por Marcelo Costa
Após um bom episódio de estreia, “Jogos Vorazes” (2012), que ambientava os não leitores da trilogia em livro de Suzanne Collins (quadrilogia no cinema) apresentando uma nação pós-apocalíptica chamada Panem, constituída por 12 distritos governados por uma Capital opressora e tirânica que pratica uma espécie de Big Brother sanguinolento (sem tanto sangue em cena, diga-se de passagem), em que 24 escolhidos (dois de cada distrito) são deixados em um ambiente de guerra e o vencedor será aquele que sobreviver no final, o segundo filme da franquia trata com carinho o tema revolução, numa metáfora forte e inteligente que coloca uma das grandes franquias de filme-pipoca adolescente atuais na posição de grande arte.
“Em Chamas” (2013) começa do ponto em que terminou o primeiro episódio: a arqueira Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) e o filho de padeiro Peeta Mellark (Josh Hutcherson), vitoriosos dos 74º Jogos por uma manobra romântica que fez de pateta o presidente da nação enquanto colocava em xeque o intento dos Jogos Vorazes, mas alcançou um sucesso extraordinário entre os espectadores, agora desfrutam a posição de celebridades, cuja missão inclui um tour pelos 12 distritos mais Capital, visando promover o Estado e convencer o povo que seu romance inventado é real, diminuindo desta forma o papelão dos governantes.
O sistema de Panem gira em torno da opressão e desestabilização da confiança do indivíduo, método que não só é simbolizado pelos jogos anuais (um tortura psíquica sem fim, já que a pessoa passará ano a ano sofrendo o risco da escolha), um artifício clássico para embutir medo no povo de uma forma que ele seja controlado e siga o ideário ditatorial sem questionar, mas também pelas ações do Governo, que com seus enormes soldados armados estão prontos para reduzir a vida de uma pessoa a pó no primeiro sinal de distúrbio. Desta vez, porém, entram em cena ainda velhos modelos de opressão como açoitar uma pessoa em praça pública.
Tudo isso – historicamente – não basta para calar revolucionários, e a Capital passa a observar em seus 12 distritos um levante sem precedentes, que tem como símbolo a esperança alimentada pela vitoriosa Katniss, uma heroína que se recusou a matar, por amor, mas não um amor romântico (embora seja esse o modelo vendido pela Rede Globo de Panem), e sim por um amor ao próximo. Se no primeiro filme, a sobrevivência era o tema central (o eu), no segundo, Collins (com roteiro adaptado por Simon Beaufoy e Michael Arndt) amplifica a questão: mais do que preocupados consigo mesmos, Katniss e Peeta estão preocupados com o outro (o você).
É claro que não se vence um regime ditatorial com facilidade, e observando a influência “maléfica” de Katniss sobre o povo, o presidente Snow (Donald Sutherland) cria uma nova regra para os 75º Jogos Vorazes: neste ano serão sorteados dois tributos de cada distrito (um homem e uma mulher) apenas entre os vencedores dos 74 jogos anteriores – o 12º distrito tem, além de Katniss e Peeta, Haymitch (Woody Harrelson), o mestre da dupla. Dois destes três gladiadores futuristas irão para uma selva com mais 22 vencedores. “O ano passado foi uma brincadeira de criança”, diz Haymitch em certo momento.
Uma das grandes sacadas de Suzanne Collins, refilmada com esperteza por Francis Lawrence (apesar da agenda curta e apertada, que fez Gary Ross, o diretor do primeiro filme, pedir demissão), é que sua heroína não tem nada de heroína. Katniss Everdeen é, como qualquer um em qualquer distrito de Panem, uma pessoa lutando para sobreviver em um mundo cruel, autoritário e injusto. Não há rebeldia pensada em suas ações, e se isso ocorre é por mero instinto de sobrevivência. Ela não é uma revolucionária muito menos uma idealista. Em certo momento, inclusive, planeja fugir com o namorado. Ela quer salvar a própria pele, mas o faz à sua maneira, pequeno fragmento de ideário em que o gesto particular influencia o social.
E o personagem Katniss – repleto de insegurança e dúvidas – ganha força novamente com Jennifer Lawrence, ótima. O excelente elenco, aliás, dá um passo à frente ao filme de estreia. Josh Hutcherson consegue inserir profundidade em seu Peeta enquanto Woody Harrelson faz um Haymitch tão junkie quanto no primeiro filme, mas menos trapalhão. A bela Elizabeth Banks continua irreconhecível como Effie Trinket, uma Lady Gaga futurista, embora o personagem também tenha crescido. E Lenny Kravitz volta a se sair bem como o fashionista Cinna. Há, ainda, novas aquisições, dentre as quais Philip Seymour Hoffman é a mais aplaudida – ainda que seu personagem entregue mais da trama do que deveria.
Ao final de 2h26 de projeção, “Jogos Vorazes – Em Chamas” não tem fim, pois funciona como elo entre o primeiro filme, proposto como ambientação de história, e “A Esperança”, o aguardado encerramento da saga (em duas partes: “1”, com previsão de lançamento para 21/11/2014, e “2”, agendada para estrear em 20/11/2015). Essa opção não incomoda porque “Em Chamas” dá um passo à frente em subtexto ao universo sugestivamente violento do filme de estreia, decepcionando aqueles que esperavam por violência neste segundo episódio – um contraponto temático interessante que diz mais sobre o espectador do que sobre o filme.
Isso tudo porque “Jogos Vorazes – Em Chamas” explora a contento aquilo que parece ter movido os livros de Suzanne Collins: uma critica árdua a um mundo que está ignorando a fronteira entre particular e social enquanto se utiliza da exploração da fome, da violência e da pobreza como alavancadores de audiência. A sensação é de que, cada vez mais, a derrocada de um é o enriquecimento do outro. Cultura pop, talk shows, big brothers e redes sociais se parecem com a Capital de “Hunger Games”, definida com brilhantismo pelo personagem de Philip Seymour Hoffman: “Se você abandonar o seu julgamento moral, pode ser divertido”.
No mundo pop de 2013, Katniss Everdeen é um personagem mais emblemático que, por exemplo, Justin Bieber e Miley Cyrus, dois inocentes reféns da indústria distribuindo rebeldia gratuita e sem profundidade em busca de um punhado de dólares – para eles e seus patrões. Katniss, assim como Justin e Miley, é uma pessoa comum alçada à fama. Assim como eles, também joga com as câmeras, mas parece ter acordado mais cedo que seus “amigos” de tabloide para um mundo que, cada vez mais, discute conscientização humana e política. Poucos filmes pipoca foram tão longe (e de modo tão acertado) quanto “Jogos Vorazes”.
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
Excelente crítica, concordo com tudo.
Melhor que o primeiro filme, sem sombra de dúvida.
Achei os personagens e atores bem melhores nesse, os novos acrescentaram muito: Hoffman sempre magistral, Jena Malone tem poucas cenas mas está perfeita e marcante em todas, e o ator que faz o Finnick (não sei o nome) podia transformar seu personagem em um tipo canastrão mas foi muito competente em sua atuação.
Eu li o livro poucos dias antes de ver o filme, então posso afirmar que o roteiro adaptado está ótimo. Deixou de fora cenas e personagens dispensáveis do começo, e uma dica valiosa sobre um personagem, para assim, rolar uma total surpresa com relação a uma revelação perto do final do filme.
Lendo agora o último livro, pois esperar 2 anos para saber como termina essa história é muita coisa hehehe