por Adriano Costa
“Não arrisquei a vida para levar a democracia ao Iraque. Arrisquei-a pelos meus companheiros, para proteger os meus amigos e compatriotas. Fui à guerra pelo meu país, não pelo Iraque. Meu país me mandou lá para que aquela merda não fosse parar na nossa terra. Nunca lutei uma única vez pelos iraquianos. Eu estava pouco me fodendo para eles”.
Durante a guerra do Iraque nos anos 2000, que foi vestida com as roupas daquilo que os EUA denominaram de “Guerra ao Terror” após os atentados de 11 de setembro de 2001, muito se ouviu sobre as verdadeiras causas da invasão e os reais motivos que levaram o Presidente Bush e sua cúpula a ordenar os ataques. Durante esse tempo, revelações foram feitas e percebeu-se que, alavancada por inúmeras mentiras, os motivos dos EUA e de seu presidente não eram tão nobres como eles alegavam e pouco tinham a ver com levar a liberdade ao povo iraquiano, então acuado pelo sanguinário ditador Saddam Hussein.
A citação que abre este texto é retirada do livro “Sniper Americano” (“American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S Military History”, 2013), que a editora Intrínseca publicou no Brasil no início de 2015 pegando carona no filme dirigido por Clint Eastwood e estrelado por Bradley Cooper, que rendeu uma bilheteria milionária (custou US$ 58 milhões e rendeu até este mês US$ 540 milhões) e surpreendentes e inexplicáveis 6 indicações ao Oscar, incluindo ali categorias como Melhor Filme, Melhor Ator e Melhor Roteiro Adaptado. Se ao sair do cinema questionava-se como um trabalho tão ruim poderia ter sido agraciado com tantas indicações, depois de acabar o livro que deu origem ao longa se conclui que nada é tão ruim que não se possa piorar mais.
O livro de Chris Kyle, elaborado com a ajuda do escritor Jim DeFelice e do advogado (sim, advogado) Scott McEwen, ganhou o subtítulo nacional de “O Atirador Mais Letal da História dos EUA”, realçando o fato de que mais de 150 mortes foram atribuídas ao autor – sendo que outras mais ainda anseiam por confirmação. Com 344 páginas e tradução de André Gordirro, o “Sniper Americano” conta a história de Kyle, um SEAL (membro de força específica da Marinha treinada para operações especiais) nascido no Texas e morto aos 39 anos, assassinado por outro veterano de guerra de seu país que sofria de estresse pós-traumático e estava dentro do rol de pessoas ajudadas em um projeto destinado a reinclusão de soldados na sociedade.
Desde criança, Chris Kyle já tinha acesso a armas de fogo, coisa normal dentro da cultura do seu país. Quando resolveu entrar para a Marinha, com o senso de patriotismo exacerbado, se direcionou para o grupo de atiradores de elite, onde essa paixão armamentista poderia ser bem utilizada. Lá encontrou um ambiente propício para progredir e utilizar suas ideias de mundo a favor de Deus, da pátria e da família, nessa ordem, como faz questão de destacar em várias passagens do livro. E foi premiado por isso sendo exaltado pelos seus feitos e suas mortes, mesmo que isso não lhe interessasse tanto no que chamava de “glória de mentira”, já que o objetivo era mesmo matar pessoas.
Quando descreve o treinamento para chegar a SEAL, onde sofreu todo tipo de violência física e psicológica para ficar quase indestrutível, é fácil perceber como a máquina de guerra funciona superficialmente. Os soldados passam por uma lobotomia em que todo o senso de questionamento é retirado preparando o homem para seguir ordens. A enfermeira britânica Florence Nightingale, pioneira do tratamento a feridos de guerra, afirmou certa vez que “é necessária certa dose de estupidez para se fazer um bom soldado”. Essa frase se correlaciona em vários momentos durante a leitura de “Sniper Americano”.
A figura de Chris Kyle, pelo menos aquela retratada no livro, é egocêntrica e raivosa, com claros exemplos de racismo e xenofobia, além de desprezo para quem não pensa da mesma maneira que ele. Visões de valores deturpados e a sensação de que todas as mortes são abonadas por algo superior e ele poderá “ficar diante de Deus com a consciência limpa por ter feito o (…) trabalho” mostram que seu fundamentalismo religioso não é tão diferente daquele que visava combater. Por dentro desse discurso de pátria e religião, o que reside mesmo é a diversão, que o autor afirma frequentemente conseguir dizendo que “adorava o que fazia”.
Não há ingenuidade na guerra, nem santos. Barbaridades são cometidas dos dois lados envolvidos, por isso toda crucificação pode ser uma bela furada. No entanto, o produto livro “Sniper Americano” exibe, além da escrita sem brilho, um protagonista com ideário questionável e senso de justiça completamente difuso. É uma leitura que vale somente para atestar o absurdo doutrinamento utilizado para se formar soldados eficazes e com pouca argumentação destinados a atingir fins governamentais escusos travestidos de bondade, sendo que o enaltecimento dos feitos de guerra pelo governo e pelo próprio livro construindo uma lenda ou mito faz parte direta disso.
P.S: Mestre Yoda, que sabia muito das coisas, afirmava brilhantemente em Star Wars: “Grande guerreiro? Guerra não faz grande ninguém”. É por aí.
A Intrínseca fez uma página para o livro. Acesse: http://www.intrinseca.com.br/sniperamericano
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