por Gabriel Albuquerque
Em “Álbum de Família”, Nelson Rodrigues desvela a perversidade, crueldade e os vícios que se escondem por trás da aparente felicidade, harmonia e união das fotos do álbum de família. Os retratos escondem toda a mágoa, desilusão e sofrimento que permeiam as relações humanas. Criam uma sensação de estabilidade. São a referência para nos lembrar dos bons momentos, funcionando como um escudo que nos protege de nossa infelicidade?—?a qual preferimos ignorar, fingir que não existe. “Há uma espécie de imperativo de ser feliz, em todos os lugares, o tempo todo. Aconselham-nos isso da manhã à noite”, nas palavras do filósofo Roger-Pol Droit.
“Carrie & Lowell”, o novo disco do cantor e compositor norte-americano Sufjan Stevens é uma homenagem à sua mãe, falecida no fim de 2012. Como na peça de Nelson, a imagem cristalizada do álbum de família (estampada na capa do álbum, que mostra a mãe e o padrasto do músico, os mesmos do título) é problematizada. O clichê da exaltação romântica aos momentos grandiosos, do tipo Fábio Jr. e o pieguismo do seu pai herói, dá lugar a arranjos simples e letras extremamente pessoais, que expõem não apenas a alegria demagógica, mas também os traumas da relação entre mãe e filho, contraditória e conturbada.
No caso de Sufjan, uma história bem peculiar e delicada: Carrie sofria de alcoolismo, esquizofrenia e depressão e por isso afastou-se do filho quando ele tinha apenas um ano de idade. Quando ela casou-se com Lowell, Sufjan teve a experiência de passar cinco férias escolares com a mãe no verão. Também a via ocasionalmente em reuniões de família e estava junto a ela nos seus últimos momentos de vida no hospital, onde faleceu em decorrência de um câncer no estômago.
O cerne do álbum é, portanto, a intimidade do seu compositor, que se expressa com uma crueza impressionante. Não se encontra aqui o som épico dos metais, violinos e coro de “Chicago”, carro-chefe de seu repertório. Somente um violão, algumas vezes acompanhado por um discreto e afastado piano e pequenos backing vocals. A voz de Sufjan é praticamente um sussurro, tão frágil que Stevens parece estar a ponto de se despedaçar a qualquer momento. A primeira impressão é de que as músicas repetem a fórmula batida do “fofolk”: melodias simples, singelas e bonitas, mas insípidas, sem sangue, suor e lágrimas.
Essa ideia cai por terra conforme vamos adentrando com mais atenção no turbilhão emocional de “Carrie & Lowell”. A entrega confessional de Sufjan é o que faz o disco passar longe do easy listening estéril de música de elevador ou da “música para relaxar”. Logo nos primeiros versos da faixa de abertura “Death With Dignity”, ele diz: “spirit of my silence I can hear you / but I’m afraid to be near you”. Ou seja, Stevens vai lidar não exatamente com a morte de sua mãe, mas sim os seus próprios fantasmas, com o seu interior. O “espírito de seu silêncio” nada mais é do que a solitude?—?que assusta a todos nós, pois nos obriga a olhar para nós mesmos. Um exercício que, se feito com honestidade, pode trazer resultados decepcionantes ao percebermos que não somos aquilo que pensamos / gostaríamos de ser.
Durante todo o álbum, Sufjan está buscando exorcizar os seus demônios em um calvário consigo mesmo. No subterrâneo da música lenta, contemplativa e suave, há uma luta violenta entre o compositor e ele mesmo.
Em entrevista ao Pitchfork, Stevens conta que começou a abusar de drogas e álcool. “Eu comecei a acreditar que eu estava geneticamente, quimicamente, predisposto ao seu padrão de destruição [em relação ao comportamento de sua mãe]”. Confuso, ele tenta algumas vezes culpá-la pelo seu estado em desabafos raivosos, como “Drawn To The Blood” (“O que eu fiz para merecer isso?”, canta, quase aos prantos). Mas ele percebe o quão infantil e cínico é simplesmente se vitimizar e eximir-se de toda sua responsabilidade. Na mesma entrevista, Sufjan diz:
“Eu aprendi rapidamente que você não tem que ser preso pelo sofrimento e que, apesar da natureza disfuncional de sua família, você é um indivíduo em plena posse de sua vida. Eu vim a perceber que eu não estava possuído por ela, ou encarcerado por sua doença mental. Nós culpamos nossos pais por um monte de merda, para o melhor e para o pior, mas é uma simbiose. A paternidade é um sacrifício profundo.”
Percebemos essa visão mais crítica também na música. Em “Eugene”, ele relembra pequenos momentos, até banais, como puxar a camisa da mãe pedindo para comprar iogurte ou o professor de natação que mal sabia pronunciar seu nome, até chegar ao estágio terminal, em que Carol está no hospital cercada por aparelhos e próxima da morte. E, enfim, o lamento pela relação que ele poderia ter construído, mas agora, diante da morte, “o que resta é apenas amargura, para o resto da minha vida, admitindo que o melhor está para trás”.
Na belíssima “Should Have Know Better”, segundo single do álbum, Sufjan complementa sua visão. Reconhece sua atitude passiva (“I waited for the remedy”) e abre mão dos julgamentos. Quando relembra o dia em que foi abandonado na locadora, ele não entra em conflito e apenas pede, resignado: “seja meu descanso, seja minha fantasia”. Aqui, apesar de melancólico, ele enxerga o passado com sobriedade (“Nada pode ser mudado. O passado ainda é o passado, a ponte para lugar nenhum. Eu devia ter escrito uma carta explicando o que eu sinto, essa sensação de vazio”) e ainda parece ter uma pequena (pequena!) faísca de esperança, em meio a versos como “no reason to live”, ao falar de sua sobrinha e da alegria que ela proporciona.
Mas o luto não é fácil, e lidar com os problemas adormecidos também não. As feridas demoram a cicatrizar. Entre a histeria do apontar o dedo para os “culpados” até a percepção de suas responsabilidades, há um caminho longo e tortuoso de lamentos e desilusões. Podemos percebê-lo em “The Only Thing” e “No Shade in The Shadow of The Cross”. Na primeira, o compositor se pergunta como irá “viver com seu fantasma” e, na segunda, questiona sua fé em Deus?—?uma figura bastante recorrente nas letras de Sufjan.
Entre os desabafos raivosos, confissões angustiadas e lamentos melancólicos, Sufjan Stevens compõe um quadro impressionista sobre nossa relação com a vida e a morte, amor e ódio, esperança e frustração, desespero e conforto. A partir de experiências pessoais, estabelece uma visão madura sobre as relações humanas, a intimidade e iminência da morte e capta diversas nuances da ampla gama de sentimentos e reações com que encaramos a “velha da capa preta”.
“Carrie & Lowell” é um grande disco e sua força reside na surpreendente brutalidade e crueza da batalha íntima que o compositor trava ao longo de suas músicas e também na desmistificação das relações familiares e do afeto entre elas — complexas, confusas, conturbadas. Uma poderosa e comovente sensibilidade da experiência cotidiana.
– Gabriel Albuquerque (www.facebook.com/gabriel.albuquer.1) escreve na Revista Poleiro
Leia também:
– Sufjan Stevens tenta juntar peças de um velho quebra-cabeça incompleto (aqui)
Desde abril que estou escutando este disco. Harmonias e melodias maravilhosas. Letras confessionais em ótimas composições. Na certa um dos melhores discos em língua inglesa que ouvi nos 5 últimos anos.
Apesar do estilo marcante do som de Sufjan Stevens, o espírito de Elliot Smith permeia o disco. Principalmente nos vocais melancólicos. Uma obra-prima.