por William Alves
Desde o início da década de 90 que Chico Buarque vem revezando entre seus papéis de romancista e compositor, sem deixar que um interferisse em outro. No entanto, entre os anos de 2009 e 2011, isso deixou de ser verdade. Os trabalhos lançados neste período, o livro “Leite Derramado” (2009, Companhia das Letras) e o disco “Chico” (2011, Biscoito Fino), guardam ligações entre si e nos fazem pensar se o muro que separava o Chico compositor do escritor (por vontade ou por descuido?) começou a ruir.
“Leite Derramado” fala sobre o patriarca de uma família carioca tradicional que passa seus últimos dias no leito de um hospital contando a história da decadência da sua família para a filha, as enfermeiras do hospital e quem mais passar por ele. O problema é que nem tudo é muito claro, já que o ancião tem suas memórias confusas pelas injeções de morfina, portanto é um narrador pouco confiável.
Com o progresso da narrativa, o leitor vai descobrindo os principais traços de personalidade do protagonista, filho de senador, possuidor de uma mentalidade racista e atormentado pela grande dúvida: o que aconteceu com Matilde, o grande amor da sua vida? Como ela de fato morreu? Será que ela o traiu? Ou pior: será que ela existiu mesmo?
O livro, de uma maneira geral, homenageia o maior escritor brasileiro que já viveu: Machado de Assis. Os recursos de narrativa ambígua e retrospectiva pessoal, que o Bruxo do Cosme Velho lançou mão em “Dom Casmurro” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, bem como o sarcasmo usado para descrever a alta sociedade carioca, permeiam o texto em suas quase duzentas páginas. Matilde é uma reedição da Capitu, assim como o protagonista Eulálio Assumpção parece uma fusão entre Bentinho e Brás Cubas.
Já no disco de 2011, a faixa de abertura, “Querido Diário”, soa como um apêndice musical ao livro, já que se trata de confissões desconexas de um solitário. Semelhanças com o protagonista anônimo do seu primeiro romance “Estorvo” também podem ser notadas, já que em diversas passagens ele dá indício de ser um desajustado social (“Hoje pensei em ter religião / De alguma ovelha, talvez, fazer sacrifício / Por uma estátua ter adoração / Amar uma mulher sem orifício”).
“Barafunda” traz lembranças desconexas, lembrando os discursos confusos do Eulálio, porém em um tom mais feliz, menos resmungão e “Sinhá” é narrada do ponto de vista de um escravo açoitado pelo amo, cena comum durante o auge da família Assumpção no romance, porém narrada do ponto de vista do escravo e não dos amos.
Não apenas os temas guardam semelhança com a obra escrita do Chico, mas algumas opções linguísticas feitas remetem ao léxico machadiano, como “Vosmecê”, “A mó de me quebrar”, etc., reforçando a influência literária neste disco.
Literatura musicada é o que “Chico” nos entrega. Duas grandes obras, ligadas por uma unidade temática e estilística, mostrando que Chico Buarque, embora já não seja o mesmo jovem combativo de bigode dos anos 70, ainda é necessário para a cultura brasileira. Agora só resta esperar se ele trilhará este mesmo caminho de musicas livros nos seus próximos trabalhos. Quem sabe o próximo volume não venha como uma trilha sonora em CD. Seria interessante.
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