por Marcelo Costa
“Capitão Fantástico”, de Matt Ross (2016)
Logo no começo do filme, o protagonista Ben Cash (Viggo Mortensen, indicado ao Oscar) leva seus seis filhos (entre 5 e 16 anos, aparentemente) para um treinamento matinal na selva visando incutir habilidades de sobrevivência na prole, que precisa caçar sua própria comida, acender fogueiras com gravetos e escalar montanhas, entre outras atividades incomuns. Não, o filme não se passa em uma época remota da história, mas nestes anos estranhos de Internet, junk food e consumismo acelerado. Ben e a esposa decidiram abandonar a sociedade e criar os filhos no meio do deserto do estado de Washington, educando-os com política de esquerda, filosofia e grandes romancistas. O cenário é poético e provocante: crianças em volta da fogueira lendo “Os Irmãos Karamazov” e “Armas, Germes e Aço”, discutindo “Lolita”, festejando o Noam Chomsky Day em vez do Natal e tocando canções num formato hippie como se fossem sobreviventes altamente politizados do fracasso do Verão do Amor. A coisa toda, porém, sofre um abalo quando a mãe dos garotos se suicida, e o road movie no que a trama se transforma oferece o tradicional choque de costumes que muitas vezes faz do cinema divertida galhofa, mas aqui funciona como crítica direta ao capitalismo (uma crítica solta no espaço sem argumentação profunda, vazia, mas, ainda assim, uma crítica). O diretor Matt Ross, que também assina o interessante roteiro, não tem respostas, e isso acrescenta charme a “Capitão Fantástico”, que se sustenta sobre incertezas tateando o caminho pelo qual as famílias devem seguir no mundo moderno. Essa busca é o grande mérito do filme, que oferece radicalização repleta de buracos não visando mostrar a falência das utopias de esquerda ou o vazio dos pensamentos de direita, mas sim tentar entender a família em um mundo hiper-conectado, difuso e sem foco, cujo o status quo político e econômico – na tentativa de organizar – desorganiza. Delicado em sua brutalidade, “Capitão Fantástico” oferece ao espectador muito mais do que se vê na tela.
Nota: 8
“Moonlight”, de Barry Jenkins (2016)
Indicado a oito Oscars (incluindo Melhor Filme e Diretor), “Moonlight” é uma das joias raras desta edição dos prêmios da Academia, repleta de filmes medianos condenados a papeis coadjuvantes na história. Com roteiro (também indicado ao Oscar) adaptado pelo diretor e baseado numa peça semiautobiográfica do jovem escritor Tarell Alvin McCraney, “Moonlight” é daqueles filmes tão maravilhosos em sua completude que escrever sobre torna-se uma árdua tarefa de esconde-esconde, pois quanto menos se sabe sobre sua história, mais ela irá surpreender. O plot básico, no entanto, não entrega muito: um garoto chamado Chiron tem como apelido “Little”, por ser pequeno, magro e tímido, o que o torna uma vítima rotineira dos valentões de uma escola de periferia de Miami, um território em que o bullying é uma prática tão comum quanto a venda de crack. E é exatamente um vendedor de crack que salva Chiron de uma possível surra: Juan (Mahershala Ali, de “House of Cards”, indicado ao Oscar) leva o pequeno garoto pra casa, e no dia seguinte o entrega para a mãe, a junkie Paula (Naomie Harris, também indicada ao Oscar), mais um peso que o garoto terá que carregar. Essa é apenas a primeira parte de “Moonlight”, e a previsão de desastre é constante. O espectador olha a tela esperando, com medo, o momento em que o roteirista irá, de surpresa, lhe brindar com uma facada sem dó no peito, deixando o sangue dos sonhos escorrer e esvaziar a alma, expectativa inspirada nas tragédias que brotam como ervas daninhas todos os dias na nossa triste rotina. O medo, descreveu Aldous Huxley em 1949, “é a própria base e fundamento da vida moderna”. Mas esse medo, porém, não é fruto direto do filme, que delicadamente fala sobre crescer e envelhecer a todo custo, como se não houvesse escolha (há?), lutando contra tudo e todos numa busca por sobrevivência e para ser… você mesmo. Nesse contexto, o medo é apenas um detalhe que transforma “Moonlight” em um dos grandes filmes do ano. Assista duas vezes e descubra os demais.
Nota: 9
“Manchester à Beira-Mar”, de Kenneth Lonergan (2016)
Manchester-by-the-Sea “é uma cidade de Massachusetts, Estados Unidos, conhecida por praias cênicas e, segundo o censo de 2010, com uma população de 5.136 pessoas”, avisa a Wikipedia. Lee Chandler viveu nesta pacata cidade litorânea, mas trocou-a por Quincy, do outro lado do Estado, uma cidade 20 vezes maior (que não chega a 100 mil habitantes), e lá trabalha como zelador em um conjunto de prédios. Sua vida simboliza o Purgatório de Dante, mas o espectador só perceberá problemas reais após uns 10 minutos de projeção, quando em um bar, Lee “decide” deixar de lado uma aparente sugestão de paquera para ser espancado por um grupo de homens (briga que ele mesmo causou). Dai em diante, a mão “drama” do filme irá pegar o estômago do espectador com todo carinho e iniciar um processo de sufocamento que não se encerrará com o final da película. Indicado a seis Oscars (os merecidos Melhor Filme, Diretor, Ator para Casey Affleck – como Lee – e Roteiro Original além de Coadjuvantes tanto para Lucas Hedges quanto Michelle Williams), “Manchester-by-the-Sea” é uma obra composta por delicadas camadas, cujo mérito maior do brilhante roteiro é virar as páginas suavemente sem entregar o que virá à frente, transformando o espectador em um refém do purgatório vivido por Lee numa cidadezinha dos Estados Unidos. “A carne é triste”, descreveu Mallarmé num poema de pouco mais de 100 anos chamado “Brisa Marinha”, que ainda fala em tédio e silêncio cruel, adjetivos que também explicam “Manchester-by-the-Sea”, um filme poderoso que mostra que a vida pode ser sim um fardo imenso. Michelle Williams está muito bem (em seus nem 10 minutos em cena), mas não tira esse Oscar (merecido) de Viola Davis. Já o jovem Lucas Hedges, com seus 21 anos, tem na indicação seu maior premio. Quem brilha (um brilho opaco) é Casey Affleck, que consegue carregar o martírio de seu personagem nas costas e, auxiliado pelo bom roteiro e por uma direção certeira, transforma “Manchester-by-the-Sea” em uma pequena joia de sofrimento.
Nota: 9
Oscar 2016
– Tom Ford carrega a mão no estilismo em “Animais Noturnos”. Filme podia ir mais longe (aqui)
– “A Qualquer Custo” fuça as entranhas do sonho americano destroçado pelo capitalismo (aqui)
– “O Lagosta” é daquelas obras sublimes que vão arrebatar o coração de gatos pingados (aqui)
– O sueco “Um Homem Chamado Ove” é um filme bonito e delicado (aqui)
– Apesar das arestas pontudas, “Toni Erdmann” é uma pequena joia cinematográfica (aqui)
– O brilhante “Campo de Minas” versa sobre humanidade em 101 minutos de suspense (aqui)
– Asghar Farhadi conduz a trama de “O Apartamento” com delicadeza e genialidade (aqui)
Oscar 2015
– “Ida” é uma complexa jornada de descoberta (tardia) de identidade (aqui)
– “Leviatã” é movido a vodka, desmandos, contradições religiosas e traições (aqui)
– Com roteiro bem construído, “Tangerines” tem na inocência sua maior força (aqui)
– Representante argentino no Oscar, “Relatos Selvagens” era uma obra em mutação (aqui)
– “Dois Dias, Uma Noite”, dos Irmãos Dardenne, supera vários filmes do Oscar (aqui)
– Tudo é intencionalmente exagerado em “Birdman”. E funciona brilhantemente (aqui)
-“Boyhood – Da Infância à Juventude” soa tanto um elogio à família quanto ao destino (aqui)
– “O Jogo da Imitação”: Alan Turing merece mais que uma homenagem torta (aqui)
– “Whiplash” é um tratado sociológico moderno (embalado numa bela trilha sonora) (aqui)
– “O Abutre” é o retrato de uma sociedade viciada na espetacularização da tragédia (aqui)
– “Foxcatcher” se arrasta em meio a clichês numa trama repleta de buracos (aqui)
– Badalado filme britânico do ano, “A Teoria de Tudo” é esquemático e chapa branca (aqui)
– Drama básico sobre doença, “Para Sempre Alice” é salvo por Juliane Moore (aqui)
– As atuações de Reese Witherspoon e Laura Dern fazem valer a pena “Livre” (aqui)