Texto por Marcelo Costa
Fotos por Liliane Callegari
Em período primaveril, a temperatura na região de Santiago, no Chile, é bem definida: sol escaldante que muitas vezes obriga a pessoa a usar um protetor solar durante o dia, e vento e frio assim que o sol se põe no Pacifico, geralmente depois das 21h30. Isso na cidade. Agora imagine essa rotina diária em um clube afastado, localizado aos pés das montanhas Lo Prado (Donde Mueren Los Valientes), com paisagem desértica, mas também piscinas, três palcos, muitas filas e alguns shows inesquecíveis. Esse foi o clima da segunda edição do pequeno e promissor Primavera Fauna, que recebeu oito mil pessoas em um sábado de sol e vento que terminou com um show delirante e impecável do Pulp.
O local era o Clube Espaço Broadway, na estrada que liga Santiago a Valparaiso e Viña Del Mar. Na escalação, 16 bandas se revezando em dois palcos posicionados um ao lado do outro (como no primeiro SWU – e essa não foi a única semelhança) mais nove DJs para entreter o pessoal que, buscando refrescar o corpo, decidiu entrar em uma das duas piscinas (ou, ainda, ficar jogando ping pong ou pebolim). Em sua segunda edição, o Primavera Fauna segue a trilha aberta pelo espanhol Primavera Sound (embora não exista ligação entre os eventos): um festival precisa crescer ano a ano para ter uma base sólida.
Com mil pessoas a mais do que no anterior, o festival abriu os portões (e as piscinas) para um pequeno público ás 11h da manhã (com translado de “ida e volta” oferecido entre Santiago e o Espaço Broadway por 3240 pesos chilenos – cerca de R$ 14) com os locais do Protistas (que tocaram no lugar do Denver) abrindo os trabalhos ao meio-dia. Às duas da tarde, quando The Virgins entraram no palco, o público já era maior, e os nova-iorquinos fizeram os indies chilenos sorrir com alguma microfonia e muita pose a la Rolling Stones. Nada de novo, mas ok.
O primeiro grande show do festival (e um dos mais insanos, e um dos melhores) foi do trio curitibano Bonde do Rolê, debutando em terras chilenas. Movidos a Pisco e muita putaria, Rodrigo Gorky, Pedro D’Eyrot e Laura Taylor levaram bichinhos para o palco, simularam sexo (entre si, e também com os “animais” da Parmalat), fizeram trenzinho entre a galera (com a garrafa de Pisco passando de mão em mão) e distribuíram cerveja com uma “bomba consolo”. O público entrou na dança e pulou muito (e cantou!) em canções como “James Bond”, “Kilo”, “Kanye”, “Picolé”, “Marina do Bairro” e “Baby Don’t Deny It”.
Na sequencia, Victoria Christina (aka Little Boots), que deixou muito hipster animadinho na edição 2012 do Planeta Terra, voltou a promover uma festa eletrônica. Ela não tem nenhum carisma e faz algo que já foi feito centenas de milhares de vezes (e de maneiras mais convincentes), mas manteve o público atento, um mérito que Francisca Valenzuela (apesar de estar tocando em casa) não alcançou. Fran (para os íntimos) entrou de calça de couro debaixo de um sol que permitia fritar ovo no asfalto, e mostrou que os anos 80 ainda podem fazer muito estrago. No entanto, a água da piscina estava gelada.
Se a água da piscina estava no ponto e o calor cumpria a tarefa de secar o freguês após o mergulho, o mesmo não pode ser dito da Corona, a cerveja do festival, que necessitava de duas ou três pedrinhas de gelo para ficar morna (R$ 8 a garrafa). Era isso ou beber água… morna. No palco, José Gonzalez se impôs frente ao sol (não era a hora nem o lugar) e fez aquele show bonito que você já deve ter visto (se não viu, precisa) arrasando no violão e destacando a compania de percussão e teclados. A festejada cover de “Teardrop”, do Massive Attack, fechando a apresentação, fez os vulcões da cordilheira soltarem um suspiro.
Novidade fresquinha chilena, o Astro mostrou competência em mais um show que competiu com a piscina (mas eles se saíram melhores) – vale acompanhar os moleques. Já o Walkmen começa a trilhar um caminho perigoso. Se em disco, os nova-iorquinos ainda tem mostrado muito gás (são sete álbuns, e todos muito bons), ao vivo a coisa parece desandar. Hamilton Leithauser esforça-se ao máximo para parecer Julian Casablancas e/ou Chris Martin, e o som perde o peso e as nuances dos discos. Quem quiser investir num próximo Coldplay (ou um sub-Snow Patrol), tai uma boa chance. Melhor ficar com os álbuns.
Se o Walkmen está se transformando na banda exemplo da Teoria da Retromania, de Simon Reynolds, o jornalista inglês precisa ver urgentemente os colombianos do Bomba Estereo ao vivo para entender que a verdade está aqui fora, no terceiro mundo. O electro tropical do quarteto de Bogotá colocou mais de 5 mil pessoas para dançar. A vocalista Liliana Saumet bailou ao som empolgante que destaca a bateria furiosa de Kike Egurrola, e as intervenções de programação, teclados, baixo e guitarra de Simón Mejía e Diego Cadavid no segundo melhor show de todo o festival.
Então a batida dançante para, e a microfonia impera. Lou Barlow berra no microfone, Emmett Murph esmurra o kit de bateria e Joseph Mascis, escudado por uma parede de amplis Marshall, começa “Watch the Corners”, faixa do mais recente trabalho do Dinosaur Jr, “I Bet on Sky” (2012). Canções novas e velhas se alternam: “Rude”, outra do disco novo, traz ao cabo “Little Fury”, do álbum “You’re Living All Over Me” (1987), época em que o trio lançava discos pela microscópica SST Records (que também lançou Screaming Trees), mas os olhos brilharam mesmo com “Feel the Pain”, “Freak Scene” e com a cover esporrenta de “Just Like Heaven”, do Cure. No fim, “Sludgefeast” foi a responsável pela banda estourar o tempo. Bonito.
Uma pequena pausa, e lá está Illya Kuryaki and the Valderramas mostrando o repertório do recém-lançado “Chances”, álbum que quebrou um silencio de 11 anos da dupla formada por Dante Spinetta (filho do ícone do rock latino Luis Alberto Spinetta, morto este ano) e Emmanuel Horvilleur. Imensamente conhecidos na América Latina, e solenemente desconhecidos no Brasil, Illya Kuryaki é um junção maluca de Prince, Red Hot Chilli Peppers, O Rappa e Cidade Negra, sem o brilho de nenhuma das quatro bandas. Ok, melhor não forçar a barra: a proposta deles é melhor que a do Cidade Negra, mas o show não convence.
Totalmente desacreditados após uma boa estreia e dois discos que nem os familiares devem gostar, o Clap Your Hands Say Yeah surpreendeu. O repertório trouxe canções inéditas, como “Moments”, e privilegiou os dois primeiros álbuns com o hit “The Skin Of My Yellow Country Teeth” aparecendo já na metade do (bom) show. Fechando o palco latino, Jorge González foi recebido com devoção pelos chilenos, e fez um show especial tocando a integra do álbum “Corazones” (1990), de sua ex-banda, Los Prisioneros. Em cada canto do Espaço Broadway havia alguém cantando emocionado com Jorge González.
Meia noite em ponto, e o Pulp entra em cena para delírio de 8 mil pessoas. Tentando “hablar en espanhol”, dançando muito e cantando todos os principais hinos da banda, Jarvis Cocker é a personificação do entertainment: ele é magro, desajeitado e se veste de blaser e gravata, mas assim que sobe no palco, alguma coisa o toma e ele enlouquece – e enlouquece seu público. Foram apenas 15 músicas (especial festival – nos shows solo, o Pulp tem tocando de 19 a 21 canções), todas muito bem escolhidas num crescendo sensacional, muitíssimo bem executado e hipnótico.
Se em 2011, no Primavera Sound, primeiro (grande) show do retorno da banda, Jarvis e companheiros pareciam ainda inseguros numa busca pela química adormecida, agora o Pulp parece estar novamente no auge, e o repertório ajuda: “Do You Remember the First Time?”, “Help the Aged”, “Disco 2000” (em que ele convida todo mundo para bailar – assista aqui), “F.E.E.L.I.N.G.C.A.L.L.E.D.L.O.V.E.”, “Babies”, “This Is Hardcore” e, finalizando, “Common People” surgem em execuções impecáveis, perfeitas, arrebatadoras. Provável melhor show de 2012 no Chile (na Argentina e no Brasil).
Como festival, o Primavera Fauna apresentou vários dos mesmos problemas que são vistos em eventos na terra descoberta por Pedro Alvares Cabral, a saber: filas imensas para comprar comida (hot-dogs, fritas, sanduiche de pernil, hambúrgueres, pizzas, empanadas e outros que podiam tomar até duas horas do tempo do freguês – ou seja, dois shows), cerveja em temperatura ambiente e confusão na chapelaria (as meninas etiquetavam as mochilas e não colocavam as sacolas em ordem numérica, e sim iam amontoando as bolsas – deve ter gente até hoje procurando seus pertences).
Não justifica, mas há no Primavera Fauna uma vibe de festinha de amigos. Por exemplo: o caixa libera um ticket promocional com 5 cervejas e o comprador tem que ir toda hora na mesma atendente, que vai marcando à caneta as cervejas consumidas (a partir do momento que você pega uma cerveja, todas as outras do mesmo ticket tem que ser tiradas ali). Ou a fila do excelente hot dog, que trazia seis variações (caprichadas) do lanche: cada pessoa recebia uma senha, e, quando chamada, dizia qual molho queria. A impressão é que o festival não descobriu o fast-food (ainda bem! Hot Pocket não dá), mas precisa dobrar o número de lojas da área de alimentação se pretende continuar valorizando o atendimento pessoal.
São deslizes que soam incrivelmente inocentes (o que, novamente, não os justifica e também não serve de atenuante) e que prejudicam o entretenimento, mas é preciso ressaltar que, com apenas duas edições, o Primavera Fauna vai abrindo caminho indie em terras chilenas, e precisa apenas ficar atento aos erros, para não cometê-los nas próximas edições, melhorando desta forma a experiência do festival como um todo. Com line-ups inteligentes, um local aprazível e uma produção mais cuidada no tratamento ao público, o Primavera Fauna tem tudo para se firmar como uma opção interessante de shows para os sul-americanos. 2013 nos espera aos pés da Cuesta Lo Prado. Novamente. Vale o passeio.
Oito mil chilenos e chilenas no festival – e alguns intrusos
Astra mostrou competência no festival
Liliana Saume, do Bomba Estereo: segundo melhor show do festival
A invasão dos patos de borracha
Pedro D’Eyrot, do Bonde do Rolê, ejaculando cerveja
Victoria Christina está querendo alugar carisma. Alguém vende pra ela, por favor
Fran Valenzuela: a piscina estava melhor que o show (e ela não lembra a Katy Perry?)
Uma das piscinas do Espaço Broadway
Sol quente, água gelada…
Ao fundo, a Cuesta Lo Prado: Donde Mueren Los Valientes
Lou Barlow, do Dinosaur Jr.
Cuidado Gary Lightbody, Hamilton Leithauser está querendo tomar o seu lugar…
José Gonzalez, outro grande show
Escondendo-se do sol
Illya Kuryaki and the Valderramas: o nome é legal, já o som…
O sol se pondo no Pacífico
A menina dança
Clap Your Hands and Say Yeah, uma boa surpresa!
Jarvis Cocker, o mestre do contorcionismo
Steve Mackey, baixista do Pulp
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne
– Todas as fotos por Liliane Callegari (@licallegari). Galeria do festival (aqui) e do Pulp (aqui)
Festa caseira bem divertida, vale o passeio pra 2013, mas vou levar meu próprio isopor de cerveja
Que preza essa piscina no festival!!!
O nome da música do Dinosaur Jr. é “Little Fury Things”, não “Little Fury”. De resto, baita inveja. Esse Primavera Fauna parece ter sido muito bom. É tentar ver o Pulp em SP!
Mac, naquele trecho que você citou o Cidade Negra, achei que você seria a primeira pessoa no Brasil, talvez do mundo, que realmente gosta de música, a ver algum brilho na banda… Teve que se retratar logo em seguida! Rssssss
Pô, texto bacanudo. Dinosaur Jr, Illya Kuryaki and the Valderramas e Pulp. Belo trio para um festival. Deve valer o passeio sim. Devidamente anotado.
P.S: Essa foto na piscina é puro estilo 🙂
P.S: Quanto ao Walkmen, nem os discos são bons meu caro.
Que preza essa piscina no festival