por Pedro Salgado, de Lisboa
A simplicidade, inteligência e o sentido de humor do entrevistado nem sempre originam uma conversa produtiva. No caso de Samuel Úria, essas qualidades adquirem um significado especial, porque traduzem uma forma aberta de se expressar sobre a sua música e de outros colegas de profissão, tal como a sociedade em geral. Enquanto bebemos uma água e um café na esplanada de um conhecido pátio lisboeta, questiono Samuel sobre o título do mais recente trabalho e dos seus vários significados. “Para além de ‘Carga de Ombro’ ser uma expressão ligada ao futebol, existe um lado de investida e carga, mas também sugere algo pesado e permite fazer uma brincadeira ou aparentar seriedade”, explica.
Em “Carga de Ombro”, a autoralidade vincada de Úria e o apuramento da sua prosa constituem as notas dominantes. Musicalmente, as influências de Elliott Smith, Johnny Cash e o pop saltitante dos Clã são complementados por uma vibração lo-fi resultante da utilização de gravações caseiras. O blues-gospel “Dou-me Corda”, inspirado num disco de espirituais negros dos anos 40, sobre os trabalhos forçados dos prisioneiros no sul dos Estados Unidos, revela o lado selvagem de alguém que é branco e gostaria de ter as capacidades vocais dos negros. “Procurei transcender esse aspecto com elementos rítmicos, guitarras rasgando e apostei numa sonoridade repetitiva, permitindo que os músicos criassem algo diferente e a canção se aguentasse”, conta.
Durante a gravação e nos shows de apresentação do álbum, Samuel Úria contou com a participação dos ex-integrantes d´Os Pontos Negros. “Eles trouxeram a noção de arranjo não planejado e os jogos de sons para as minhas canções e esses fatores manifestaram-se com solidez no disco”, conta. Outra característica que Samuel admira num músico é o fato de ele estar mais próximo do ser humano comum e reconhece esse atributo a Bruce Springsteen. “Quando somos naturais corremos o risco da banalização ou de colocar demasiada profundidade nos temas, mas ele conseguiu a dose perfeita e fez trabalhos superpopulares”, refere.
Se a estrofe “Aperaltado alternativo a aspirar o pop” (de “Dou-me Corda”) simboliza a falta de plenitude musical e a sua insatisfação por ter rejeitado o pop alternativo dos anos 90, a faixa roqueira “Repressão” exibe um sentimento mais profundo, reclamando contra o protesto vão ou censurando o sentido crítico que é definido por algumas pessoas em fóruns da Internet. “Essa inconsciência na mudança da sociedade é perigosa e cansa-me, daí que eu ironize e a melhor forma de descomplicar o caminho para o abismo é fazer uma canção delicada”, conclui. De Lisboa para o Brasil, Samuel Úria conversou com o Scream & Yell. Confira:
Quando você começou a gravar “Carga de Ombro” havia um conceito sonoro pré-definido ou as canções foram surgindo gradualmente?
Desta vez levei o disco bastante preparado ao estúdio e isso se deve, sobretudo, ao trabalho de produção que foi muito diferente relativamente aos outros álbuns. Nos discos anteriores, eu chegava com um rascunho muito definido para a banda e o produtor, eles escutavam o meu produto final e ajustavam alguns detalhes. O Nelson Carvalho (produtor de “O Grande Medo do Pequeno Mundo”, de 2013) trabalhou principalmente o som daquilo que escolhi. No trabalho atual, pela primeira vez, mostrei os esboços iniciais ao Miguel Ferreira (produtor do disco e tecladista dos Clã) até para perceber onde se poderiam cruzar as nossas linguagens. Na maioria das músicas, o Miguel procurou libertar uma característica identitária minha, ou seja, ele não se sobrepôs nem deu um cunho autoral ao seu trabalho, mas arrumou os meios necessários para aperfeiçoar os meus defeitos e potencialidades. Quando cheguei ao estúdio, o objetivo foi passar para a fita ou computador aquilo que tinha sido um trabalho de meses e definir como seria a continuação do processo. Como existiam muitas coisas para fazer e este disco tem mais elementos, por uma questão de economia de tempo, era necessário que tivesse existido um planeamento prévio.
No disco, você abordou o pop, rock, romantismo e algumas canções espirituais. As várias intensidades do álbum são um convite à viagem ou funcionam como uma tentativa de agradar a diferentes públicos?
Está mais relacionado com o lado da viagem, na medida em que tentei reproduzir alguns dos discos que mais me marcaram, sobretudo álbuns de autores e não tanto de bandas. Normalmente, os grupos são constituídos por elementos que tocam os seus instrumentos e existe um espaço grande na musicalidade, mas a sonoridade está refém dessas quatro pessoas que fazem música daquela forma, embora eu ache legal essa uniformidade. Por outro lado, os discos autorais que mais me fascinam são aqueles que dentro do mesmo trabalho conseguem criar imensos universos, que nos fazem viajar, que existam desnivelamentos entre as canções, para que não fiquemos embalados e ainda assim exista um lado conceitual e sonoro que consiga ligar todas as canções, mesmo que elas sejam muito diferentes. Não tenho pretensões que esse sentido conceitual chegue às pessoas, porque elas podem nem estar interessadas no que quero dizer e podem gostar apenas da música de uma forma mais passageira. Mas, para mim, era importante reconhecer essa noção. O caminho ideal passa por criar muitos universos, perceber que existe um ponto comum nas canções e criar um fio que entre na primeira faixa, junte as outras e no final ter um colar com as pedras preciosas de tamanhos diferentes.
Na apresentação do álbum, no Teatro São Luiz, você exibiu uma amplitude sonora invejável com dois tecladistas, dois bateristas e um coro de oito elementos. Posso concluir que foi uma tentativa sua de replicar a grandiosidade de alguns temas do álbum?
Sim, sobretudo isso. Por um lado, existe aquele fato muito antigo e comunitário da FlorCaveira de ter muitos amigos no palco. A maior parte das pessoas que lá estavam tem uma camaradagem que transcende a música. Poder contar com eles estimula a amizade e reflete-se também na música que eu levo ao público. Também existe um lado celebratório. Mais do que debitar as canções ou reproduzir um disco comemoram-se as músicas que não são só minhas e acabam por pertencer à assistência. Ao trazer os amigos para concretizar essa transferência é uma forma de agradecimento por fazê-lo com pessoas em quem confio. Por outro lado, também pretendia que os shows não perdessem a amplitude e grandiosidade sonoras que estavam presentes no álbum. Nesse sentido, ter mais gente, não descorar as seções rítmicas e a parafernália de vozes que estão no disco era um aspecto muito importante. Como os concertos de lançamento do disco em Lisboa e no Porto correram bem e tive boas reações na mídia, isso criou uma exigência para que eu reproduzisse esse aparato em qualquer atuação num teatro ou festival. Nem sempre é possível fazê-lo, por questões logísticas ou de cachê, mas sempre que for possível gostaria de continuar nesse formato.
Gostou de participar no tributo aos Paralamas do Sucesso do Scream & Yell?
Adorei participar nesse tributo. Aliás, “Vital e sua Moto” é a faixa extra da edição digital do meu novo disco. Apropriei-me dessa canção de uma forma pessoal e inesperada. Mas a minha gravação coincidiu com a morte do ex-baterista Vital Dias, adquirindo uma toada de homenagem, de pessoas olhando para cima, lembrando uma personagem que já esteve conosco. Não o conheci, mas de certa forma ele me marcou. Fiz questão de fazer a minha versão em casa, onde tenho poucos meios de gravação propositadamente. Gosto que as canções tenham esse ambiente caseiro e de escritório, com microfones e guitarras ruins. Essa autenticidade também define o período inicial da FlorCaveira em que recorremos ao lo-fi ligado ao punk, mas não só. Globalmente, misturei a minha essência com a substância da canção e fiz uma homenagem aos Paralamas do Sucesso sem investir no ska, do qual eu gosto bastante. Julgo que resultou numa versão agridoce, contemplativa e próxima do meu primeiro disco (“O Caminho Ferroviário Estreito”, de 2003). Recebi muitos elogios e felicitações até de pessoas que nem conheciam a música. Foi prazeiroso reler uma canção dessa instituição que são os Paralamas. Quanto maior é a responsabilidade, mais compenetrado fico relativamente ao trabalho que tenho de desenvolver.
Pretende colaborar em novos projetos ou desenvolver parcerias com músicos brasileiros?
Estou absolutamente aberto a essa possibilidade e pretendo aceitar alguns convites. Em 2015 colaborei com o Wado à distância e resultou num show. Quero retribuir e fazer algo com ele no futuro. Para além disso, estamos sendo invadidos, no bom sentido, por músicos brasileiros que vêm para Portugal, ficam cá muito tempo e fazem grandes tours. Tive a sorte de conhecer artistas como o Tatá Aeroplano e pelo que sei esses intercâmbios vão aumentar. Eles sentem-se acarinhados aqui e nós temos boas condições para gravarem discos e trabalharem cá. Acho que me vou aproveitar disso e serei guloso no estabelecimento de parcerias (risos). Sou um admirador da música brasileira e da nova cena, que é muito respeitosa da sua tradição e estou maravilhado com a reciprocidade mútua. Atualmente está florescendo uma relação entre a música dos dois países, acho que as linguagens se podem aproximar mais e Portugal está se aproximando do Brasil na forma como está trabalhando e estendendo a língua.
Acredita que poderá alcançar um público mais alargado com o destaque que você tem recebido atualmente?
O público que tenho conquistado é sempre uma surpresa para mim. Uma das coisas que mais me surpreende é a possibilidade de chegar às pessoas, não só pelas canções que canto, mas também pelos temas que escrevo para outros artistas. Quando sei que António Zambujo e Miguel Araújo lotam o Coliseu de Lisboa tocando músicas minhas, que a Ana Moura atua no estrangeiro e tem uma canção escrita por mim, entendo que não estou confinado ao meu trabalho individual. Como tenho um lado autoral nos meus discos, se quiser fazer um álbum desastroso também tenho essa possibilidade. Esses fatos, deixam-me numa posição bastante confortável e sinto-me completamente grato com a liberdade que alcancei.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui
– Fotos por Rita Carmo. Conheça o trabalho: http://ritacarmo.blogspot.com.br/
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– Samuel Úria: “O maior favor que faço à minha música é não premeditá-la demasiado” (aqui)
– Um dos grandes discos de 2013, “O Grande Medo do Pequeno Mundo” (aqui)
– Ouça: 15 canções do pop português (aqui) e uma playlist chamada Tugas (aqui)