Texto e fotos (de celular) por Marcelo Costa
“A música brasileira morreu”, bradam filósofos, sociólogos e articulistas em busca de atenção. O rock nacional desapareceu, dizem eles. No Top 200 das canções mais tocadas no Brasil nesta semana, apenas duas bandas de róque: NX Zero, com a romântica “Meu Bem”, e Malta, com a terrivelmente brega “Dona da Voz”. Neste cenário dantesco, bem-aventurados oferecem seus ouvidos puros a sertanejos universitários, breganejos, arrochas e Anittas, lembrando uma cena hilária de “One, Two, Three” (1961), comédia impagável de Billy Wilder em que um comunista é torturado brutalmente com a audição repetida de “Era Um Biquíni de Bolinha Amarelinho”. Será o fim do mundo musical, Benedito?
No mundo moderno, dominado por grandes conglomerados, que distribuem vírus para lucrar com vacinas, a informação se tornou um bem bastante valioso. Era uma vez o tempo em que, sentado em um confortável sofá bebendo uísque e esperando a morte cheia de dentes chegar, o pobre ouvinte apreciava no rádio o que de melhor a produção musical de sua época tinha a oferecer. Agora é preciso se movimentar, ir atrás da informação, sair de casa, do conforto do lar (e da redação do jornal) para buscar o novo. Desta forma, em apenas um fim de semana, o Festival DoSol, em Natal, ofereceu argumentos de sobra para combater todos aqueles tristes desinformados que dizem que a música brasileira, no geral, e o rock, em particular, morreu.
Principal vitrine musical do Rio Grande do Norte, o Festival DoSol ampliou suas garras neste ano estendendo-se para 13 outras cidades além da capital Natal oferecendo mais de 200 shows de artistas que, no mundo do articulista desinformado, não existem, pois não tocam na rádio e não aparecem na TV do Plin Plin, ainda que 4 mil pessoas (o público presente na edição de Natal do Festival DoSol) possam contesta-lo. Entre os dias 06 e 08 de novembro, a Rua Chile, no tradicional bairro da Ribeira, em Natal, recebeu mais de 70 shows divididos em cinco palcos. Abaixo, um pouco do que aconteceu em cada dia do evento.
Na sexta-feira, uma programação mais curta dava boas vindas aos interessados. No galpão do Centro Cultural DoSol, os locais do Ruído de Máquina mostraram que ainda estão em busca de sua sonoridade, e que tem um longo caminho pela frente. O mesmo não pode ser dito do The Sinks, uma banda festeira com muito potencial. Projeto que existe desde 2006, a formação atual do trio une o potiguar Anderson Foca (Camarones) no baixo, o paraense João Lemos (Molho Negro) na guitarra e o goiano Edimar Filho (Black Drawing Chalks) na bateria, e o show, que marca o lançamento do EP “Celebrity War”, foi alto e divertido. Canções curtas, riffs fortes e até citação de música do Weezer entram em cena.
Lê Almeida ofereceu space cockies à plateia, e também um show conciso que mostra sua boa nova fase, com canções mais longas e experimentais, sem abandonar o espírito guitar band. Quem recebeu a melhor acolhida da noite foram os paulistas do Aeromoças e Tenistas Russas, que conseguiram uma interação bacana com o público, que entrou na vibe da banda e dançou as canções do recém-lançado “Positrônico”. Na sequencia, Marcelo Colares e seu Cigarettes em formato quinteto indo do disco de estreia, de 1996 (com “Beauty Of The Day”), até o mais recente álbum, “The Wast Land” (2015) num show desencanado e agradável. Para fechar, a sensação local Fukai fez um show competente com elementos de reggae, surf e rock.
No segundo dia do festival começou a maratona de shows. O formato é excelente: com a Rua Chile fechada em cada ponta do quarteirão, o público tinha a seu dispor quatro palcos montados em galpões (de 200 pessoas o menor até 1500 no principal) e mais um container estiloso no meio da rua. O cenário era completo com um longo estande de independentes vendendo CDs, vinis, fanzines e camisetas, entre outros badulaques, mais um quiosque com hambúrguer artesanal e outro com bebidas. A questão, como em todo grande festival, era: o horário de vários shows se chocavam, o que obrigava uma dedicada escolha pessoal (o que fez com que eu, por exemplo, perdesse Aláfia, um dos shows badalados do evento).
A maratona pessoal começou no Palco Principal com a Moloko Drive, banda de Paolo Araújo, ue entre 2002 e 2010 esteve à frente da Bugs, importante nome do cenário potiguar. Abrindo o dia para um público pequeno, o quarteto fez um bom show pesado (com ecos de stoner). Na sequencia, uma boa surpresa vinda de São Luís, no Maranhão: Soulvenir, quinteto com ecos de Muse, Radiohead, alfinetadas de eletrônica e vocal com dreads, muita informação, mas um bom show. No palco do Galpão 29, os sixties marcaram presença com o ótimo The Bop Hounds. No Palco DoSol e com disco recém-lançado, o quarteto Mundo Alto, de São Paulo, entrou com camisa de times locais (América e ABC) e muita garra para um show eficiente, na linha fina que separa o pop do indie. De volta ao palco principal, já com um bom público, a Carne Doce confirmou sua posição de uma das principais bandas da nova cena goiana.
Enquanto isso, no palco do container, a ótima guitar band The Automatics lançava novo álbum, “Diagramma”, e exibia 14 anos de bons serviços prestados ao rock num dos shows destaques do dia. Voltando ao Palco DoSol, outra ótima banda, Aeroplano, de Belém, mostrou-se mais pesada do que no Festival Se Rasgum, em 2014. De São Paulo, a Marrero tentava angariar fãs com seu “rock de roqueiro”, mas se sobra testosterona, falta charme. O mesmo pode ser dito do Muddy Brothers, outro adepto do “rock de verdade” do século passado, com berros que nem Robert Plant ousa dar mais. Duas bandas competentes no que fazem, mas que não me dizem nada. Decepção mesmo foi Rico Dalasam, num show que não engrenou em momento algum, ficando longe da apresentação consagradora de Rapadura Xique-Chico em 2014.
Os grandes destaques do segundo dia foram (Aláfia, quem viu, garante!) Camarones Orquestra Guitarristica, Móveis Coloniais de Acajú e Thiago Pethit. Uma das bandas que mais tocam no país (no ano passado foram mais de 100 shows e a marca pode até já ter sido batida em 2015), a Camarones mostrou aquele elemento de entrosamento de palco que só se consegue na estrada. Acrescidos do (novo/velho) guitarrista Leo Martinez, a banda da casa fez um show alto, empolgante e festeiro. Demorou duas músicas para que Anderson Foca (guitarra) e Ana Morena (baixo), organizadores do festival, se desligassem da correria extenuante da produção e, no palco, comandassem um baita show de rock instrumental. Diversão garantida.
Diante de um galpão DoSol absolutamente tomado, Thiago Pethit fez uma apresentação consagradora em outro momento inesquecível do DoSol 2015. Vários amigos já haviam buzinado na minha orelha que os shows de Pethit na turnê que divulga o álbum “Rock’n Roll Sugar Darling” (2014) estavam poderosos, o que foi confirmado no DoSol, e não só por sua excelente presença de palco e pela ótima banda que o acompanha, mas principalmente pela cumplicidade do artista com seu público, que cantou, gritou e fez declarações de amor, em momentos de histeria dignos de rock stars. Thiago fez de tudo no DoSol: deu mosh sobre a galera, beijou um fã no palco e foi beijado por outra fã num show que transpira rock’n roll.
Ainda passando pelo processo de (um bem-vindo) amadurecimento do repertório, dois anos após lançar o suave e climático “De Lá Até Aqui” (2013), o Móveis Coloniais de Acajú continua com o dom de emocionar ao vivo. Arrebatando o maior público do dia, o grupo de Brasília mostrou um set list atual muito bem balanceado entre seus três álbuns, e que inclui até um cover de “A Menina Dança”, d’Os Novos Baianos. Entre os grandes momentos estão “Campo de Batalha” (com importante discurso apoiando a tag #meuprimeiroassedio), “Perca Peso”, “Cão Guia” e, claro, “Copacabana”, com direito a roda e tudo mais.
O segundo “dia”, porém, ainda não tinha acabado. A 1h15 da madrugada havia Mahmed num bom show instrumental no palco do Galpão 29 e a previsão de sacode e bate coxas com uma das estrelas independentes do momento, o duo alagoano Figueroas Lambada Quente, que prometia animar os afoitos até o sol raiar. O cansaço, porém, se fez mais forte, e enquanto eu partia para o hotel em busca de banho, cama e Dorflex, uma multidão sacolejava ao som de Givly Simons & Dinho Zampier dançando e cantando hits como “Fofinha”, “Lambada Quente” e o hino “Melo do Jonas”, que superlotou o palco, fechando em alto astral o sábado do festival DoSol (já perto da manhã de domingo).
A diversidade musical do segundo dia do festival deu lugar ao esporro sonoro no domingo. E a maratona não poderia ter começado melhor: saindo de dentro de uma betoneira (aprendi, Marcos Bragatto) melado de barro, mas de salto alto branco, tapa sexo e máscara gutural, o vocalista Juão Nin arrastou o público para o show performance de sua banda, a Ak-47, hard metal ousado com letras em português (eles acabaram de lançar o álbum “Anemola”). Também com álbum novo na praça, “Neckbraker”, a violentíssima Monster Coyote, da desértica Mossoró, fez um show alto e ensurdecedor que os credencia para os melhores palcos de rock pesado dos EUA e Europa. Outra banda pronta pra gringa é o potente quarteto feminino Girlie Hell, de Goiânia, também lançando novo disco, “Till The End”, que ganhará edição via Monstro Discos.
Do Paraná, a Water Rats promoveu uma ciranda punk no palco principal enquanto os suecos do The Fume mantiveram a honra do rock do país intacta (The Hives agradece). Os paulistas da empolgante Magüerbes carregam 21 anos de história nas costas, e no DoSol estenderam o palco para a pista, com o vocalista Haroldo passando o show inteiro pogando com a galera enquanto desfilava as canções do recém-lançado “Futuro”. No quesito loucura, porém, difícil bater os franceses do Dot Legacy, um cruzamento entre Yeah Yeah Yeahs, Kyuss, Chuck Berry e insanidade. O vocalista Damien carrega um baixo de seis cordas. O ruivo Arnaud toca baixo, teclados, berra e dá uns saltos tão altos que, quando pousa no palco, tudo treme. Completam a banda o guitarrista Defontaine e o batera Félix Hie num mix de peso contagiante. Contrastando com o peso do dia, os cariocas do El Efecto se mostraram uma das bandas mais interessantes da programação, com sua mistura de rock, funk, pop e música regional.
Para fechar a tampa da edição Natal do Festival DoSol, com 24 anos de estrada e lançando seu sétimo álbum de estúdio, “Vitória”, o quarteto capixaba Dead Fish fez o show mais festejado do fim de semana, e provavelmente bateu o recorde de moshs em palcos brasileiros, com a galera ensandecida e feliz entoando o bordão: “Ei, Dead Fish, Vai Tomar no Cu”. A banda correspondeu com uma força impressionante. Comandada pelo vocalista Rodrigo Lima (o único da formação original), o Dead Fish mostrou cinco canções novas e deixou a galera rouca de tanto cantar “Zero e Um”, “Autonomia”, “Bem Vindo do Clube” e “Sonho Médio”. Foi foda!
O saldo final da etapa Natal do Festival DoSol foi extremamente positivo. Todos aqueles que dizem que não existe nada novo acontecendo no Brasil precisam rever seus conceitos. É fácil e simplista ficar reclamando das rádios, da TV, da timeline no Facebook, porque é tudo zona de conforto, mas 2015 nem chegou ao fim e já é um dos melhores anos de produção musical deste país, porém sempre haverá saudosos que vão olhar pra produção dos anos 60/70 e dizer: “naquele tempo é que era bom”. Desconectados da cena musical atual, eles se tornaram reféns dos meios mainstream de comunicação, bradando: “o que eu não vejo, não existe”. Felizmente, eles estão completamente equivocados. E o grande Festival DoSol, de forma impecável, é uma prova disso. Os cães latem, mas a nova música brasileira segue em frente.
TOP 5 do FESTIVAL DOSOL
GABRIEL ROLIM, MONKEYBUZZ (Leia a cobertura)
1. Thiago Pethit
2. Mahmed
3. Lê Almeida
4. Carne Doce
5. Figueroas
HUGO MORAIS, O INIMIGO (Leia a cobertura)
1. Aláfia
2. Juvenil Silva
3. Lê Almeida
4. Carne Doce
5. Augustine Azul
LUCIANO MATOS, RADIOCA / EL CABONG (Leia a cobertura)
1. Aláfia
2. Lê Almeida
3. Dot Legacy
4. Carne Doce
5. Camarones Orquestra Guitarrística
MARCELO COSTA, SCREAM & YELL
1. Dead Fish
2. Thiago Pethit
3. Camarones Orquestra Guitarrística
4. Móveis Coloniais de Acajú
5. Dot Legacy
MARCOS BRAGATTO, ROCK EM GERAL (Leia a cobertura)
1. Thiago Pethit
2. Camarones Orquestra Guitarrística
3. Dead Fish
4. Marrero
5. Móveis Coloniais de Acajú
– Marcelo Costa (@screamyell) edita o Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Só uma correção, Mac: essa Meu Bem é do NxZero, mas o resto está correto. E uma coisa pra pensar: nesse top 200 que você mostrou as cinquenta primeiras, excluindo musica pop, são do sertanojo deficitário, a primeira do sertanejo de “raiz” que aparece é Matogrosso & Mathias, na posição numero 56. Tá feia a coisa.
Sobre o festival, deve ter sido foda mesmo, só atração muito boa. Eu vi uma vez o Camarones tocando no dia mundial do rock aqui em Curitiba e foi fantástico, muito bem feito mesmo.