por Renata Arruda
Piper Kerman era uma bem educada e destemida jovem de vinte e poucos anos da classe média alta quando se envolveu com uma mulher mais velha e decidiu cometer crimes desnecessários pelos quais nunca havia sido pega até que, 10 anos depois, com a vida mudada, um bom emprego e um relacionamento estável com o escritor Larry Smith, a história mudou. Piper culpa seus erros por seu espírito aventureiro e sua paixão por Catherine Cleary Wolters, que trabalhava para o tráfico internacional de drogas e a convenceu a transportar dinheiro – ainda que na versão de Cleary contada para a revista Vanity Fair, Kerman e ela já faziam viagens para o tráfico juntas quando se envolveram romanticamente.
Tendo seus crimes descobertos, provavelmente dedurada por Cleary, Piper se vê condenada a uma pena de 15 meses – a qual cumpriu 13 – na prisão feminina de segurança mínima de Danbury, Connecticut, onde passa a conviver com mulheres de diferentes classes sociais, orientações sexuais e etnias – sendo a grande maioria formada por negras e latinas vindas da classe operária – e sentir na pele o descaso com que são tratadas as detentas pelo sistema prisional americano. “A coisa mais vil que encontrei em mim e no sistema que me mantinha prisioneira foi a indiferença pelo sofrimento alheio”, escreveu Piper em “Orange Is The New Black” (2010), livro de memórias sobre o tempo em que passou em Danbury, publicado em 2014 no Brasil pela Intrínseca, e que originou a série de mesmo nome, cuja terceira temporada chega em junho ao Netflix.
Na prisão, Piper percebe que ser uma bem educada branca, loira e de olhos azuis (como frequentemente pontua) lhe garante algum tipo de privilégio, certa simpatia e provoca até mesmo surpresa por parte dos agentes carcerários e companheiras de prisão, e acaba se dando conta do contraste entre a sua vida e a daquelas mulheres, passando a refletir sobre como ela estava ali pelos mesmos motivos que a maioria – a ligação com o tráfico de drogas – e resolve assumir uma parcela de culpa escrevendo sobre como suas ações contribuíram para a situação da maioria da população carcerária feminina que conheceu – sem chegar a fazer nenhuma reflexão a respeito da legalização das drogas.
Escrevendo como observadora em um formato que mais se assemelha a um diário, Piper está mais preocupada em humanizar as mulheres com quem conviveu do que politizar as deficiências do sistema (“Havia encontrado outras mulheres que podiam me ensinar a ser melhor”, ela chega a escrever), embora comente sobre o precário atendimento médico, a falta de programas de educação e reinserção das mulheres na sociedade (a maioria delas não tem para onde ir ou se dirige a abrigos ao sair da prisão) e as ameaças, negligências e abusos de poder por parte de alguns agentes penitenciários.
Numa passagem interessante, ela explica que em Danbury alguns agentes “não eram os depravados que poderiam abusar sexualmente das prisioneiras; na verdade, eles nunca confraternizariam com formas de vida inferiores como nós, e reservavam seu escárnio mais ardente aos colegas que nos tratavam com humanidade”. Em geral, o tom do livro de Kerman é positivo, com uma ausência de conflitos muitas vezes beirando o inverossímil: todos os seus amigos e familiares a apoiaram sem grandes problemas, ela tinha dinheiro suficiente para conseguir o que quisesse, seu noivo Larry, diferente do apresentado na série, foi maduro, compreensivo e companheiro durante todo o tempo e ela não sofreu nenhum embate importante enquanto esteve na prisão. No único momento em que sofre uma humilhação por parte de um agente durante seu trabalho como eletricista, ela consegue ser transferida para outra função sem maiores obstáculos além de uma longa espera.
Impressão parecida teve Jenji Koahn, responsável pela adaptação do livro para a TV: “Ela foi para a prisão e foi uma droga e ela conheceu pessoas muito legais. Tivemos que incrementar com um pouco mais de drama (risos)”, comentou em entrevista à Entertainment Weekly em 2013. Adaptado livremente das memórias de Kerman, a série tem a vantagem de poder se aprofundar neste processo de humanização das detentas, mostrando em cada episódio as histórias que levaram cada uma das personagens até ali, com o bônus de reunir um afiado elenco de atrizes pouco conhecidas interpretando uma diversidade pouco vista na televisão: mulheres de diversas raças e classes sociais, lésbicas sem viés fetichista e uma vibrante personagem transgênero, interpretada pela atriz transgênero Laverne Cox, a primeira a estampar a capa da revista Time – todas inspiradas nas mulheres reais que conviveram com Piper, também consultora da série.
Talvez o mais importante de “Orange In The New Black” seja sua publicação em si. Ainda que estejamos falando sobre um livro cujo ponto de vista não seja o de uma detenta comum e onde não houve uma documentação aprofundada das histórias das mulheres que realmente sofrem sem recursos para manter “luxos” como assinaturas da revista New Yorker ou comprar radinhos de pilha para acompanhar suas corridas na prisão, a publicação do livro – com o importante reforço da série – joga um pouco de luz sobre o que acontece nas pouco comentadas prisões e centros de detenções de mulheres americanas e tem acompanhado o ativismo de Kerman em busca de melhores tratamentos para as prisioneiras, alternativas à reclusão para criminosas não violentas e maior educação e empatia do público: “A ausência de empatia está no cerne de qualquer crime (…) mas a empatia é a chave para trazer um ex-prisioneiro de volta ao seio da sociedade. (…) O público espera que as sentenças sejam punitivas, mas também reabilitadoras; no entanto, o que esperamos e o que obtemos de nossas prisões são coisas completamente diferentes. A lição que nosso sistema prisional ensina a seus residentes é como sobreviver como um prisioneiro, não como um cidadão”, escreve ela. E em outro momento questiona: “Aos nossos carcereiros é concedido um anonimato quase total (…). Qual o sentido, qual a razão para prender as pessoas durante anos, quando isso parece significar tão pouco, até mesmo para os carcereiros (…)? Como um preso pode achar que sua punição teve algum sentido para alguém, quando ela é aplicada de maneira tão impensada e indiferente?”
– Renata Arruda (@renata_arruda) é jornalista e assina o blog Prosa Espontânea
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