por Marcelo Costa
Hannah Arendt foi uma das mais influentes filosofas e teóricas políticas do século XX. Alemã de origem judaica, Arendt foi aluna de Martin Heidegger, mas, impedida de seguir numa universidade alemã por ser judia, e após ser interrogada pela Gestapo devido a uma pesquisa que fazia sobre antissemitismo, decidiu fugir para a França, sendo destituída da cidadania alemã em 1937, e presa no campo de refugiados francês Gurs, de onde iria fugir em 1941 e partir com seu marido e mãe para os Estados Unidos, onde viveria até sua morte, 1975.
Esse primeiro paragrafo histórico não está presente nos 109 minutos do empolgante “Hannah Arendt” (2012), filme da cineasta berlinense Margarethe von Trotta, e não atrapalha a trama. O roteiro simples e direto tem o feliz dom de deixar o público curioso sobre a filósofa a ponto de pesquisar mais a fundo sua história, e isso acontece porque a cineasta decidiu explorar o personagem de Hannah Arendt através do recorte de um fato polêmico e definitivo da vida de sua biografada, que renderia uma de suas obras mais aclamadas, “A Banalidade do Mal”.
Em maio de 1960, um dos últimos líderes nazistas do alto escalão ainda vivo, Adolf Eichmann, que havia fugido e se instalado na Argentina após a derrota dos alemães, foi sequestrado por agentes do Mossad (o Instituto para Inteligência e Operações Especiais de Israel) e levado de avião para Jerusalém, aonde iria a julgamento por crimes contra a humanidade. Acompanhando o desenrolar da história de Nova York, e já famosa pelo livro “As Origens do Totalitarismo” (1951), Hannah Arendt decide se oferecer para cobrir o julgamento para a revista New Yorker.
Margarethe von Trotta coloca sua personagem em um núcleo de amigos e centra o desenvolvimento da reportagem sobre o julgamento como um divisor de águas na vida da filosofa (que irá, inclusive, romper amizades). Publicado em 1961 – dividido em cinco edições da revista, o relatório se tornou polêmico devido à visão de Arendt sobre a atuação de Eichmann nos crimes nazistas e, principalmente, pela crítica da filósofa aos “Conselhos Judaícos” (Judenrat), que, segundo ela, colaboraram na entrega de judeus a nazistas.
No primeiro caso, Hannah Arendt argumentou que Adolf Eichmann não era antissemita, mas sim um funcionário medíocre do Terceiro Reich, incapaz de tomar decisões por si próprio, sempre dependente de uma ordem de terceiros. Os detratores acusam Arendt (até hoje) de focar em trechos do julgamento, e não minuciar a vida do chefe nazista, que, por fim, foi condenado a morte e enforcado em 1962. Arendt, no entanto, não eximia Eichmann da culpa, apenas lançava luz sobre o que veio a ser conhecido como “A Banalidade do Mal”.
Segundo a filósofa, Adolf Eichmann era um típico burocrata que se limitara a cumprir ordens, com zelo, sem capacidade de separar o bem do mal. Para ela, Eichmann não era um monstro, mas sim uma pessoa normal cujo grande defeito de caráter era não pensar por si próprio, o que o transformara em um joguete, um palhaço que seguia a lei – independente de suas consequências. Sua declaração polêmica foi estendida em 1963, quando do lançamento do livro “Eichmann em Jerusalém: Um Relatório sobre a Banalidade do Mal”.
A atriz Barbara Sukowa (que tem em seu currículo filmes como “Berlin Alexanderplatz”, 1980, de Rainer Werner Fassbinder, e “Europa”, 1990, de Lars Von Trier) está excelente no papel de Hannah, valorizando a dicção (que se alterna do inglês de gringo para o alemão várias vezes durante a projeção) e conferindo à personagem um ângulo emocional que muitos críticos de época afirmavam não existir – embora ex-alunos corroborem a visão proposta pelo roteiro, que de certa forma humaniza Hannah, ainda que valorize uma indisfarçável teimosia.
O saldo final de “Hannah Arendt” deixa a dúvida se seu mérito maior é sua inegável qualidade cinematográfica ou o recorte delicado do roteiro que se transforma em veículo de uma ideia contestadora, brilhante e original – mesmo escrita e defendida 50 anos atrás. Independente da opção de escolha, o espectador deixa a sala em certo clima de transe, afinal, “A Banalidade do Mal” parece ainda intensamente presente em nossa sociedade cada vez mais tomada por burocratas e por pessoas que dominam a arte de não pensar. É preciso tomar cuidado. Fantoches podem levar milhões a morte.
Ps. Os trechos na redação da New Yorker são impagáveis…
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne