por Marcelo Costa
Darren Aronofsky não é um diretor “fácil”. Nunca foi. Seu autoral filme de estreia, 19 anos atrás, contava a história de um matemático instável, de poucos amigos, que sofria uma doença rara (“Pi”, 1998); em seu segundo longa-metragem autoral (“Requiem For a Dream”, 2000), Aronofsky entregou um dos mais fortes filmes antidrogas já feitos levando os vícios de cada personagem (heroína, chocolates, beleza) a extremos assustadores; “A Fonte de Vida” (2006) foi seu primeiro grande fracasso, e com o tombo ele construiu dois sucessos: a poesia marginal dos losers em “O Lutador” (2008) e o pesadelo (indicado a cinco Oscars) de “Cisne Negro” (2010). O excesso de confiança levou a outro tombo, “Noé” (2014), e influenciou “mother!” (2017).
Se na época do primeiro tombo com “A Fonte da Vida” – que recebeu críticas “carinhosas” como “uma confusão metafísica” (Boston Phoenix), “irritante e equivocado” (Sight and Sound), e a melhor, “parece um álbum duplo de prog-rock, com pouco humor e muita pomposidade” (Independent) –, Darren optou por se recolher deixando o roteiro de (futuros sucessos) “O Lutador” e “Cisne Negro” nas mãos de outras pessoas, após “Nóe” (que nem foi um fracasso tão grande, ainda que o Guardian diga que “algo se perdeu na tempestade” e o Entertainment Tell tire sarro dizendo que “o livro era melhor”) Darren seguiu um caminho inverso: repetir o modus operandi (ele volta a escrever, produzir e dirigir em “mother!”) e levar tudo ao extremo.
Eis, então, a primeira característica de “mother!”: ele é um filme de extremos. Não à toa, o pôster acima, compartilhado no Twitter pelo próprio diretor, une críticas que elogiam o filme (de um lado) com as que o detonam (do outro). De uma trincheira artística, Darren Aronofsky observa (e parece se divertir com) a recepção de seu sétimo filme como diretor (o quinto em que ele assina o roteiro) apostando na provocação: ele não quer que o espectador saia da sala de cinema de maneira impassível, insensível aos 121 minutos projetados na tela branca. Ele quer que você ame ou odeie “mother!”, e independente da sensação que o filme provoque, Darren Aronofsky espera que o espectador “sinta algo” (mesmo que seja ódio).
Bom, há duas maneiras de apresentar “mother!” à você, caro leitor. A primeira, mais prosaica e sem grandes spoilers, esvazia a história, mas não deixa de soar interessante: um casal vive em uma grande casa que está sendo reformada e recebe a visita inesperada de um homem. No dia seguinte, a esposa desse homem aparece e, um tempo depois, após um objeto do dono da casa ser quebrado (saca a metáfora do teste da bomba atômica em “Twin Peaks”?), os dois filhos do casal visitante surgem e um crime acontece, desencadeando uma série de outros acontecimentos terríveis. Daí em diante, o que parecia uma trama tradicional de suspense ganha contornos extremos de surrealidade (“O Invasor” meet “Durval Discos”).
Ok, essa acima é a maneira “copo meio vazio” de enxergar “mother!”. A maneira “copo meio cheio” de ver o filme (com spoilers que mais aprofundam que atrapalham a história permitindo ao espectador mergulhar em uma segunda camada da trama) é: um casal vive em uma grande casa. Ele é Deus (Javier Bardem) e ela é a Mãe Natureza (Jennifer Lawrence). O homem que os visita inesperadamente é Adão (Ed Harris), que após ceder uma costela (numa cena em um banheiro) recebe, no dia seguinte, a visita de Eva (Michelle Pfeiffer). Seus filhos são Caim (Domhnall Gleeson) e Abel (Brian Gleeson), e o crime que ocorrerá será o primeiro homicídio da história da humanidade. Mais para frente haverá dilúvio, uma criança nascerá e morrerá…
Sim, é isso mesmo: Darren Aronofsky filmou a Bíblia em “mother!”, do Gênesis ao Apocalipse de São João, e o fato de “resumir” os 73 livros (para os católicos, 66 para os protestantes) do Antigo e Novo Testamento em 2 horas e 1 minuto de projeção talvez seja apenas um dos motivos da história se fragmentar enlouquecidamente e surrealisticamente após o segundo terço do roteiro. Apenas um dos motivos, pois, característica básica do cinema de Aronofsky: ele nunca sussurra, com ele é no grito quase todo o tempo, e essa superexposição aliada ao fato que muita gente que vai ver o filme só conhece o plot esvaziado do quarto parágrafo faz de “mother!” uma experiência assustadora, por vezes claustrofóbica, que gera repulsa e nojo.
Porém, a beleza de “mother!” (ela existe) está justamente na metáfora da metáfora. Darren utiliza o livro mais famoso da humanidade como inspiração para uma história que permite diversas leituras, como relembrar a trágica figura da mulher na história da sociedade, sempre a sombra do homem, usada, abusada, usurpada, violentada e destruída. “mother!” também é uma alegoria fantasmagórica sobre como a sociedade está acabando com a natureza (e, por consequência, consigo mesma). O filme também lança luz sobre o fanatismo religioso (em que pessoas estão dispostas a matar por um livro que prega o amor), o fanatismo capitalista (em que a ânsia pelo vender mais e mais não mede consequências) e o fanatismo narcisista da criação artística.
Numa camada mais profunda de leitura, “mother!” apresenta uma visão aparentemente crítica de Deus (tanto quanto das escrituras), muitas vezes soando um egocêntrico preocupado apenas consigo mesmo, em outras como a de um gênio criador que não educa, não repreende e não indica caminhos, que estará disposto a ceder seu único filho, vê-lo morrer, e perdoar, e seguir em frente aceitando a banalização de sua palavra, o consequente caos, e, por fim, o Armagedom, e começar tudo de novo, da mesma maneira, quantas vezes forem necessárias num teatro teimoso e triste, do qual somos atores condenados no berço – uma situação que remete ao personagem de Bill Murray no clássico “Feitiço do Tempo” (1993).
“mother!” é um pesadelo paranoico que começa com “Repulsa ao Sexo” (1965), passa por “O Bebê de Rosemary” (1968), ambos de Polanski, e se aproxima de “Apocalypse Now” (1979), de Francis Coppola, tentou resumir (!) o jornal britânico Guardian. É possível ainda traçar paralelos tanto com o sublime e terrível “O Anjo Exterminador” (1962), de Buñuel, quanto com “O Anticristo” (2009), de Lars von Trier, e as paisagens temíveis pintadas por Goya no interior de sua própria casa (hoje no Museu do Prado, em Madri, e reunidas na sala “Pinturas Negras”). Em entrevistas, Darren Aronofsky diz que “mother!” é um retrato do mundo moderno ameaçado por superpopulação, mudanças climáticas, políticos e guerras. “E é um conto sobre uma mulher que é convidada a doar, e ela se doa, doa e doa até que não tenha mais nada a doar”, disse.
Mais do que qualquer coisa, porém, “mother!” é um filme sobre a falta de amor no mundo. Com recepção crítica dividida, grandes atuações do núcleo central de atores e investimento praticamente pago em menos de um mês nos cinemas, “mother!” só não é mais polêmico (e mais sucesso) porque seu notável caráter bíblico (ainda que extremamente óbvio a primeira vista em ao menos duas passagens singulares – talvez mais –, uma delas, inclusive, com quebra da quarta parede) está muito bem inserido nas metáforas, que dificultam o entendimento de detratores incapazes de pescar sutilezas (saca os censores da ditadura, uma classe que está em voga no momento no Brasil?) tanto quanto engrandecem o filme em um segundo mergulho na sala de cinema. Violento, terrível e assustador, não veja “mother!” uma vez. Veja duas!
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.
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