por Marcelo Costa
O rock é algo bastante interessante. Começou rebelde e proibido, coisa do demônio, de gays travestidos e de pélvis sacolejantes vetadas na televisão. Dai foi digerido pela massa, trazido para a mesa do jantar e apresentado aos pais, que, agora, não sentem a repulsa que outrora sentiram quando jornais questionavam se eles deixariam sua filha casar com um Rolling Stone – muito pelo contrário. E lá se vão alguns bilhões de microssegundos entre Led Zeppelin e Sex Pistols, U2 e Nirvana, Oasis e Strokes, Arcade Fire e Julia Holter, com o rock se revoltando e tentando soar instigante frente a um mercado voraz que compra rebeldia e a revende em adesivos de band aids e camisetas vagabundas. Neste sentido, o rock parece fadado a ser um subproduto enquanto artistas tentam se soltar das garras capitalistas da indústria preservando os últimos segundos de inocência – da coxia, o rap e o pop riem do martírio.
Um pouco do cenário do parágrafo anterior pôde ser vislumbrado no Bowery Ballroom, em Nova York, com duas promessas do mítico selo Matador dividindo duas noites sold out, com os 1.150 lugares (575 por dia) esgotados dois meses antes do show: com 21 anos, Lucy Dacus trazia a tiracolo a “crueza emocional” de seu disco de estreia, o ótimo “No Burden”, lançado de forma independente e relançado posteriormente pela Matador, e tinha o dever de aquecer a noite para Will Toledo e seu Car Seat Headrest, que viu “Teens of Denial”, seu décimo terceiro álbum aclamado tanto pela Rolling Stone (que deu quatro estrelas lembrando que assim “como os discos anteriores do Car Seat Headrest, ‘Teens of Denial’ evoca a estética indie dos anos 90” e compara Will Toledo a Courtney Barnett, dois jovens na selva cética do rock alternativo buscando algo em que acreditar) quanto pelo Scream & Yell (“um disco perdido de uma geração perdida”).
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De camiseta amarela e jeans na quinta-feira e shorts e camiseta preta na sexta, Lucy Dacus entrou antes, e sozinha. Começou a dedilhar a inédita, calma e bonita “Historians”, chamando a atenção da audiência com sua delicadeza. “Me chamo ‘Lucy Deicus’, mas pode falar Lucy Dácus que não fico ofendida”, comentou enquanto o trio instrumental adentrava o palco. “Vocês querer ver o Car Seat Headrest, né?”, perguntou em certo momento, e ante a resposta afirmativa brincou: “Eu também” (eles estão excursionando juntos). As ótimas “Troublemaker Doppelgänger” e “Strange Torpedo”, duas grandes canções de “No Burden”, começaram a virar o jogo a favor da guria, com o público sendo levado pelo ótimo som que saía das caixas. A inédita e inicialmente cadenciada “Timefighter”, com Lucy abraçada à sua guitarra, veio na sequencia mostrando um crescendo interessante, que arrancou aplausos do público.
A aparente timidez percebida no disco é bem disfarçada ao vivo, e mesmo a crueza emocional fica em segundo plano, já que Lucy canta dançando fofamente enquanto distribui sorrisos e demonstra estar curtindo o momento. O som que sua banda produz no palco é rock clássico, mas, ainda que tudo esteja no seu lugar (o guitarrista sensível, o baterista monstro, o baixista modelo Flea), exibe um frescor que cativa. Seguem-se “Dream State”, com Lucy levando a canção sozinha até a entrada da banda na metade do arranjo encorpando a canção, e a candidata a hit indie “I Don’t Wanna Be Funny Anymore”, que conquista definitivamente a todos. Ela então avisa que vai tocar a última e alguém grita: “Toca mais uma”. Outro pede: “Duas!”. Um terceiro manda :”Mais 10 canções!”. Ela não perde a bola levantada: “Ué, vocês não queriam ver o Car Seat Headrest?”. Uma pungente versão de “Dancing in the Dark”, de Bruce Springsteen, encerra a noite e coloca sorrisos no rosto de todo mundo.
Na metade do segundo copo de Sierra Nevada IPA, Will Toledo já estava prostrado na frente do palco com sua guitarra cantando, sozinho, a nova, bonita e ainda inédita “Way Down”, que adapta uma citação de “Hallelujah”, de Leonard Cohen, trocando o David do bardo canadense por Daniel (provavelmente em referencia a Daniel Johnston, uma das obsessões de Will) numa canção triste que ainda sugere Jeff Buckley. Will é um Buddy Holly indie dos tempos modernos: terninho alinhado, óculos fundos e rebeldia aparentemente tímida e controlada conduzindo um trio entrosadíssimo, que nesta noite iria apresentar 8 das 14 canções do celebrado “Teens of Denial” diante de um público que sabia absolutamente todas as letras de cor. Confiante, Will Toledo deu o start para a festa: “Vocês curtiram a Lucy? Ela é cool… mas nós somos melhores”. Partiu guitarradas.
Quantas bandas começam um show sold out em Nova York (com a lista de imprensa também sold out!) tocando um número inédito, voz e guitarra, e depois emendam um épico indie noventista pavementiano de quase 10 minutos de duração? Pesquisar. Após “Way Down” surgiu a porrada “Cosmic Hero” que, acrescida de citações da “Sweet Jane” de um certo cantor nova-iorquino (aliás, Ethan Ives, o guitarrista, parece um Lou Reed aos 19 anos), bateu nos 600 segundos com a plateia em alvoroço. A potente “Fill in the Blank”, que abre “Teens of Denial”, manteve os ânimos exaltados com seu break empolgante enquanto, na sequencia, a plateia gritava a letra de “Destroyed by Hippie Powers”, a canção em que Will se apresenta na letra: “O que aconteceu com aquele garoto gordinho que amava Beach Boys? Bem, eu matei aquele filho da puta, roubei o nome dele e tenho óculos novos”.
“Provavelmente eu nunca usei drogas, mas meu pai me chamou para conversar após ouvir essa canção”, brincou Will Toledo ao apresentar “(Joe Gets Kicked Out of School for Using) Drugs With Friends (But Says This Isn’t a Problem)”, que nesta noite ganhou citação de “Teenagers”, do My Chemical Romance. “Logo meu pai vai me chamar para conversar sobre essa também”, avisou (para diversão da plateia) antes de “Drunk Drivers/Killer Whales”, o single atual e a canção mais celebrada da noite. Duas outras canções de “Teens of Denial” foram deixadas para o “quase” final: primeiro “Vincent” e depois os 11 minutos da épica “The Ballad of the Costa Concordia”, com a banda saindo revezadamente até Will Toledo ficar sozinho no palco com sua guitarra, e despedir-se da audiência cantando “Ivy”, de Frank Ocean. Para o bis, dois presentes para “os fãs mais antigos”: “Cute Thing” (do disco “Twin Fantasy”, de novembro de 2011) e “Something Soon” (do álbum “My Back Is Killing Me Baby”, de março de 2011).
Angel Olsen, a queridinha atual, também tinha uma data sold out no Webster Hall, no dia seguinte, mas quem atraia todas as atenções do mundo pop em Nova York era Adele com seis datas seguidas de 20 mil convites esgotados no Garden. Ainda assim, Lucy Dacus e Car Seat Headrest honraram seus papeis no Bowery Ballroom, uma casa pequena e agradável que permite shows olho no olho, e não o distanciamento dos grandes estádios, quando quase tudo (inclusive a música) se transforma em cinismo e mercadoria. Aparentemente, para desespero de alguns, Will Toledo e seu Car Seat Headrest irá chegar lá (Lucy Dacus ainda é um segredo bem guardado, e também um mistério), mas não nessa noite, não nesse palco, não com esse público disposto a cantar abraçado com os amigos tanto quanto permitir um silêncio respeitoso nos números “calmos”. Ali, naquela pequena sala (como acontece em tantas outras pelo mundo), o rock, em particular, e a música, em geral, fez sentido. Talvez seja o maior elogio a ser feito para uma banda mostrando canções a um público.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne