por Renan Guerra
O cinema sempre reverberou os desejos e os pudores do público, desde o beijo de Deborah Keer e Burt Lancaster em “A Um Passo da Eternidade” (1953) até o falatório gerado em torno de “Garganta Profunda” (1972). O pesquisador, curador, crítico e professor de cinema Rodrigo Gerace se debruçou sobre a história do cinema e suas intersecções sexuais (e pornográficas) num trabalho que se tornou o livro “Cinema Explícito” (2016), lançado pela Editora Perspectiva e Edições SESC-SP.
Formado em Sociologia, Gerace escreveu a dissertação “O Cinema de Lars von Trier: Dogmatismo e Subversão”, em seu mestrado na UFMG, dando um pontapé para sua pesquisa seguinte, na tese de doutorado, que se transformou no livro recém-lançado. “Cinema Explícito” chega ao público num momento em que se acirram dois polos sociais muito fortes: uma liberação sexual cada vez mais forte (que havia sido freada no pós-AIDS) e um conservadorismo cada vez mais tacanho, que busca censurar e cercear liberdades políticas e artísticas.
Na conversa abaixo, Rodrigo conta um pouco sobre a produção do livro e, mais que isso, versa um pouco sobre essas dicotomias da atualidade, provando assim a necessidade de repensarmos o sexo e as representações no cinema e na arte. Confira abaixo!
“Cinema Explícito” surgiu de sua tese de doutorado, porém em qual momento você teve o ‘estalo’ de que esse era seu tema de estudo? E dentro da academia, ou mesmo na hora de publicar, você sentiu certo receio/repúdio com o tema?
O livro é uma adaptação ensaística de minha tese de Doutorado, concluída em 2011. Foi no meio do Mestrado, quando pesquisava os temas da castidade e transgressão no cinema de Lars von Trier, que tive a percepção do sexo explícito em narrativas do cinema independente. Desde os anos de 1990, dezenas de filmes trouxeram a abordagem explícita para falar de questões de gênero, política, afeto e melancolia. E, antes disso, desde as vanguardas dos anos 20-30, muitos filmes já refletiam sobre o “explícito” do sexo. Nunca senti receio em pesquisar ou publicar. Acho fundamental trazer à tona, de modo transparente, um estudo vertical sobre a história sexual do cinema, ainda mais em tempo sombrios como o atual em que há um esforço político conservador de evangelização do desejo. Este novo fascismo, adiantado por Pasolini em “Saló” (1976), se manifesta por meio do Estado, da família e da Igreja, que procuram alienar o desejo com normatizações servis a estas instituições. E o desejo sexual é experimental, fluído, não normativo. Por isso gosto muito da política dos corpos-falantes, em sua autonomia sempre processual do desejo, imerso na contrassexualidade da qual fala Paul B. Preciado. Nesta perspectiva é que precisamos de uma queerização das relações e seus binômios (masculino/feminino; homossexual/heterossexual, etc). Pois há em torno da ideia de sexo e sexualidade, como estudou Foucault, uma construção histórica que se atualiza no campo da regulamentação do desejo. Uma vez empoderada a militância queer do corpo-falante libertário, podemos desconstruir tais noções, reinventá-las em novas identidades não binárias. Isso também vale para a noção de obscenidade, pornografia e erotismo, que são critérios culturais mutáveis com o tempo. Se a ideia de pornografia até os anos de 1990 aproximava-se mais da ideia de excitação, hoje, novas experimentações pornográficas questionam a função política da obscenidade diante do status quo. A partir deste olhar, notei que na história do cinema sempre houve adesão ou subversão dos discursos morais em torno do sexo em diversos períodos. Percebi que em cada época e sociedade, a abordagem sexual teve diversas manifestações, interdições, censuras, transgressões. Mergulhei no esconderijo da pornografia para verificar como o efeito obsceno ancorou-se diante do status moral das sociedades (lembrando que até 1969 era crime fazer e exibir pornografia). Em cada momento, isto ou aquilo foi tido como obsceno, pois obscenidade é um critério cultural, mutante de acordo com as normativas e transgressões diante do sexo, do corpo e das sexualidades. Um beijo na boca, por exemplo, já foi tido como pornográfico no cinema mudo.
O diretor Lars von Trier foi um propulsor de sua pesquisa. Como você acredita que a obra do dinamarquês reverbera a nossa relação atual com o sexo no cinema?
Os filmes de Lars von Trier são a síntese do discurso sexual na contemporaneidade pois trafegam da moralidade à transgressão, da castidade à profanação, da saturação ao julgamento, do soft porn ao hard core, do machismo ao empoderamento – temas que servem como metáfora para falar da condição existencial humana. O cineasta dinamarquês embaralha tudo num universo maniqueísta, de algozes e vítimas, operando uma transgressão burguesa, normativa. “Ninfomaníaca” (2013) reverbera isso: transgressor só no discurso, pois coloca a abordagem sexual no âmbito do segredo e da confissão, dotando-o de culpa cristã. Daí tudo que se extravasa para além desta lógica é por sua vez subversivo, mas não uma subversão radical; trata-se de uma transgressão gourmet para os moralistas.
Agora, entrando no caráter histórico de “Cinema Explícito”, você fez uma busca quase de garimpo da sexualidade no cinema, você chegou a contabilizar o número de filmes que assistiu? Houve aqueles momentos em que você mesmo se sentiu surpreendido ou ruborizado pelo que encontrou no caminho?
Pesquisei centenas de títulos, desde o pré-cinema até produções contemporâneas. Vi muito pornô produzido no período silencioso, desde 1905 até os anos de 1920, que são bem divertidos e até mais ousados que os atuais. Verifiquei muitas obras de vanguarda, experimentais. Tive boas surpresas ao descobrir pornôs estilizados de Man Ray, Andy Warhol, animações pornográficas de 1929, pornô experimental sadomasoquista de 1922, entre tantas outras maravilhas. Gostei muito de filmes contraculturais dirigidos por mulheres na década de 1960. Como pesquisei do cinema mudo ao falado, do mainstream ao independente, da vanguarda ao underground, do new queer cinema ao circuito independente, da pornografia tradicional às alternativas, vi de tudo um pouco. Ao mesmo tempo em que via um Godard, assistia ao PornTube, Brasileirinhas, etc. Tudo é importante. Não dá pra ter uma visão romantizada do pornô, só focando um lado. Há variações enormes, o que existe são pornografias (no plural mesmo), das mais experimentais contemporâneas (arthouse porn, queer porn, pornô feminista, etc) às mais caretas e industriais. Sem contar os filmes de ficção que lançaram um olhar pornô em narrativas políticas com sexo explícito. Ao mesmo tempo questiono o porquê disso ou aquilo ser taxado como pornográfico ou não-pornográfico.
Sempre que se fala em sexo no cinema, as pessoas tentam codificar essas representações dentro de quesitos como “erótico” x “pornográfico” ou “artístico” x “vulgar”. Na hora de construir a sua pesquisa, você passou por inúmeras dessas nomenclaturas, agora, que o livro já faz seu caminho próprio, você ainda faz esse tipo de distinção ou considera isso algo ultrapassado?
Na construção histórica da sexualidade sempre houve o esforço, especialmente pelo poder médico-legal-religioso, em categorizar o não-categorizável: o desejo e sua expressão nas sexualidades. O cinema também aderiu a esta normativa de classificação, principalmente após os anos de 1960, numa tentativa de organizar isso ou aquilo como erótico ou pornográfico, soft ou hardcore. Tudo isso são criações culturais para engavetar a expressão do desejo, que é livre. Tais polos são falsos, simbólicos, construídos a partir dos critérios de ordenação e transgressão do obsceno nas sociedades e na indústria cinematográfica. Embora etimologicamente distintos, erotismo e pornografia versam sobre a mesma coisa: prazeres e o desejo sexual. Ambos são critérios subjetivos, morais. O esforço em delimitar a configuração visual do sexo em erótica ou pornográfica também é o desejo de limitar a pluralidade da expressão sexual, de categorizá-la em gavetas normativas.
Apesar de toda a liberação sexual, ainda temos muita caretice no cinema, especialmente no cinema comercial, você percebe que há uma real busca por essa liberação ou vivemos um momento de retração e conservadorismo? Aliás, apesar de avançarmos no cinema, o Brasil ainda vê debates acalorados sobre a representação do sexo na TV (vide a tão falada cena de sexo gay da novela “Liberdade, Liberdade”, da Rede Globo), mais um ponto de conservadorismo do público.
O cinema comercial, bem como a televisão brasileira, sempre sublimou o sexo na forma implícita. O casal começa a transar e a cena é cortada para o café da manhã. Vivemos avanços e retrocessos: por um lado há uma militância queer empoderada sobre questões fundamentais de gênero e identidade sexual, e, por outro, há um conservadorismo medieval que busca castrar direitos humanos básicos. Censurar o sexo é o primeiro passo para censurar tudo. O público de modo geral é conservador, pois teme ver o sexo como ele é: explícito. As pessoas se incomodam com representações explícitas porque elas apresentam o sexo fora de uma esfera burguesa da privacidade, da intimidade. Quando isso é mostrado de modo transparente em um filme de ficção, o público entra em desespero numa tentativa de ordenar àquelas imagens sexuais dentro de um novo contexto não necessariamente pornográfico. O Brasil, ainda que seja um país pornô, vive, de modo geral, um pânico do orgasmo e dos prazeres explícitos, reiterando tabus, machismo e homofobia, infelizmente. Mas creio na potência do empoderamento que estamos construindo contra tais normativas.
Você percebe as representações cinematográficas como retratos das nossas mudanças sociais? Ou, em contrapartida, elas servem como espaço de ruptura para essas mudanças?
A ideia de representação é cultural, pois se concentra na dependência histórica em torno da ideia de arte, realismo, erotismo e pornografia. Não dá pra afirmar que um filme revela exatamente como uma sociedade se pensa sexualmente, até porque isso limitaria a compreensão aliada ao ponto de vista deste ou daquele realizador/a. E todo filme é ideológico em alguma medida. É possível termos noção dos padrões discursivos em torno de sexo e sexualidades pelo cinema. Se as pornochanchadas riam tanto de sexo, é porque algo social ali reverberava em forma de moralismo. Se a “Lolita” (1962) do Kubrick causou calafrios na família tradicional, é porque o tema revelava tabus. Se “Love” (2015) do Gaspar Noé, com sexo explícito em 3D, quase foi sessão da tarde num cinema alternativo em SP, é porque hoje a revelação de “sexo explícito com contexto” já está mais domesticada no campo das artes. Se a França censura agora “O Anticristo” (2009) e “Azul é a Cor Mais Quente” (2013), isso mostra como o país retrocedeu em sua postura libertária. O mesmo vale para o indicativo “avisado” nos tickets de “Praia do Futuro” (2014): o homoerotismo presente no filme revelou a homofobia machista com a qual o Brasil o recebeu. É o contexto moral, cultural, que sinaliza possíveis variações de valoração do obsceno como escândalo ou transgressão. E, o cinema, antenado nisso, pode romper ou aderir aos discursos e convenções. “É o olhar que torna uma obra obscena, e não a obra em si mesma. Dito de outra maneira, tudo gira ao redor daquilo que se vê (ou se quer ver) e não daquilo que se mostra”, diziam os pesquisadores Ramon Freixas e Joan Bassa.
O sexo explícito já possui caráter de arte em muitos festivais, ao mesmo tempo em que temos uma era de muita pornografia, de ‘revenge porn’ e na qual as representações gráficas do sexo fazem parte do nosso imaginário básico. Você consegue vislumbrar um futuro para o sexo no cinema? Há novos caminhos a serem desbravados dentro dessa seara?
Existem várias produções que apresentam novas formas de encarar e representar o sexo para além daquelas imagens já legitimadas pelo mainstream. Há o pornô convencional, mainstream, e há todo um outro universo pornô que redimensiona a valoração de obscenidade para apresentar e questionar critérios, proposições. Desde os anos de 1990, após a onda conservadora que moralizou o cinema, muitos filmes e tendências têm enfrentado o moralismo evangelizador do desejo com uma militância política explícita: do New Queer Cinema, que empoderou estereótipos considerados incômodos, às obras do cinema independente, todas apresentaram novas imagens de visibilidade do sexo, gênero e identidade com propósitos narrativos distintos daqueles comuns ao mainstream. No Brasil, o Coletivo Surto e Deslumbramento tem feito um trabalho provocativo interessante; o SSEXBOXX também, com curtas e docs queer de empoderamento e discussão sexual, especialmente voltados para a visibilidade trans. Há ainda todo um circuito de cineastas independentes que ousam em estéticas e abordagens. Acho que hoje em dia os curtas-metragens têm sido mais interessantes que os longas, pois eles têm questionado de modo mais enfático a transfobia, o machismo, a hetero e a homonormatividade. Vi esses dias uns curtas/doc que gostei bastante: “Bichas”, de Marlon Parente; “Corpo Manifesto”, de Carol Araújo; “Leve-me Para Sair”, do Coletivo Lumika, entre outros. A post pornografia, aliada às tendências dos porn studies e do pornô feminista, também tem apresentado obras que reapropriam os discursos marginais e as sexualidades marginalizadas. O cineasta Bruce LaBruce, que gosto muito, mentor do queercore, produz longas que transgridem tanto a hétero como a homonormatividade.
– Renan Guerra é jornalista e colabora com o sites You! Me! Dancing! e Bate a Fita