por Marcelo Costa
Após um indistinto ruído de vozes, uma pancada num prato de bateria é o sinal para a largada de “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)” (2014), de Alejandro González Iñárritu, e o que se seguirá nos 119 minutos de projeção seguintes será um exercício pretensioso e plenamente alcançado de rebuscar com ousadas técnicas cinematográficas a história simples de um artista no limite de explodir perante a pressão ás vésperas do momento da criação. O resultado final é absolutamente esplendoroso, ainda que acrescente mais aos aspectos técnicos de filmagem do que a temática do artista em crise.
O tal artista atende pelo nome de Riggan Thomson (Michael Keaton envelhecido e perfeito no papel), um ator que fez muito sucesso interpretando Birdman, um super-herói que usa uma capa semelhante a do Batman, voa como o Super-Homem, e se tornou um ícone cultural numa franquia que ganhou duas continuações. Riggan abandonou o barco quando lhe convidaram para filmar “Birdman 4”, e, após vagar como um fantasma por Hollywood, decide uma nova cartada atrás do reconhecimento como ator: dirigir, roteirizar e estrelar a adaptação de um texto do escritor Raymond Carver para a Broadway.
Começa, então, o martírio de Riggan, que, conforme se aproxima da estreia, sente a pressão artística lhe sufocar tanto que ele quase enlouquece (quase?) num ambiente claustrofóbico de teatro (palco, coxia, cozinha, camarim) dividido com as atrizes Lesley (Naomi Watts) e Laura (Andrea Riseborough), o ator Mike Shiner (Edward Norton), a filha Sam (Emma Stone), o produtor e advogado Jake (Zach Galifianakis) e a ex-esposa Sylvia (Amy Ryan) amparados por clichês (o ator que só se excita no palco, as atrizes que se beijam, a jovem que voltou da rehab, o produtor que não deixa o barco afundar) que, surpreendentemente, funcionam.
O roteiro brilhante, escrito a oito mãos, segue o padrão pretensioso da obra como um todo, pois busca (e consegue) explicitar (em tons cômicos) o ridículo dos filmes de super-heróis, tão em voga atualmente em Hollywood, dos vícios dos bastidores do teatro tanto quanto da crítica jornalística e dos memes de internet, e ainda “brinca” metalinguisticamente com a ideia de que a vida imita a arte (e vice-versa): passagens do livro “O que falamos quando falamos de amor” (1981), de Raymond Carver, que está sendo encenado no teatro, são revividas pelos atores em suas vidas pessoais (o marido que atirou uma faca na esposa, a mulher que perdeu um bebê).
A pretensão também está presente nos excelentes planos sequencia, que fazem com que o filme seja uma deliciosa maratona quase impenetrável para o espectador (a sensação melhora na segunda vez que se vê o filme), que, embasbacado na poltrona, acompanha a trajetória dos personagens como se estivesse assistindo a uma perseguição de carros típica de filmes de ação em Hollywood. A história vai sendo absorvida de forma vertiginosa, o que ganha impacto com uma trilha sonora impecável movida a músicas de Rachmaninoff, Ravel, Bach, Tchaikovsky e Mahler tanto quanto de uma condução jazzística, nervosa e empolgante de bateria.
Tudo é intencionalmente exagerado em “Birdman”: o roteiro, a filmagem, a trilha, as atuações, os clichês. E tudo funciona de modo brilhante ao fotografar em três dimensões a persona de um homem sonhador: no primeiro plano (esse que eu e você vivemos) está Riggan vivendo o mundo real, com seus desejos, dúvidas e desafios; no segundo, sua imaginação, o Homem-Pássaro, que faz com que ele questione sua própria segurança, levite, arremesse coisas na parede apenas com a força do pensamento e imagine Manhattan sendo invadida por pterodáctilos. Como terceiro ponto de foco, a maneira como as pessoas (a filha, o produtor, a crítica, os fãs na rua) o veem. Do choque destas três dimensões nasce um grande filme.
Ainda que a temática do artista em crise já tenha rendido obras fenomenais e (polêmica?) mais bem acabadas na história do cinema (do diretor perdido em “Oito e Meio”, de Federico Fellini, ao roteiro absurdamente metalinguístico e genial de Charlie Kaufman em “Adaptação”, de Spike Jonze), “Birdman” merece todos os elogios que vem recebendo porque é o triunfo de tudo o que cinema pode alcançar quando suas pequenas engrenagens são executadas de forma impecável. Exagerado, pretensioso e divertido, “Birdman” é como uma grande canção do Radiohead: uma estrutura simples envolta num arranjo grandioso. Palmas.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– Em “Adaptação”, de Spike Jonze, mundo real e imaginação se misturam (aqui)
– “8½” é um dos dois melhores filmes de todos os tempos. Pode escolher o outro (aqui)
– “Biutiful”, de Iñárritu, trata a vida como uma peça preciosa que deve ser respeitada (aqui)
– Um liquidificador dramático chamado “Babel”, de Iñárritu (aqui)
– O moralismo de “Amores Brutos” não incomoda: eis um filme excepcional (aqui)
– Em 90% de “Amores Brutos”, de Alejandro Iñarritu, o clima é de caos completo (aqui)
Marcelo, vou tentar seguir sua observação que o filme melhoraria quando se assiste uma segunda vez; saí da primeira com uma sensação de indefinição : gostei ou não ? mas os planos sequência e a trilha sonora realmente me “fisgaram”; darei a segunda chance-rs ; obg