por Guilherme Lage
Nos últimos anos de vida, Elliott Smith combateu com rigor um devastador vício em drogas e travou uma batalha interna contra demônios do passado que insistiam em assombrá-lo. Nas performances, a melodia ébria lhe despia a alma para quem se interessasse em ouvi-lo. O lamento inclemente que o fazia companhia evolui aos extremos, deixou-o cansado demais para a luta.
Nascido em Omaha, Nebraska, Steven Paul Smith teve uma infância conturbada no interior do Texas, onde fora criado por mãe e padrasto. “Elliott”, como passou a ser chamado desde a adolescência, abandonou a casa da mãe e mudou-se para junto do pai em Portland, Oregon. Lá, ainda púbere, encontrou na música, a válvula de escape que necessitava para a liberação da própria criatividade.
Após um período com a banda Heatmiser (que rendeu três álbuns: “Dead Air”, 1993; “Cop and Speeder”, 1994; e “Mic City Sons”, lançado em 1996 após o fim do grupo), Elliott decidiu apostar na carreira solo lançando “Roman Candle” (1994) pelo selo indie Cavity Search (o mesmo que lançou os primeiros singles do Heatmiser) e “Elliott Smith” (1995) pela respeitada Kill Rock Stars, que também editaria o álbum que iria sacramentar o músico como um ícone da cena underground norte-americana: “Either/Or” (1997).
Gravado em diversos locais (casas e estúdios) e com nome “emprestado” da primeira obra publicada pelo filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, em 1843, “Either/Or” aumentou o séquito de fãs de Elliott Smith devido a faixas poderosas com “Christian Brothers”, “Coming Up Roses”, “Needle in The Hay”, “Between the Bars” e “Angeles”. Entre os admiradores de “Either/Or” estava um que iria mudar a vida de Elliott Smith: o cineasta Gus Van Sant.
Badalado por uma carreira em ascensão após dois sucessos independentes (“Drugstore Cowboy”, de 1989; e “Garotos de Programa”, de 1991) e uma estreia elogiada na poderosa Columbia Pictures com “Um Sonho Sem Limites” (1995), Gus Van Sant convidou Elliott Smith para compor algumas canções para seu novo filme, “Gênio Indomável” (1996), que custou US$ 10 milhões e faturou US$ 225 milhões. A trilha trazia cinco canções de Elliott, incluindo “Miss Misery”, que foi indicada ao Oscar e catapultou ao estrelado após uma comovente apresentação na maior cerimonia da indústria do cinema.
Antes limitado a shows intimistas em pequenas casas noturnas, Smith deixava de ser um segredo dos fãs e ganhava o mundo, mas o sucesso cobraria um preço. “Não, Gus não me descobriu”, ele repetiria a frase em inúmeras ocasiões durante o período que sucedeu a efervescência. Já veterano na indústria, com seis álbuns lançados na carreira, incluindo com sua finada banda, Elliott passava pelo ciclo de repetições que acomete as estrelas ascendentes.
A catarse foi intensificada com o lançamento de “XO” em 1998, seu primeiro álbum por uma grande gravadora, a Dreamworks Records. Gravado entre Los Angeles e Portland, “XO” vendeu 400 mil cópias (o dobro que o dobro de seus discos anteriores) e a exposição massiva que veio a reboque teve efeitos devastadores na vida particular do compositor, que vivia então a mesma relação de amor e ódio com a fama que, anos antes, atormentara Kurt Cobain.
Durante as gravações de “Figure 8”, o sucessor de “XO”, as manhãs eram tomadas por entrevistas (que para ele pareciam infindáveis) sobre seu sucesso repentino. Ainda que dócil aos repórteres, um sentimento de depressão se precipitava sobre sua vida particular. Lançado em 2000, “Figure 8” foi recebido com entusiasmo por parte da crítica, mas pouco avançou nos números conquistados pelo disco anterior (chegou na 99ª posição da Billboard enquanto “XO” havia batido no número 104).
Smith começava a se afastar cada vez mais do próprio círculo social e, ao desabrochar do século XXI, tornara-se inalcançável. Após retornar de uma turnê (no mínimo) conturbada, cortou relações com o produtor Rob Schpnaf e se distanciou completamente de Magaret Mittleman, sua agente desde 1994. O músico dava sinais claros de paranoia e falava abertamente sobre suicídio.
Elliott nadava contra um tsunami nos negócios. Para ele, a Dreamworks desistira muito cedo de “Figure 8” e a influência do selo em sua privacidade era inaceitável. Não mais interessado no mercado, ele queria cisão total com a gravadora. Em uma carta aberta, exigiu liberação do contrato que mantinha com a empresa, ameaçando tirar a própria vida como retaliação, caso não fosse atendido.
Naquele ano, as apresentações tornaram-se cada vez mais escassas e cada vez menos profissionais. Não era incomum um Elliott Smith trôpego e errante abandonar o palco após poucas canções por não conseguir se lembrar das próprias letras. O fim parecia próximo e a depressão, característica que o acompanhava desde a infância, ganhava novo combustível devido ao abuso de drogas e álcool.
O tempo de ostracismo, no entanto, parecia ter feito bem a seu espírito debilitado. Em lugar de dar cabo à sua vida, afundou-se na própria música com uma recém-encontrada robustez. Parecia, aos poucos, abandonar suas memórias agourentas. Dedicava cada milímetro do novo afinco à composição do que, prometia ser um álbum duplo.
No outono de 2002, finalmente livrara-se do álcool e das drogas. Entretanto, o destino reservou-o pouco tempo para apreciação de seu novo senso de esperança. O novo disco, “From a Basement on the Hill”, que seria lançado postumamente em 2004, parecia lhe conferir o conforto terapêutico que tanto buscara no entorpecimento. A dor e a angústia, porém, continuavam intactas.
Em 21 de outubro de 2003, a janela de um apartamento no bairro de Echo Park, em Los Angeles, era invadida pelas brisas vespertinas que davam suas carícias finais ao corpo de um homem de 34 anos. Momentos antes, sua companheira correra a seu auxílio após gritos ressonantes inundarem a habitação. Naquele dia, o mundo viu Elliott Smith pela última vez.
O cantor morreria em um hospital às 13h36, com dois ferimentos de faca, aparentemente, auto infligidos. Para trás, ele deixava uma incomensurável contribuição para a música e o material que serviria para lançamentos futuros – além de “From a Basement on the Hill”, o duplo “New Moon” seria lançado em 2007 com 24 faixas raras, incluindo a primeira versão de “Miss Misery” e um cover de “Thirteen”, do Big Star.
Comparado a nomes como Nick Drake e Lou Barlow, Elliott Smith era um evidente representante dos anos 1990. A tristeza, a angústia e o niilismo, característicos das representações musicais desta geração, apareciam com agressiva clareza em seu trabalho. Ele se enquadrava no mito dos gênios torturados e amargava a fragilidade característica dos poetas, mas era também um grande músico. E é por sua obra, sua música, que deve ser lembrado.
– Guilherme Lage (www.facebook.com/breadandkat) é jornalista. A foto que abre o texto é do acervo de Marina Chavez (www.facebook.com/marinachavezphotographs)
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