por Bruno Capelas
Ele não canta em português, faz músicas que remetem mais a Memphis do que a Lisboa e está pouco se lixando para qual língua em que as pessoas cantam. Ainda assim, Paulo Furtado é um nome incontornável do rock português das últimas duas décadas: depois de passar pela seminal band punk Tédio Boys e pelos Wraygunn, o guitarrista nascido em Moçambique e criado em Coimbra é o cara por trás da “banda de um homem só” The Legendary Tigerman.
Questionado sobre o projeto que começou em 2000, o guitarrista português explica: “Tigerman é mais do que eu, é o meu eu aumentado no palco! É imbatível, nunca está cansado, e é uma máquina de rock”. Apesar da longa trajetória (o primeiro disco, “Naked Blues”, é de 2002), foi apenas em 2009 que Tigerman mostraria seu rugido ao grande público, com o lançamento do álbum “Femina”, seu quinto álbum.
Com o próprio Furtado usando batom na capa, “Femina” traz duetos com 13 cantoras diferentes e alcançou às paradas de sucesso em Portugal, além de alçar Tigerman a turnês por toda a Europa. No repertório, há tanto clássicos como “True Love Will Find You in the End”, com a brasileira Cibelle, ou “These Boots Are Made For Walkin’”, com a atriz Maria De Medeiros, como temas próprios como as instigantes “She’s a Hellcat”, com Peaches, e “Life Ain’t Enough For You”, com a italiana Asia Argento.
Fã de Mutantes e Boogarins, Tigerman fala, na conversa a seguir, sobre a história de “Femina” e também de “True”, seu trabalho mais recente, lançado em 2014 – toda a sua discografia está disponível nos portais de streaming brasileiros. Além disso, o músico português comenta sobre as críticas que recebe por não cantar na língua pátria. “Por mim, podem cantar em javanês ou até inventar uma língua nova para se expressarem. Acho que era bom que as pessoas se preocupassem mais em fazer música verdadeira e menos com macacada”, diz Furtado, que, no entanto, não nega a possibilidade de deixar o inglês de lado. “Talvez um dia eu grave canções em português, porque tenho certeza que um dia terei vontade de fazer isso”, comenta.
Durante a conversa, o guitarrista comentou ainda um pouco do momento turbulento por que passam Brasil e Portugal, e como sua música se relaciona com a instabilidade política e econômica dos dois lados do Atlântico. “Não percebo o que pode haver de tão interessante em poder e dinheiro que aparece à custa do povo e do suor dos outros. Acho que uma parte da minha música reflete esse momento de hoje, mas estou mais preocupado com a vida cotidiana, o amor e o sexo”, diz. E para os homens do poder, Tigerman deixa um conselho digno de quem canta o amor em seus discos: “Acho que os políticos deviam fazer mais amor – talvez isso ajudasse-os a perceber o que é importante”.
Esta é a sua terceira turnê pelo Brasil, e a primeira tocando em São Paulo. O que você achou das primeiras passagens por aqui e o que espera agora?
Nas primeiras vezes que eu vim ao Brasil foi incrível dividir o palco com gente tão boa quanto os Boogarins ou os Móveis Coloniais de Acaju, partilhando viagens e palcos pelo país. Adoro tocar no Brasil e estou ansioso por estes concertos em São Paulo. Espero que estejam preparados para receber uma boa dose de rock’n’roll e blues.
Como é que você apresenta o Legendary Tigerman a quem nunca ouviu falar do sujeito? Tigerman é um personagem criado por Paulo Furtado? Ou é apenas um pseudônimo?
Tigerman é mais do que eu, é o meu eu aumentado em palco… É imbatível, nunca está cansado, é uma máquina de rock. É também um homem-orquestra, agora com a ajuda de um baterista, Paulo Segadães, que bate muito forte. É também uma forma de eu me poder exprimir em áreas tão diversas como o cinema, a fotografia, a literatura, a música, de um modo totalmente livre, dentro dos parâmetros do projeto. É muita coisa, e sem dúvida muito mais do que eu, sendo uma parte de mim.
Em “True”, seu disco mais recente, você optou por deixar a formação de one-man-band, mas, ao mesmo tempo, voltou a cantar sozinho depois de um disco de duetos. Como é que isso aconteceu?
Na realidade o disco foi todo gravado e trabalhado como one-man band, ao vivo em estúdio. Até mesmo a composição foi feita neste formato. Só mais tarde decidi pedir ao Filipe Melo, Rita Redshoes & João Cabrita para fazerem arranjos de cordas e sopros para algumas das músicas, e eu coloquei alguma eletrônica simples, depois, também. Voltar a cantar sozinho é normal, o “Femina” foi um disco muito especial e conceitual, à volta da mulher e daí ter havido tantas vozes femininas diferentes. E o novo disco se chama “True”: é a minha verdade, e tive que procurá-la.
Além de ter prestígio em Portugal, você também tem encontrado o sucesso rodando a Europa. O que há no seu som que você acredita que pode agradar aos ouvidos “estrangeiros”?
Não sei exatamente. O que sei é que sempre tentei fazer blues e rock’n’roll de um modo que eu nunca tivesse ouvido antes. Às vezes, acredito que consegui, e isso talvez chame a atenção das pessoas. Acho que também tem um pouco da energia animal e primitva, que se liberta em palco. Rock’n’roll também é suor e animalidade…
Você nasceu em Moçambique e cresceu em Coimbra tocando em uma banda punk. Como é que essas três coisas aparecem na sua música?
Moçambique foi o meu local de nascença: saí de lá muito novo, quase sem recordações. Talvez apenas por alguns cheiros, cores e sons. Coimbra era uma cidade muito conservadora e chata, logo era normal que houvesse essa reação punk e vontade de mudar as coisas. Durante muito tempo Coimbra foi a Memphis portuguesa, com muitas bandas de rock’n’roll. Além disso, Lisboa sempre esteve presente na minha vida: meus avós eram de lá, e passei muito da minha infância e adolescência lá. É onde moro hoje, e não me vejo a morar em outro lugar. É a minha cidade: sinto-me tão filho de Lisboa como de Coimbra.
À primeira vista, a sua música não é perceptível como “música portuguesa”: você é um guitarrista que trafega entre o blues, o folk e o rock, e cantas em inglês. O que há de lusitano no Legendary Tigerman?
Não sei te dizer. Adoro música portuguesa! Quando comecei a ouvir música, escutava as canções da revolução [dos Cravos], de cantores como José Mario Branco e Zeca Afonso, ao mesmo tempo que descobri os Sonics, os Cramps e, um pouco depois, o blues de Memphis e de todo o Mississippi. De certa forma, o blues foi o que mais me excitou, e excita até hoje. Acho que houve um momento em que tudo poderia ter sido diferente, mas o rock’n’roll venceu. Já quanto ao inglês… foi algo natural, pela métrica e fonética, e é uma língua que falo desde pequeno. Há sangue lusitano em mim, e isso é o mais importante. Talvez um dia eu grave canções em português, porque tenho certeza que um dia terei vontade de fazer isso. Ou melhor: já tenho feito. Um dia eu mostro isso ao mundo.
Já que você tocou no assunto: cá no Brasil, bem como em Portugal, existe um grande debate sobre cantar em português ou em inglês. O que você acha dessa conversa? Pode parecer uma pergunta boba, mas por que você não canta em português? É uma escolha estética ou simplesmente tanto faz?
Por mim, podem cantar em javanês ou até inventar uma nova língua para se expressarem. Acho que não opino sobre como as pessoas decidem se exprimir artisticamente, em relação à arte dos meus colegas músicas. A arte é uma coisa muito pessoal. Acho que era bom que as pessoas se preocupassem mais em fazer MÚSICA VERDADEIRA [maiúsculas pelo próprio Tigerman], e menos com macacada. Esse assunto das línguas é uma macacada. Adoro e admiro músicos cantando em todas as línguas, qual é o problema? As mutações causadas por isso são incríveis: a música viaja entre continentes e linguagens. Isso é muito bonito e causa revoluções. O reggae, por exemplo… há tanta coisa que não seria possível ter acontecido sem essas mutações – que às vezes incluem a mudança na língua, inclusive.
O que você gosta de ouvir da música brasileira?
Gosto muito das coisas experimentais e garage, como Os Mutantes. Hoje em dia adoro os Boogarins, são uma coisa incrível. E claro, gosto das coisas mais clássicas, como Vinicius de Moraes, Caetano e Chico.
Em um dos seus principais discos, o “Femina”, você faz duetos com grandes cantoras. Como surgiu a ideia desse formato de parcerias, e o repertório que elas cobrem? E por que fazer um disco inteiro dedicado às mulheres?
Bem, é uma história longa… o disco começou por ser um filme, que depois abandonei por falta de financiamento… Na época, eu já tinha falado com a Asia Argento sobre o filme, e escrito uma canção para ela cantar na trilha sonora – que é “Life Ain’t Enough For You”. O filme era sobre um momento incrível na vida de várias mulheres: elas se encontravam e isso tinha algum impacto na vida delas. Quando o projeto do filme caiu, percebi que um disco gravado com todas essas pessoas era exatamente o que eu queria escrever para o filme, só que na vida real. Foi incrível trabalhar com todas essas pessoas talentosas. Todas as canções foram escritas com e para cada uma delas. As versões que estão no álbum não são só do Legendary Tigerman, mas tem a ver com cada uma das artistas. É um disco muito importante para mim, e do qual sou muito orgulhoso.
Na capa do “Femina”, você aparece de batom, em pose que pode ser no mínimo considerada andrógina. Qual era a intenção por trás dessa imagem?
A capa é um tributo ao Serge Gainsbourg – mais especificamente, um remake do “Love On The Beat” (álbum de 1984). Adoro o modo como Serge Gainsbourg lidava com a tensão homem-mulher nas canções dele. Ao mesmo tempo, eu queria uma capa que misturasse os dois gêneros sem ser exatamente uma coisa de transgressão. É uma homenagem às mulheres, também.
“Femina” acabou sendo um sucesso de público, chegando na lista de discos mais vendidos em Portugal. Há planos para um “Femina 2”, ou isso seria recorrer a uma receita de mercado fácil?
Já ouvi muitos pedidos para fazer um novo “Femina”. Na realidade, eu tinha material para isso na época, com mais de 30 canções gravadas. Foi uma opção não fazê-lo. Mas não acredito que esse seja um assunto esgotado. Um dia vou voltar a esse tema, tenho certeza, mas será quando eu achar pertinente, e não por razões comerciais.
Voltando a falar sobre Coimbra: há algum tempo li uma boa matéria na revista Blitz [principal veículo de música em Portugal] sobre a cena da cidade na música nos anos 1980 e 1990. O que é que há na água do rio Mondego que faz a cidade ser capaz de gerar uma banda punk como os Tédio Boys ou um compositor como o JP Simões? No que a música de Coimbra é diferente da que há no Porto ou em Lisboa?
Acho que essa foi uma época de ouro em Coimbra. Não há muitas explicações. Coimbra, nos anos 1980 e 1990 era uma cidade universitária cheia de energia jovem e criativa, e que queria se impor a uma sociedade conservadora e fechada. O resultado foi essa explosão de arte que aconteceu ali – e não foi só música. É algo que acontece em muitas cidades, e no caso específico de Coimbra, aconteceu um impacto muito forte em Portugal durante pelo menos uma década. Hoje, as coisas não são mais assim. Talvez, um dia, algo similar volte a acontecer – eu espero que sim.
Há anos Portugal passa por um momento de crise e austeridade, e em meio aos problemas econômicos surgem também escândalos políticos. Você sente que a sua música reflete esse momento do país? Se sim, qual é a mensagem que você acredita poder passar e ajudar neste período conturbado?
Acho que uma parte da minha música reflete esse momento, mas estou mais preocupado com a vida cotidiana, com o amor e o sexo. Devemos viver a vida de forma plena – até porque não teremos outra, sabe? É importante que você tente mudar as coisas à tua volta numa escala menor, porque isso pode se tornar algo grande e o mundo seja um pouco mais justo. Não percebo esse bando de políticos corruptos que existe por todo o mundo – tanto em Portugal como no Brasil. Não entendo o que pode haver de tão interessante em poder e dinheiro que aparece à custa do povo e do suor dos outros. É uma vergonha. Para mim, a mensagem é só uma: tentar viver por valores justos para mim e para as pessoas que me rodeiam. Se a coisa for funcionando assim à volta das outras pessoas, acredito que pelo menos perto de mim as coisas estarão melhores. Se todos fizermos isso, todos estaremos melhor. Acho que os políticos deviam fazer mais amor – talvez isso os ajudasse a perceber o que é importante.
Para encerrar esta entrevista, gostaria de pedir uma recomendação: o que é que os brasileiros precisam ouvir hoje da música pop feita em Portugal?
Há aqui uma lista: devem ouvir Keep Razors Sharp, Rita Redshoes, Eme, Dead Combo, B Fachada, Linda Martini, Norberto Lobo, Filho da Mãe, Capitão Fausto e Marfox.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista e assina o blog Pergunte ao Pop.
Vou ter o prazer de assistir em breve a um concerto do The Legendary Tigerman e andei a investigar mais sobre este artista. Encontrei um review muito bom ao álbum Femina que gostaria de partilhar aqui: http://mundodemusicas.com/femina/
Abraço
Que classe, The Legendary Tigerman. Maluco do bem, pra quem gosta de Cramps e evil blues e afins, não tem erro… Naked Blues na veia.