Esse Você Precisa Ouvir
“Low-Life”, do New Order
por Ricardo Manini
Texto publicado originalmente em 23/07/2006 na versão 1.0 do Scream & Yell
Uma dinâmica pessoal de perdas e vitórias. Desejos opostos à possibilidades. A incrível e conflituosa relação entre o ser humano e aqueles que o cercam. Sartre afirmou certa vez que “o inferno são os outros”. Oscar Wilde, por seu lado, já havia dito que o único modo de eliminar uma tentação é realizá-la. Durante a história comportamental do homem, a grande questão parece ter sido mesmo a vontade do indivíduo contraposta à vontade de seus pares. O que você faria, por exemplo, se a pessoa que você sempre desejou se entregasse ao seu melhor amigo? Em uma guerra, você lutaria por si ou para o seu país? Envolvido em algum conflito de interesse com uma pessoa próxima, você desistiria ou iria adiante?
Talvez o que você fizesse fosse o mesmo que os integrantes do New Order fazem na capa, contracapa e encarte de “Low-Life”, o disco que consagrou a banda definitivamente dentro do Reino Unido. É lá que Bernard Sumner olha o vazio, Peter Hook enxerga o infinito, Gillian Gilbert e Stephen Morris contemplam o ar. Qualquer atitude diferente dessa seria provavelmente mais dolorosa.
A gênese do New Order está nas cinzas do Joy Division. Mais precisamente, está no suicídio de Ian Curtis, amigo de Sumner, de Hook e de Morris, que colocou um fim àquela que poderia ter sido a melhor banda dos anos 80. O vocalista do Joy Division era inspiração e alma do grupo – escrevia as letras, formulava idéias, era o homem que respondia pela imagem dos quatro. De repente, o futuro pareceu negro.
É provável, portanto, que a sua falta tenha provocado divergências em relação a voltar a tocar. Cada vez que estivessem em cima do palco, é bem possível que os integrantes do New Order procurassem por Curtis. Em estúdio, a sombra do vocalista devia aparecer algumas vezes – “Movement”, por exemplo, primeiro disco da banda, tem som derivado em primeira instância do Joy Division. Ninguém seria, deste modo, tão capaz de falar sobre a relação entre o eu e o outro como estes ingleses.
“Low-life” foi também a primeira real tentativa da banda de estabelecer uma identidade com seus ouvintes. Não é à tôa que, pela primeira vez, os rostos de seus integrantes aparecem nas fotos de um disco. Não só aparecem, como são as únicas imagens ali disponíveis. Contato, intimidade, compartilhação de sentimentos. Era isto que o New Order procurava por ali.
E se acerta na busca (e como acerta!) é pelas suas palavras explorarem a intimidade de quem as ouve. Não fechados em seus próprios passos, a banda torna geral um caso específico. “Low-life” não é, de forma alguma, sobre a morte de Curtis, que afeta os integrantes de forma muito mais intensa do que o ouvinte, mas sim sobre vontades e impossibilidades decorrentes em distintas esferas do relacionamento humano (o amor, a religião, a guerra).
É curioso notar que todos estes contrastes (entre o querer e o ser, entre o individual e os outros) assumem na sonoridade do disco tom semelhante. O curioso torna-se óbvio quando se lembra que o meio em que o New Order nasceu é, acima de tudo, festivo. Um meio de raves, drogas e músicas dançantes. E que por mais que se queira soar apenas melancólico, não se consegue – e diga-se de passagem, nem se quer – enxergar apenas impossibilidades. Algumas delas podem ser resolvidas em um sábado à noite.
Talvez o maior exemplo disto esteja em “Face Up”, música que fecha o disco. Após um começo sombrio e praticamente gótico, torna-se festiva na metade e prossegue assim até o final. “Elegia”, uma das poucas músicas instrumentais que a banda gravou em sua história, é uma ode a contemplação. Já “Perfect Kiss”, com seu começo dançante inesquecível, foi feita para ser tocada nas pistas. Todo esse contraste entre as faixas possui um fio condutor emotivo e extremamente melódico, com baixo, bateria e teclados combinados em um clima na maior parte das vezes alegre, mas ardente, como se cada faixa tivesse um conflito pessoal como matriz criadora.
É o que ocorre em “Love Vigilantes”, com a imagem do homem que não percebe que está morto e volta para casa após a guerra (”minha esposa chorava no chão \ e eu não entendia o motivo \ então eu vi o telegrama \ dizia que eu tinha lutado bravamente, mas estava morto”). “This time of the Night”, atinge em cheio a linha tênue que separa o amor (sem você sinto dores/sem você ficarei louco) do ódio (”os mapas nunca irão te mostrar (o caminho) / são idiotas como você”). O pico dos conflitos entre vontade individual e do outro é atingido em “Sunrise”, quando o outro passa a ser Deus e Sumner grita que não o está ouvindo. (”esperei muito tempo / para ouvir a sua voz / o seu nome pode ser Deus / mas você não diz tanto para mim”).
Ouvir “Low-Life” é lembrar de sentimentos sublimes e de reações intempestivas. É como se o New Order houvesse entrado na vida de cada um de nós e colocado sua fórmula em contato com a nossa condição humana. Como se, por alguns minutos, o seu melhor amigo não estivesse tão presente e aquele disco refletisse todas as contradições entre a vida e ausência dela.
Bono chegou a dizer que a contradição é uma cruz que carrega. Mas não mencionou que a contradição não é apenas sua, como (e principalmente) de todo o rock, um estilo que liberta temores mas aprisiona dilemas. O negro que cantava blues nas margens do Mississipi nunca iria entender o som do New Order. Mas saberia muito bem sobre o que o disco nos diz. “Low-life” é possivelmente um dos discos mais contraditórios da história do rock. E, por conta disso, também um dos mais brilhantes. De Manchester para a alma de quem escuta, sem intermediários.
Leia também:
– “Tocando a Distância”: Deborah Curtis humaniza e mitifica vocalista do Joy Division (aqui)
– Assista na integra: documentário de Grant Gee conta a história do Joy Division (aqui)
– Peter Hook: “Ian Curtis sentia-se infeliz. Os remédios iriam mata-lo de qualquer jeito” (aqui)
– “Best Of”, coletânea do Joy Division, é apenas para quem descobriu Ian Curtis ontem (aqui)
– Na Colômbia, 2013, New Order faz de seu show uma experiência bastante divertida (aqui)
– Em São Paulo, 2006, quem esperava perfeição do New Order deve ter se frustrado (aqui)
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