Realidades Sonoras: Lamar e Barnett

por Bruna Corrêa Vilela

“A música é sua própria experiência, seu pensamento, sua sabedoria. Se você não a viver, ela jamais vai sair do seu instrumento. Eles ensinam que há uma linha de fronteira para a música. Mas, cara, não há linha de fronteira para a arte.”

A citação acima é de Charlie Parker, “Bird” para os íntimos, o saxofonista que inovou e consolidou-se no jazz, saindo dos bares marginais de bebop de Nova Iorque, para calçar um caminho reluzente na música do século XX. Da rua para os ouvidos. Da rua para os olhos, para o papel, para os discos, para os holofotes. Da rua para um lugar visível. Da rua para a arte. Tal é a trajetória das narrativas urbanas que causam um impacto imensurável naqueles que as cantam. A observação atenta àquilo que se sente e se recebe do mundo ao redor sempre foi o maior instrumento de qualquer artista. No entanto, a alma do ‘flâneur’, o solitário participante da fugaz multidão nos concretismos da cidade, é o que rende a sensibilidade pungente e saborosa a certos registros.

E, muitas vezes, na música, esses registros se apresentam formatados em narrativas pormenorizadas de maneira quase jornalística, mas com o autor se expondo irrecuperavelmente. No jornalismo, seria como a linguagem utilizada em sua vertente literária. Na música, que já tem o seu espaço flexível da criação artística reservado, os limites da subjetividade não são cerceadores da fala de quem relata as realidades enxergadas. E, assim, grandes discos descritivos, narrativos e/ou confessionais podem ser produzidos – com reflexões, efemeridades sensíveis do cotidiano e conceitos enlaçados em uma trama coesa, fluída e brilhante, digna de toda boa narrativa. Este é o caso de dois discos do primeiro semestre de 2015: “To Pimp A Butterfly”, do rapper Kendrick Lamar e “Sometimes I Sit And Think, And Sometimes I Just Sit” da australiana Courtney Barnett, ambos lançados no mês de março.

O rap já é um gênero que se consagrou por permitir a exposição das ruas e das tramas invisíveis, e Kendrick tem feito tal exercício com eficiência e conduta criativa revolucionária desde seus primeiros trabalhos. O compositor, que evoluiu exponencialmente até chegar à combustão de expectativas que rodeavam a véspera do lançamento de “To Pimp A Butterfly”, hoje se encontra numa esquina de sua própria trajetória – a qual se fez singular em sua pessoalidade e universal enquanto colecionava os complexos processos da fama e do árduo reconhecimento.

Courtney, por outro lado, com um EP duplo (“A Sea of Split Peas”, de 2014) e o atual disco de estreia, já havia demonstrado uma sensibilidade ímpar desde suas primeiras músicas reconhecidas internacionalmente ao compor quadros imagéticos traçados por jogos de palavras inteligentes e por uma musicalidade genuína – mas que ainda soa familiar às mais variadas vertentes do rock.

Aparentemente, “To Pimp A Butterfly” e “Sometimes I Sit And Think, And Sometimes I Just Sit” divergem intensamente em suas naturezas. Em ambos, contudo, encontramos visões preciosas acerca de tudo o que nos rodeia todos os dias, ainda sob o filtro de quem se põe constantemente como um refém destacado dessa realidade.

Desde o nome e a capa do álbum, sínteses enigmáticas e impactantes de todo seu conceito, até a última faixa, Kendrick Lamar passeia por inumeráveis metamorfoses e inumeráveis faces de si mesmo, mas que congruem à mesma complexidade da relação do rapper com o sucesso.

A faixa de abertura, “Wesley’s Theory”, tem a voz de George Clinton ecoando, quase que profeticamente, a primordial questão: “Você vai deslizar através das rachaduras na esperança de que irá sobreviver. Reúna seu vento, dê uma olhada lá no fundo. Você é realmente quem eles idolatram?”. A partir desse ponto, “a pista de dança” e “as luzes estróbicas no quarto” vão compor ora as atmosferas experimentais e ritmadas dos devaneios oníricos de Lamar, ora as realidades que o atropelam, levando-o a revivê-las com rimas de mesma característica – corridas, diretas, cruas e estrondosas.

E os questionamentos próprios irão permear, igualmente, a segunda metade do álbum, passando pela questão racial/social que tem destacado espaço na composição temática do trabalho.

Ao reverenciar os fantasmas de Mandela e Tupac, com uma onda esmagadora de questionamentos, o rapper empilha seus conflitos até chegar a um diálogo com este segundo ícone, seu ídolo. O ouvinte é arrebatado com a metáfora da transformação da lagarta à borboleta mais uma vez, agora com os metais e os vocais jazzísticos crescendo até o silêncio final, que embrulha o “mundo” do rapper com alguma incerteza enquanto ele faz uma última pergunta a Tupac: “Qual sua perspectiva sobre isso?”. E, então, os minutos do disco se esgotam, deixando-nos, como resposta, o zumbido nos ouvidos – de uma obra que apresenta muito mais do que uma simples compilação de canções de rap. O espetáculo que apresenta a batalha de Kendrick pela sobrevivência chega ao seu fim. E, dentre todas as incertezas, permanecemos com a convicção de que a metamorfose de Kendrick Lamar em borboleta, de fato, ocorreu.

Enquanto os conflitos do cantor americano cercam sua sobrevivência, os da compositora australiana Courtney Barnett, no entanto, se firmam em sua existência. O primeiro single do álbum já apresentava guitarras estridentes rasgando as contradições que Courtney empunhava a pulmões abertos, sem restrições. Música mais pesada do álbum, “Pedestrian At Best” exibe um vigor que permanecerá em todo o desenrolar do trabalho, com uma atmosfera bem-humorada e leve, entretanto.

Enquanto Barnett tenta convencer o ouvinte de que ele não deve reverenciá-la – “Coloque-me em um pedestal e eu só vou te decepcionar. Diga-me que sou única, eu prometo lhe explorar” –, discorre filosofias leves, com uma sabedoria descompromissada, engatilhadas por passeios e versos tranquilos de suas experiências. Como em “Kim’s Caravan”, em que ela descreve uma caminhada por uma ilha de seu país e os versos intimistas crescem junto às pinceladas das cordas elétricas – abrindo espaço à catarse da cantora.

Nesse ponto, encontramos os ‘flâneurs’ que se dispõe a observar tudo com sensibilidade e disposição. Ambos os artistas, ao exporem suas fraquezas, incertezas e sensações, utilizam, como ferramenta para tal evasão, as vivências diárias. O fruto empírico das histórias traçadas funciona como alavanca para um registro ampliado das singularidades de quem vive em meio ao mundo urbano – este que oferece tanta carga impactante.

No registro de Courtney, os personagens coadjuvantes em destaque são aqueles por quem ela passa nos caminhos cotidianos. No de Kendrick, o próprio rapper está incluído no grupo das figuras anônimas que ganharam visibilidade com a arte – daí o seu trunfo e seu conflito. Courtney conta de Jen, de Oliver Paul, do senhor que encontra na praia e daqueles com quem dialoga indefinidamente em suas estrofes. Kendrick, além de destacar as figuras que marcaram sua trajetória, posiciona-se como aquele cuja invisibilidade foi sendo desconstruída com a música e, hoje, é parte essencial da temática dela.

Os repertórios pessoais dos dois cantores divergem extremamente. Mas um dos caminhos que escolhem para entregarem seus confessionalismos é o mesmo.

Escutamos, porém, tal caminho sob diferentes trilhas. Todos os enredos são filtrados na pluralidade de interpretações a que ambos os músicos se dedicam em cada faixa.

Kendrick passeia pela história da música negra, abusa do baixo de “Thundercat”, brinca com os timbres de sua voz, canta chorando, compõe colaborações memoráveis, e ainda não deixa de lado seu essencial hip-hop. As rimas evidentes no interlúdio de desabafo disparado que compõe a segunda faixa se desenvolvem e oscilam, passando por momentos de calmaria e ironia. Não há monotonia e a digestão é difícil. O ouvinte é convidado a se inserir no cool jazz, no bebop e nas transições, referências e digressões que são atiradas a todo tempo. Assim, o disco de Kendrick é singular não só por se diferenciar enquanto expressão em sua totalidade, mas por obter êxito em compor um prisma de impressões sonoras.

Com o de Courtney, a mesma coisa. Sua peculiaridade e seu estilo são ditadores em todos os momentos, inconfundíveis. Ainda assim, excursionamos com ela por guitarras punk, baladas country-folk, psicodelias, rock n’ roll anos 60, noise e blues marcados. Suas estruturações, entretanto, são simples: riffs sintéticos e pegajosos desenhando voltas em cada estrofe a que ela empresta a voz característica constante, sem muitos virtuosismos. O que não quer dizer que suas entonações não sejam precisas.

É dessa forma que os dois trabalhos alcançam o êxito de transparecer as realidades, de uma forma leve para aqueles que escapam delas pelos minutos de música em um álbum. O impacto da vida que ocorre em volta ao artista – e, consequentemente, internamente a ele – é aquilo que será transformado em criação mais palpável, uma interação convidativa para aqueles que enxergam nos signos produzidos algum sentido familiar.

O registro compõe uma forma de sublimação, de potencialidade humana. Uma comunicação ampla, para além do absurdo fluxo informacional burocrático do dia-a-dia. O âmago das experiências pessoais trabalhado em sons e compartilhado em sua criatividade: algo totalmente essencial a ser louvado nesse primeiro semestre de 2015, quando tudo são imagens artificialmente filtradas e legendas redundantes.

Que o sax de Parker continue a receber as ruas. E que as ruas continuem a receber o sax de Parker.

– Bruna Corrêa Vilela (facebook.com/bruna.correavilela) assina o blog Fritas com Maionese

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