No final da década de 80, quando Jonathan Franzen e David Foster Wallace já eram, aos vinte e poucos anos, dois jovens escritores com seus romances de estreia sendo comentados (“The Twentyseventh City”, de Franzen, e “The Broom of the System”, de Wallace, ambos inéditos no Brasil), Jeffrey Eugenides era somente um secretário executivo de uma associação de poetas, tentando desesperadamente emplacar seus contos na consagrada revista The Paris Review.
Alguns anos e muito esforço depois, Eugenides finalmente lança, em 1993, “As Virgens Suicidas”. O autor sempre declarou confiar no conselho de Virginia Woolf: não lançar um livro antes dos 30. Talvez a espera explique sua madura obra de estreia, retrato sensível dos aspectos mais dolorosos da adolescência. “As Virgens Suicidas” foi apresentando a Sofia Copolla por Kim Gordon (Sonic Youth), que decidiu adaptar a obra para o cinema. Não tardou a tornar-se obra de culto, com sua narrativa lírica que traz uma espécie de coro de vozes dos então vizinhos das irmãs Lisbon, que mesmo muitos anos após a tragédia, ainda tentam compreender o suicídio das cinco adolescentes em uma Detroit dos anos 70. Eugenides foi saudado pela crítica como uma das grandes vozes da jovem literatura americana.
Em 2002, quando lança “Middlesex”, o escritor comprova o talento extremamente inventivo de sua literatura. O romance conta a fantástica história de um gene que atravessa três gerações da família de gregos americanos Stephanides, até florescer no quinto cromossomo de um hermafrodita, a menina Calliope, que, ao crescer, revela-se no seu contrário. Espécie de investigação científica narrada de forma intimista por uma Cal aos 41 anos de idade, o livro é um caldeirão no qual a protagonista joga detalhes sobre suas peripécias de infância, a adolescência conturbada e as mutações do seu corpo. Tudo isto encadeado por uma saga que se estende por oito décadas de vida da sua família e é permeada por fatos políticos, sociais e culturais, como a queda do Império Otomano, os anos 20 de uma Detroit industrial, a 2ª Guerra Mundial e uma liberal São Francisco dos anos 70. Mais elogios da crítica em todo o mundo e “Middlesex” ganha, além do National Book Award, o Pulitzer.
Jeffrey Eugenides parecia então fadado a igualar-se, ou até superar, Franzen e Wallace. Eram eles as duas maiores estrelas entre os escritores que, com menos de 40 anos, estavam envolvidos em uma luta de superação do legado de seus antecessores. Se a pós modernidade e o hermetismo de nomes como Thomas Pynchon e John Barth eram, para estes jovens autores, insatisfatórios em traduzir as angústias de uma América contemporânea, qual deles então escreveria o romance que consagraria sua geração? O romance que romperia com a onipresente ironia — tão intimamente ligada ao pós-modernismo — e reabilitaria a literatura “emocional e sincera”, como David Foster Wallace defende em seu ensaio “E Unibus Pluram”, do livro “A supposedly fun thing I’ll never do again”, de 1997.
O próprio Wallace ambicionou ocupar a posição, em 1996, com seu enciclopédico “Infnite Jest”. No entanto, apesar do culto (e inveja) dos seus próprios pares, o livro ainda pode ser encarado com uma sátira e não somente como a história “triste” que o autor estava querendo escrever desde que estreara, como declarou à revista virtual Salon. Não obstante o New York Times ter definido Wallace como “um virtuose que parece capaz de fazer qualquer coisa”, “Infnite Jest” não rompeu seu elo com a persona mordaz que os brasileiros só puderam conhecer, até agora, pela publicação de “Breves Entrevistas com Homens Hediondos” (Companhia das Letras, 2005).
Emocional e sincero, “Middlesex” parecia, até o momento, o dono do cetro de romance de sua geração. Mas eis que, em 2011, Jonathan Franzen descobre o mapa da mina. Depois do sucesso de “As Correções”, de 2001, Franzen continuaria investindo em uma forma tradicional de narrativa realista e, em 2010, lança “Liberdade”. Romance mais comentado daquele ano e do seguinte, colocou o autor na capa da Times sob o epíteto de “O Grande Romancista americano” e foi considerado o livro do século para o The Guardian. Ambicioso até a medula, “Liberdade” usa o triângulo formado pelo casal Walter e Patty Berglund e o roqueiro Richard Katz, desde seus anos na universidade até os dias atuais, para construir um grande painel social que abarca o choque entre o liberalismo e o conservadorismo nos governos Reagan, Clinton e Bush, a superpopulação, as ameaças ecológicas, a derrocada do politicamente correto, o individualismo, a crise entre gerações, a globalização. Ufa! Franzen, através do mergulho na tragédia familiar pretende tocar nos pontos nevrálgicos da classe média norte-americana, com seu registro herdeiro da literatura do século XIX. Uma escolha estética que agradou da crítica empertigada até uma Oprah Winfrey histriônica, tornando-se um dos livros mais vendidos no mundo inteiro.
As pressões de um mercado editorial pós-“Liberdade” devem ter tocado fundo em Jeffrey Eugenides, e isto transparece em “A Trama de Casamento” (Companhia das Letras. 440 págs., R$ 46), seu recém-lançado livro no Brasil. Se entre todos os autores daquela “panelinha” geracional, na qual se pode incluir também Michael Chabon, Chuck Palahniuk e Dave Eggers, Eugenides parecia o mais capaz de renovar a forma do romance (porque preocupado com assuntos mais sensíveis que Chabon e Palahniuk, porque capaz de uma inventividade que não chegava a assustar como um Wallace), em “A Trama do Casamento” ele cede ao convencionalismo de um livro que parece ter sido escrito com a pressão de um Jonathan Franzen nos ombros e a obsessão por um David Foster Wallace no tema.
A pressão de Franzen sente-se ao nos darmos conta de que Eugenides abandona a inventividade extrema que vinha marcando sua obra, e cede lugar a um romance painelístico convencional que não faz jus ao trabalho do autor até então. Já a obsessão por Wallace é um fantasma que se apresenta de duas formas: além de parecer querer responder a um desabafo feito por este no já citado ensaio “E Unibus Pluram” — ser um “antirebelde” da literatura, um autor sem medo de ser tachado de melodramático e sentimentalóide —, em seu livro ele constrói um personagem que é simplesmente um decalque de David Foster Wallace (tal qual Franzen e seu Richard Katz, outro simulacro de Wallace), incluindo a bandana, o tabaco de mascar, a especialização em filosofia e a luta com a depressão.
O personagem em questão é o estudante de biologia Leonard Bankhead, o mais interessante, pelos motivos supracitados, da trindade formada neste livro. Ela inclui, ainda, o estudante de religião Mitchell Grammaticus e Madeleine Hanna. É em torno dela que orbitam os dois personagens masculinos, pretendentes românticos que rivalizam em estilos para conquistar a estudante de letras apaixonada por romances de casamento do século XIX. Ao bom leitor, basta somente a exposição desta sinopse para perceber que, mais do que com a metaliteratura (a heroína casadoira apaixonada por personagens casadoiras em dúvidas quanto aos dois pretendentes), Eugenides flerta com o roman à clef, numa forma narrativa que inspira-se em pessoas reais por meio de personagens fictício: então, se Bankhead é Wallace, o romântico Grammaticus, greco-americano de Detroit, seria o próprio Eugenides? O autor, já confrontado com esta hipótese, afirma que não. Agora, que fique claro: Jeffrey Eugenides é um talento, com domínio indiscutível de sua prosa e grande habilidade para a construção de situações que avançam e regridem no tempo, intercaladas sutilmente entre seus protagonistas. Cria diálogos cômicos e repletos de coloquialidade — é um livro engraçado e com ótimos momentos. Mas com o defeito de seu mote esgotar-se antes de seu fim.
Abandonando o divertido argumento a que se dedicava, sobre o cenário acadêmico americano nos anos 80, quando a difusão da semiótica implodiu com a ideia que se tinha de romance, “A Trama do Casamento” converte-se em bildungsroman, ao alternar focos narrativos para contar a “jornada” de formação de seus três personagens (quando, mais uma vez, o preciosismo da derrocada depressiva de Bankhead oblitera os outros dois, mesmo o inspirado processo de descoberta religiosa de Grammaticus), afinal revelando-se uma insossa história de amor. E o que deveria ser uma modernização dos romances vitorianos beira a ingenuidade de um triângulo amoroso pós-adolescente. O que mais se destaca, no fim das contas, é a indecisão de Jeffrey Eugenides entre dedicar-se à ambição metaficcional com que ameaça desde o título ou à construção de mais um romance realista, painelístico — e que é contradição à voz ímpar e inventiva de sua obra, até então. Se livros são sobre outros livros, como diz um personagem de “A Trama de Casamento”, talvez este seja sobre o livro metaficcional que gostaríamos que David Foster Wallace tivesse escrito ou o livro painelístico que, até agora, Jonathan Franzen tem escrito melhor.
*****
Alessandro Garcia (@alegarcia) é escritor, autor de “A Sordidez das Pequenas Coisas” (Não Editora, 2010), finalista do Prêmio Jabuti e um dos vencedores do Prêmio Fundação Biblioteca Nacional.
Leia também:
– “As Virgens Suicidas”, de Sofia Coppola: para (tentar) entender as mulher (aqui)
– The Ugly Club homenageia escritor com o single “David Foster Wallace” (aqui)
– “Calamity Song”, do Decemberists, é inspirado em David Foster Wallace (aqui)
– Leia as primeiras páginas de “A Trama de Casamento”, de Jeffrey Eugenides (aqui)
“Parece que a maior curiosidade da biografia está nas possíveis ligações que podem ser feitas entre a vida de Wallace e o enredo dos livros Liberdade, de Jonathan Franzen e A trama do casamento, de Jeffrey Eugenides. Em tempos de autoficção exagerada também acho chato quando alguém pergunta “o que a personagem tem em comum com você?” ou “o livro é sobre você?”. Só que a gente pode perdoar essa situação no caso desses três escritores sobretudo quando vemos muitas semelhanças entre Leonard Bankhead, Richard Katz (personagens) e Foster Wallace (o real) – a bandana na cabeça, o hábito de mascar fumo e a sagacidade intelectual.” (http://blogcasmurros.blogspot.com/2012/08/david-foster-wallace-entre-realidade-e.html)
Não conheço, mas vou procurar. Gostei do que li do Franzen, mas o maior escritor de língua inglesa da atualidade pra mim é mesmo o inglês Ian McEwan.