por Renata Arruda
“Não há nada mais corajoso para mim do que uma pessoa anunciar que sua história merece ser contada, sobretudo se essa pessoa é uma mulher. (…) Ainda existem muitas forças que conspiram para dizer às mulheres que nossas preocupações são fúteis, que nossas opiniões não são relevantes (…) Que a escrita pessoal feminina não passa de um exercício de vaidade que nós deveríamos apreciar esse novo mundo para mulheres, sentar e calar a boca. Mas eu quero contar minhas histórias”, é o que anuncia Lena Dunham na introdução de “Não Sou Uma Dessas — Uma garota conta tudo que ‘aprendeu’” (“Not That Kind of Girl: A Young Woman Tells You What She’s ‘Learned’”, 2014) o primeiro livro da jovem produtora, diretora e roteirista, que ganhou projeção mundial com a sua premiada série “Girls”, cuja quarta temporada acaba de estrear no Brasil pela HBO.
Em sua introdução, Lena justifica a existência do livro defendendo que suas histórias podem ajudar outras mulheres, seja enfrentando alguma tarefa complicada, fugindo de roubadas ou evitando o sentimento de culpa por relacionamentos que não deram certo. Apesar disso, “Não Sou Uma Dessas” está longe de se parecer com autoajuda: Lena não envereda pelo caminho dos conselhos ou frases motivacionais, limitando-se a simplesmente expor os fatos à sua maneira e deixando que seus leitores tirem suas próprias conclusões. Dessa forma, o texto pode parecer autocentrado e, em alguns momentos, um tanto frívolo, já que além de Lena não demonstrar muita maturidade, ela também não faz maiores reflexões sobre suas experiências e como elas afetaram a si mesma e às pessoas envolvidas, mantendo seu texto dentro da zona de conforto da garota de classe alta, que conta sua história a partir de um lugar de fala privilegiado — o que para muitas pessoas irá soar cansativo e até desinteressante.
Para o formato de “Não Sou Uma Dessas”, Lena se inspirou em “Having It All: Love, Success, Sex, Money Even If You’re Starting With Nothing”, livro de Helen Gurley Brown lançado em 1982 onde a autora “compartilha suas diversas humilhações e ocasionais triunfos e explica, com a precisão de um Guia do Idiota, como você também pode ser abençoada com “amor, sucesso, sexo e dinheiro, mesmo que comece do nada”. Lena conta ter devorado o livro durante sua adolescência: “Não sabia que ela era a pedra no sapato tanto do movimento feminista quanto da patrulha moralista (…). Tudo o que eu sabia era que Helen pintou um quadro da vida que se tornou muito mais interessante por ela já ter sido, em suas palavras, uma caidinha: feia, nada especial, sem graça. Para ela, em última análise, caidinhas são as mulheres que prevalecerão, que sobreviverão para contar suas histórias de serem desprezadas e pouco amadas. É uma perspectiva oportunista, mas eu precisava dela mais que tudo.”
À maneira de “Having It All”, Lena dividiu seu livro por seções (a saber: “Amor & Sexo”, “Corpo”, “Amizade”, “Trabalho” e “Panorama”) não para oferecer conselhos, como Gurley Brown, mas para falar dos percalços que a fizeram se tornar quem é. Lena se inspira na maneira franca com que a autora escreve sobre suas fraquezas e defeitos “cheia de constrangimentos e de acne escondida numa tentativa de dizer: Olha, felicidade e satisfação podem acontecer com todo mundo”. E é o que faz aqui, procurando escrever com leveza e humor sobre seus dramas pessoais, sua personalidade hipocondríaca e seus transtornos obsessivos, em que longe de um esforço afetado para parecer engraçada ou descolada, mais sugerem uma tentativa de não se fazer de vítima, de que é possível seguir em frente sem maiores traumas. Dito isso, o humor de Lena nem sempre funciona no texto escrito, onde algumas passagens parecem ser melhor aproveitadas se lidas em voz alta, à maneira de um monólogo.
Outro ponto sobre o humor de Lena que é interessante notar é que tal esforço em não problematizar situações ou comportamentos delicados e deixar o texto pesado talvez funcione como uma forma de autodefesa para a autora. Como por exemplo no texto “Igor: ou, Meu namorado virtual morreu e o mesmo pode acontecer com o seu”, em que ela fala sobre seu relacionamento com Igor, um rapaz russo, amigo de uma amiga em comum, com quem passa a trocar mensagens pela internet. A relação esfria, Igor passa a sumir até que Lena recebe a notícia de sua morte e, parecendo não processar direito a informação, a sua único pergunta é se ele disse pra alguém se teria deixado de gostar dela. Parece forçado e egoísta em um primeiro momento, mas Lena deixa a pista de que, na verdade, ele poderia estar vivo: nunca se falaram ao telefone, nunca se viram pessoalmente e um ano após a notícia de sua morte, seu apelido aparece online e some quando ela tenta entrar em contato com ele. Dessa maneira, sua reação individualista acaba soando mais como um desespero genuíno de quem desconfia ter sido enganada durante todo o tempo. E ainda funciona como uma espécie de vingancinha sutil.
O livro vai se tornando mais interessante à medida em que a redação parece pegar um certo ritmo — o que acontece lá pelo final da seção “Corpo” e finalmente engata na “Trabalho” — e se tornam mais parecidos com ensaios sobre as mais variadas questões: medo da morte, abuso sexual, machismo em Hollywood, etc., mas talvez visando atingir um público mais jovem que, assim como Lena experimentou com “Having It All”, poderiam utilizar seu trabalho como apoio durante os anos de amadurecimento, a coletânea traz uma série de conteúdos dispensáveis, como cardápios de dieta, listas diversas e e-mails, que aproximam “Não Sou Uma Dessas” de uma compilação de textos de blog.
Em “Eu não transei com eles, mas eles gritaram comigo”, o último ensaio da seção “Trabalho” e um dos mais interessantes, Lena fala sobre a possibilidade de, no futuro, quando tiver uma obra consolidada, poder “dar nome aos bois”, contando a todos sobre os homens de Hollywood que a tentaram manipular para que dormisse com eles e as acusações que se seguiram quando ela declinou. E de um cineasta já velho que tentou diminuir seu trabalho quando ela rejeitou seu convite para um filme: “Vou descrever o e-mail que ele me enviou depois que eu disse que não poderia trabalhar no filme dele por estar fazendo meu próprio programa. “Como é que você pode trocar essa oportunidade de ser uma pequena parte de um filme que será estudado em universidades durante anos a fio pela efemeridade de um ‘episódio-piloto de TV’. Entre aspas! Ele escreveu isso ENTRE ASPAS”. Este machismo na indústria do cinema e TV, por exemplo, é um dos assuntos que Lena poderia ter explorado mais e melhor em seu livro, que termina deixando a impressão de que, quando estiver mais experiente, madura e segura de si, Lena ainda pode escrever um livro mais interessante e mais relevante.
– Renata Arruda (@renata_arruda) é jornalista e assina o blog Prosa Espontânea
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