por Marcelo Costa
O Manic Street Preachers sempre foi uma banda estranha, de dualidades, que não só idolatrava Clash e Guns’n Roses na mesma medida, como apregoava um violento ataque político nas letras e declarações tanto quanto rechaçava os fãs que baixaram “Know Your Enemy” (2001) por meios ilegais, idiossincrasias que construíram uma carreira extremamente particular para uma banda galesa em plena atividade, que já soma mais álbuns lançados no novo século do que no século passado (6 a 5).
Em uma comparação grosseira, porém, apenas “Know Your Enemy” figurava no nível de qualidade dos discos dos anos 90 (notadamente a tríade clássica formada por “The Holy Bible”, de 1994, “Everything Must Go”, de 1996, e o multi-platinado “This Is My Truth Tell Me Yours”, de 1998), já que o oitentista “Lifeblood” (2004) e, principalmente, o barulhento e árido “Journal for Plague Lovers” (2009) soam tentativas frustradas de coesão enquanto “Send Away the Tigers” (2007) e “Postcards from a Young Man” (2010) são grandes discos menores.
“Rewind the Film” (2013), o primeiro dos dois álbuns gravados pelo Manics em 2013 (o outro, “Futurologia”, será lançado no ano que vem – e deverá soar bem mais barulhento), é um dos melhores álbuns lançados pelo trio galês neste século, um acerto de contas da banda com o novo século, com a meia-idade e com os sonhos adolescentes. Mais do que isso, é quase um continuação temática e sonora do épico “This Is My Truth Tell Me Yours”, porém, com arranjos mais despojados e temas menos cínicos – embora o cinismo seja um integrante fantasma no Manics tal qual Richey Edwards.
Boa parte das canções de “Rewind the Film” olha para o passado com desprezo, uma reflexão dolorida que soa quase como a traição de um sonho, e tanto o baixista (e principal letrista) Nick Wire quanto o guitarrista James Dean Bradfield, responsáveis pelas letras do Manics, estão apenas com 44 anos, mas parecem sofrer de uma desilusão com as rugas maior que o mundo. “Estou tão cansado quanto John Lennon cantou”, avisa James em “3 Ways to See Despair” (“Três Maneiras de Observar o Desespero”), uma letra em que o personagem se prepara para a inevitável queda enquanto a melodia traz algo dos Beatles do “White Album” (mais do que “I’m So Tired”).
Aproximando “Rewind the Film” de “This Is My Truth”, a canção de abertura, “This Sullen Welsh Heart”, observa aquele pai de família de “If You Tolerate This Your Children Will Be Next”, que tentou fazer a sua parte, mas agora, 15 anos depois, lamenta: “Eu não quero que meus filhos vivam como eu vivi”. Uma das músicas mais sombrias e tristes de 2013, “This Sullen Welsh Heart” conta com o auxilio vocal lírico de Lucy Rose, jovem folk singer inglesa que debutou em 2012, e que amplifica a força de uma canção que já soava dolorida na crua versão demo.
Primeiro single, “Show Me the Wonder”, com o baterista Nick Wire no trompete, surpreende aqueles que se envolveram com a melancolia da abertura por sua batida soul e refrão edificante, e destoa do repertório, com a letra que valoriza o antagonismo clássico do Manics: “Podemos escrever em Inglês, mas a nossa verdade permanece no País de Gales”. A faixa título, porém, retorna ao universo deslocado do personagem de “This Sullen Welsh Heart”, e traz Richard Hawley dividindo os vocais com James e tocando guitarra havaiana em uma melodia que rememora Scott Walker.
A letra de “Rewind the Film” expõe a inadequação com a ampulheta da vida: “Eu adoraria rever a alegria de meus amigos / Eu quero me sentir pequeno, deitado nos braços da minha mãe / Mas estou esperando a noite que virá”. Em “Builder of Routines“, o personagem avisa que está cansado de ser “4 real” e abre o jogo sem medo: “Como eu odeio a meia-idade / entre aceitação e raiva”. Já “4 Lonely Roads” traz a cantora Cate Le Bon numa interpretação luminosa que tenta fazer pelo Manics o que Hope Sandoval fez pelo Jesus and Mary Chain em “Sometimes Always”.
Entre os grandes momentos de “Rewind the Film” ainda se inclui a climática “Anthem for a Lost Cause” (quer título mais Manics?), que poderia figurar em “This Is My Truth”, a acústica e deliciosamente resmungona “Running Out of Fantasy” (“Meu ecossistema é baseado no ódio / Meu DNA ainda não foi testado / Eu odeio a tirania do sol / Eu não preciso da sua simpatia”) e a faixa de encerramento, “30-Year War”, uma canção anti-Thatcherismo escrita antes da morte da Dama de Ferro, cuja letra raivosa brada: “É a maior piada da história / Assassinar as classes trabalhadoras em nome da liberdade”.
Além de sua versão tradicional, com 12 canções, “Rewind the Film” ganhou uma edição luxuosa em formato livreto com dois CDs: um com o álbum normal e outro com todas as canções em arranjo acústico (demo), que deixam o “recado” das letras ainda mais forte (ouça entre os vídeos abaixo “Running Out of Fantasy” e “Show Me The Wonder”), mais cinco números ao vivo no O2 Arena (“There By The Grace of God”, “Stay Beautiful”, “Your Love Alone Is Not Enough”, “The Love of Richard Nixon” e “Revol” – no iTunes, mudam as canções ao vivo: “A Design For Life”, “Empty Souls”, “(It’s Not War) Just the End of Love” e “From Despair To Where”).
Décimo-primeiro álbum de uma carreira errática e extremamente bem sucedida de 27 anos, “Rewind the Film” é um álbum estranho de uma banda estranha. É também triste, dolorido e muito bonito, talvez um dos discos mais desolados que o Manics já gravou. Soa como um retrato para a geração de James, Nick e Sean tanto quanto um recado para a molecada afundada na adrenalina sem perceber que o tempo, inevitável, passa. É, provavelmente, o momento de calmaria melancólica antes de “Futurologia”, mas isso fica para o ano que vem. Agora é a hora do lamento, de rebobinar a fita, de se odiar por envelhecer. Quem nunca?
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Leia também:
– “Send Away The Tigers”, Manic Street Preachers: os melhores dias virão (aqui)
– Faixa a Faixa: “This Is My Truth, Tell Me Yours”, Manic Street Preachers (aqui)
– Faixa a Faixa: “Know Your Enemy”, Manic Street Preachers (aqui)
– Três discos: “Forever Delayed”, “Lipstick Traces” e “Lifeblood” (aqui)
– “Journal For Plague Lovers”, Manic Street Preachers: sonoridade árida (aqui)
– “Postcards from a Young Man”, Manic Street Preachers: chocolate amargo (aqui)
– Vídeo: Três canções do Manic Street Preachers no formato acústico (aqui)
– Vídeo: Três canções do Manic Street Preachers ao vivo em Oslo (aqui)
– Manic Street Preachers ao vivo no Norwegian Wood Festival, Oslo (aqui)
apenas uma observação, Marcelo:
quando você citou o verso de Running Out of Fantasy, você colocou o jornal The Sun ao invés do nosso Sol? O personagem da música odeia a tirania do sol, que sempre se põe e sempre se vai…
no mais, também achei um belo disco, do início ao fim.
Boa, Rodrigo!
Ótimo disco, essa edição limitada ficou sensacional. Fico pensando quando alguma alma caridosa trará o Manic Street Preachers para o Brasil.
Acho que foi o disco que mais ouvi este ano. Muito bom.
Mas será que somente eu acho Lifeblood um dos melhores discos dos caras?
Eu também acho o Lifeblood um dos melhores deles. E também torço para que um dia eles venham até nossa terrinha. Me parece que eles são gigantes por lá, mas aqui…
Parece incrível, mas de tudo o que ouço, mais novo ou antigo, acabo gostando de bandas que nunca nem são rumorizadas de virem tocar no Brasil. Além dos Manics, British Sea Power, The Shins, The Thrills, Dead can Dance, Mastodon, Black Rebel Motorcircle Club, Air, Ben Folds…
Na primeira audição eu estranhei bastante, já que o disco não tem as guitarras características dos Manics. Mas foi acostumando com a diferença e é um grande disco, mais calmo, e belíssimo. A faixa título é emocionante. Os são das poucas bandas que podem se orgulhar de nunca terem passado vergonha com um disco.