Eu não estava planejando gravar um disco”, conta ela no Bandcamp (ouça o álbum na integra). “Mas as canções começaram a sair de mim, e eu precisava registra-las, senti essa urgência”, comenta. “Quase não entendo o que aconteceu no estúdio. Tudo fluiu rapidamente, suavemente”, completa.
Nascida musicalmente em meio a tempestade grunge dos anos 90 (seu belo debute, “Hey Babe!”, é de 1992), Juliana é responsável direta pelos melhores dois discos dos Lemonheads – tocando baixo e cantando em “It’s a Shame About Ray” (1992) e inspirando decididamente “Come on Feel the Lemonheads” (1993) – e imprimiu à sua carreira uma sonoridade grunge pop alternativa que nunca chegou a ser mainstream (embora tenha esbarrado), mas segue cult e repleta de grandes momentos em mais de 20 discos entre álbuns próprios e colaborações.
Para um mergulho na carreira de Juliana, tanto o álbum de estreia quanto “Become What You Are”, de 1993, assinado como Juliana Hatfield Three (e que cravou o single “My Sister” no número 1 da Billboard na parada Modern Rock Tracks), “Only Everything”, de 1995 (do qual saiu outro hit, “Universal Heart-Beat”), “Bed”, de 1998, a dobradinha “Beautiful Creature” / “Total System Failure”, de 2000 (incluindo uma versão pop guitarreia de “Every Breath You Take”, do Police) e “In Exilio Deo”, de 2004 são boas introduções – aliás, Courtney Love “emprestou” muito destes discos.
Após um disco com Matthew Caws, do Superchunk, em 2013 (“Get There”, do projeto Minor Alps), outro com Paul Westerberg, do Replacements, em 2016 (“Wild Stab”, do projeto The I Don’t Cares) e o primeiro álbum do Juliana Hatfield Three desde 1993 (“Whatever, My Love”, 2015), Juliana surge extremamente séria (como demonstra a capa), raivosa e incrivelmente pop neste “Pussycat”, desde já um dos melhores álbuns de toda sua carreira, que tem Donald Trump como inspiração, mas que se estende a todos os homens escrotos do mundo.
“I Wanna Be Your Disease”, a faixa que abre o álbum, avisa: “Quero te fazer se desculpar por todas as pessoas que você machucou, enganou e mentiu (…) / Por todo o mal que você fez na Terra”. Em “Impossible Song” ela assume: “Esses tempos contundentes trazem o pior em mim / Não gosto do que estou me tornando”. Na pop sixtie “You’re Breaking My Heart” ela sentencia: “Não há mais heróis”. Já “When You’re a Star” fala de homens que usam a fama para esmagar, estuprar e silenciar pessoas: “A lei está do seu lado”, ela lamenta. “Você é o pai da América / Pode fazer o que quiser (…) / Como pegar outra garota / Contra a vontade dela”.
Em “Good Enough for Me”, uma das mais diretas, Juliana desenha um quadro com aquelas pessoas que percebem a maldade, mas tentam aliviar (por interesse, inocência ou burrice): “Ele tira remédios de doentes / E não sabe soletrar muito bem / Mas sabe ler / E nunca matou ninguém pessoalmente”, diz a letra, que continua desenhando o personagem que muitos de nós conhecemos: “Ele não é psicopata / Ele está apenas um pouco louco / Eu costumo acreditar em suas mentiras / Porque ele é bom o suficiente para mim”, diz o refrão.
O disco segue com uma canção direta sobre o atual presidente dos Estados Unidos (“Short-Fingered Man”, terceiro single do álbum), uma sobre violência doméstica (“Touch You Again”), e uma sobre a mulher como objeto sexual (“Sex Machine”). Segundo single do disco, “Wonder Why” lamenta: “Me pergunto por que os alienígenas que pousaram no telhado me deixaram lá e não me levaram para o céu”. A questão climática, um dos desastres da administração Trump, é o tema de “Sunny Somewhere”. Já em “Kellyane”, o narrador se sente torturado pela mulher e define, escrotamente: “Você me deixa louco… como toda puta no ensino médio”.
O que dizer de “Heartless”, com órgão Farfisa saltando da melodia, guitarras sujas apitando e um refrão docemente pop embalando esta letra: “Como você pode julgar se você não tem autoridade? Como você pode dizer a verdade sem honestidade? Como você pode pregar sem acreditar? Como você pode ensinar se não aprendeu nada? Como você pode dar sem generosidade? Como você pode liderar sem ideologia? Como você pode ser justo sem qualquer decência? Como você pode trapacear sem dúvidas? Você é tão cruel”.
Se alguém até aqui tinha dúvidas sobre o tema do disco, Juliana escancara em “Rhinoceros”, cujas primeiras estrofes descrevem “Ele cheira carne apodrecendo / Ele está esmagando você / Ele é enorme / Às vezes você se sente como uma meretriz / Apenas feche seus olhos / Tente não chorar” para logo depois dizer: “Melania é seu nome / Ela é eslovena / Uma imigrante ilegal / Ele pagou para escondê-la / Ele gosta de jovens / Elas são mais complacentes”. No refrão: “A América está sendo fodida por um rinoceronte”.
Mantendo o tema pesado do álbum até seus últimos segundos, “Everything Is Forgiven”, a faixa de encerramento, é…. bem, melhor deixar a letra dizer por si mesma: “Ele é um maldito animal / E eu sou um pedaço de carne / Deus me perdoará por minha raiva, ódio e violência sangrenta e vingativa / Por todas as coisas que farei com ele / Porque não vou morrer vítima”, promete a personagem em um dos discos mais necessários do “pop” mundial em 2017, e que poderia funcionar, todo ele, como trilha sonora de “Handmaid’s Tale”, a série. Um álbum sério que não merece apenas aplausos, mas também atenção, respeito e reflexão, muita reflexão.
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
UAU!!!!
Coincidiu totalmente na tarde que estou ouvindo o It’s a Shame About Ray, após muitos anos, vir aqui e ver essa resenha.
Preciso ouvir!