por Leonardo Vinhas
“Quando eu olho para nossos primeiros anos, muitas das coisas que eu via como os pontos negativos de Roger são coisas que vejo agora de uma maneira muito positiva. O jeito de ele ser bastante dominante e ameaçador. Eu costumava beber uma garrafa de uísque e fumar uns quarenta baseados à noite ouvindo Jimmy Reed, e se não fosse por Roger vir e me tirar da cama, eu não teria feito um show nem nenhuma outra coisa. Acho que, nos primeiros dias, precisávamos daquela disciplina. Ele era um trabalhador”.
São palavras de Pete Townshend (tiradas do livro “Everyone Loves You When You’re Dead’, de Neil Strauss) sobre o vocalista do The Who, Roger Daltrey, mas poderiam muito bem se aplicar a John Cummings, o cidadão norte-americano que o mundo conheceu sob a alcunha de Johnny Ramone. Johnny foi o responsável por articular – muitas vezes com mão de ferro – a imagem e a sonoridade dos Ramones. Sua ética era a de um trabalhador e a de um homem de negócios, o que não seria chocante se as pessoas não tivessem a imagem equivocada de que grandes bandas – como os Ramones foram – são agremiações anárquicas, que não se conformam com “o sistema”, e que existem pela “arte”, e não pelo dinheiro.
“Commando – A Autobiografia de Johnny Ramone” (Editora Leya) traz as palavras do próprio para desmentir essa visão romântica (alguns diriam ingênua) da irresponsabilidade roqueira. Escrito por Johnny durante os últimos estágios de sua luta contra o câncer, o livro é rápido, direto e despreocupado em agradar qualquer pessoa que não seu próprio autor. O texto é composto quase exclusivamente frases curtas e categóricas, com a autocelebração dando o tom da maioria dos episódios.
Entre outras coisas, Johnny conta como sempre prezou por manter a imagem da banda (“Rock tem tudo a ver com o visual”, diz a certa altura), chegando ao ponto de exigir que as fotos do último álbum de estúdio, “¡Adiós Amigos!” (1995), mostrassem a banda de costas, para que não ficassem evidentes os sinais da idade e da debilidade física de alguns integrantes (ele não cita quais). O mesmo rigor ele aplicava na sonoridade, e cada mudança imposta pela gravadora, como a produção “fashion” de “Animal Boy” (1986), por exemplo, era recebida com tanta má vontade que ele preferia até ficar de fora das gravações, se fosse o caso.
Aliás, o livro confirma o que já fora comentado superficialmente em outras biografias ramônicas, como “Coração Envenenado” (de Dee Dee Ramone e Veronica Kofman) e “Hey Ho Let’s Go” (de Everett True): de que os Ramones muitas vezes não tocavam em seus próprios álbuns. Dee Dee, por exemplo, tocou baixo em estúdio pela última vez em “Too Tough to Die” (1984). Os solos de guitarra eram, em sua maioria, feitos por Walter Lure, ex-Johnny Thunders & The Heartbreakers. “End of the Century” (1980) teve participação mínima da banda: é quase um disco solo de Joey, porque o produtor Phil Spector só via futuro no vocalista.
Não é fácil simpatizar com Johnny, principalmente se você é um fã antigo dos Ramones, da época em que não havia internet e informação confiável sobre a banda era coisa rara. Johnny faz questão de deixar claro seu desprezo por Joey, fala com condescendência de CJ e Marky e ironiza Richie. O pouco carinho que ele demonstra fica por Tommy e Dee Dee, ainda assim com ressalvas. Ao mesmo tempo, faz questão de desfilar o nome de amigos famosos, como Nicolas Cage, Vincent Gallo e Eddie Vedder (na foto abaixo), que cercaram seus últimos anos de vida, quase como se estivesse deslumbrado.
Suas convicções políticas e sociais também não ajudam. Ele é tão veemente na sua defesa da ideia de que os Estados Unidos são o melhor país do mundo que chega a ser caricato. Republicano, conservador, militarista (ao ponto de dizer que escolheu CJ para substituir Dee Dee porque ele era dos fuzileiros, e, portanto, “sabia seguir ordens”) e antidrogas, decididamente Johnny não se encaixa no espírito libertário que os brasileiros costumam atribuir ao punk.
Porém, não fosse pela linha dura e pela visão da banda como um negócio, teriam os Ramones durado tanto tempo? Num ambiente onde não faltava loucura, abuso de substâncias e problemas de saúde (principalmente de Joey), alguém precisava impor a disciplina necessária para encarar turnês de mais de 100 shows por ano. Alguém precisava brigar para que os chapados levantassem da cama e estivessem em condições de fazer o show. Alguém precisava lembrar que uma banda de rock só se mantém por causa do público, e que por isso os músicos devem respeitar esse público fazendo bons shows, sendo pontuais e dando às pessoas o que elas vieram buscar.
Assim, “Commando” é um livro duplamente relevante. Seu primeiro mérito é mostrar bastidores de um dos grupos mais influentes da história sem medo de que a aspereza do relato arranhe o mito. Não é pouco. E o segundo é justamente lembrar a nós, fãs de rock’n’roll, que o estilo tão libertário e utópico com o qual sonhamos precisa de muita disciplina e bom senso para parecer anárquico. Para quem foi um adolescente idealista, pode ser um golpe devastador.
O livro ainda traz análises pessoais e informações técnicas de cada disco oficial dos Ramones, as listas Top 10 que Johnny compilou obsessivamente ao longo de sua vida (dos melhores filmes de Elvis aos seus “republicanos favoritos”), uma coleção riquíssima de fotos de todos os períodos da vida de seu autor (até o primeiro ursinho de pelúcia do jovem Johnny está lá!), anotações à mão tiradas diretamente da agenda e de cadernos… Um verdadeiro tesouro para fãs.
Voltando à citação no início deste texto: no Who, Keith Moon podia ser o gênio enlouquecido, John Entwistle o gênio silencioso e Pete Townshend o gênio atormentado. Mas cabia a Roger ser o cara “sem graça” que fazia a banda funcionar. Nos Ramones, não seria errado supor o mesmo de Johnny, mesmo que isso irrite (e muito) os fãs de Joey, Dee Dee e Tommy.
– Leonardo Vinhas (@leovinhas) assina a seção Conexão Latina (aqui) no Scream & Yell
Leia também:
– Livro: “Coração Envenenado”, Dee Dee Ramone: “Triste, mas sincero e sem rodeios” (aqui)
– DVD: “End of Century, a História dos Ramones”: Uma família bastaste problemática (aqui)
– “Everyone Loves You When You’re Dead’: Olhando os ídolos de perto (aqui)
– A mesma música: Ramones x Inocentes (aqui) Ramones x Wander Wildner (aqui)
– “…Ya Know?”, Joey Ramone: farofadas desnecessárias e algumas pérolas (aqui)
Caramba, adorei a resenha! Sempre achei estranho como a sonoridade da banda era diferente em estúdio e ao vivo mas nunca desconfiei que os integrantes não tocassem todos os instrumentos em estúdio. Não fui adolescente nos anos 80 e não conheço a história da banda, bastidores e tal. Agora fiquei com vontade de ler essa biografia e as outras duas citadas. Vlw!!!