por Marcelo Costa
Texto publicado originalmente no Scream & Yell em 12/10/2004
A data de chegada de “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” aos cinemas brasileiros foi 23 de julho (de 2004). Em algumas capitais, porém, o filme chegou mais tarde e, enquanto começo a acariciar as teclas, poucas salas de cinema do País ainda devem estar exibindo essa pequena obra-prima romântica do cinema contemporâneo. Acabo de me ver frente ao filme pela segunda vez e procuro lembrar quantas obras ficam melhores após uma segunda sessão. A lista seria pequena.
“Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” é fruto da mente (perigosa), genial e geniosa de Charlie Kaufman, o roteirista que colocou pessoas dentro da cabeça do ator John Malkovich (“Quero Ser John Malkovich”, 1999) e fez Nicolas Cage se passar por ele próprio no metalinguístico e chapante “Adaptação” (2002). Os dois filmes citados são frutos da parceria (cerebral) de Kaufman com Spike Jonze. Alternando entre eles, Kaufman escreveu para Michel Gondry “Natureza Quase Humana” (2001) e este pequeno tratado sobre amor e memória chamado “Eternal Sunshine of Spotless Mind” (2003), frase retirada de um poema de Alexandre Pope, “Eloisa To Abelardo”, que já havia inspirado Kaufman em “Quero Ser John Malkovich”.
Joel (Jim Carey) acorda no dia dos namorados… sem namorada. Desce para ir ao trabalho e percebe que alguém amassou toda a lateral do seu carro. Presságios de um dia ruim. Ao invés de ir ao trabalho, Joel decide dar uma desculpa ao chefe e parte para uma praia. Dois detalhes: estamos no inverno e Joel não tem a mínima ideia do que foi fazer em uma praia quase deserta. Caminhando pelas areias, ele conhece Clementine (Kate Winslet), que tenta se aproximar dele, mas só o consegue fazer depois que os dois já estão no mesmo trem, voltando para a cidade. Um romance deveria estar nascendo aqui, mas o que o espectador irá descobrir é que este romance já existiu, foi apagado e, pela teoria kaufmaniana, irá acontecer sempre porque não podemos fugir do nosso destino.
O método de apagar memórias indesejáveis é oferecido por uma empresa: a Lacuna Inc. Basta apenas você escolher o que quer esquecer, levar todos os objetos relacionados aquilo que não mais deseja em sua vida, e os computadores registram todos os pontos de emoções em seu cérebro para que, durante a noite, especialistas apaguem toda memória indesejável. Na fila, uma senhora leva objetos que a fazem lembrar de seu cachorrinho morto e um rapaz leva suas lembranças sofridas de um time de futebol. “Não pode causar um dano cerebral?”, pergunta Joel ao médico. “É um dano cerebral que estamos fazendo, bem semelhante a uma ressaca. No dia seguinte você não se lembrará de nada”, explica o doutor. Porém, e é essa a grande discussão que move “Brilho Eterno”, existem coisas que podem ser retiradas do cérebro, mas não da alma.
Clementine “apagou” Joel após uma briga. Joel, ao ficar sabendo que Clementine o apagou, vai e faz o mesmo. Ou pelo menos tenta. No meio do processo descobre que quer ficar com algumas lembranças e isso desencadeia uma fuga desesperada por seu próprio cérebro, o que acaba, por fim, envolvendo seus traumas de passado e, no mundo exterior, uma assistente (Kirsten Dunst), seu chefe (Tom Wilkinson) e dois empregados (Mark Rufallo e Elijah Wood). É o destino dos personagens de fora que irá colocar o casal Joel/Clementine frente a frente a novamente.
Parece complicado? Não é. Charlie Kaufman amarra tão bem suas ideias que deixa o espectador louco por uma fresta que quebre toda a genialidade da obra. Porém, quanto mais você procura desvendar o filme, mais o filme desvenda você mesmo. Faz pensar. Não à toa, traz, em ao menos três passagens, uma citação do filósofo alemão Friedrich Nietzche:
“Abençoados os que esquecem, porque aproveitam até mesmo os seus equívocos”.
Como disse um editor para o próprio roteirista em “Adaptação”, Charlie Kaufman é o cara que escreve os roteiros mais malucos de Hollywood. Não está de todo errado. São os loucos que conseguem ditar os rumos da sociedade, afinal, enquanto os certinhos estão seguindo o rebanho, os loucos estão buscando uma forma de contar a sua versão da história: neste caso, escolheram para a história de Kaufman um dos atores mais criticados de Hollywood e a garota que fez ‘Titanic” para encarnarem o casal neurótico de “Brilho Eterno”. A química, pelo jeito, funcionou. Jim Carey está excelente e Kate Winslet de cabelo laranja parece uma tangerina, doce e ao mesmo tempo azeda.
Pela primeira vez, Kaufman mostra que além de cérebro também é coração. Colocando mais sentimentos em seu texto, e tendo como tradutor o bom diretor Michel Gondry, o roteirista alcança a perfeição cinematográfica com “Eternal Sunshine of Spotless Mind”, um filme para se ver, esquecer e ver de novo, e esquecer e ver de novo, e esquecer e ver novamente, novamente, novamente…
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Uniu perfeitamente sentimento e tecnologia, sem deixar o percurso irregular – coisa que Her igualmente tentou mas não conseguiu. Brilho Eterno é obra-prima.